Capítulo 17: Vidro
Tensa, suando frio, Yaci caminhava no meio da multidão.
Queria correr, procurar algum lugar onde aquele homem não pudesse encontrá-la.
Mas não podia, era barrada pelo mar de pessoas, andando com pressa, esbarrando umas nas outras.
Era infindável, claustrofóbico, desgastante, beirando o degradante.
Ela não voltou pelo caminho que veio, se deixou levar pela multidão, deu voltas nas ruas várias vezes, passou apenas por bairros e ruas conhecidos e seguros, procurou caminhos populares, com muito movimento nas ruas, a cada passo dado olhava para todos os lados, procurando um homem de vestes brancas.
Ignorou os eventuais insultos, tinha coisas mais importantes para se preocupar.
Mesmo quando não o via, não deixava o alívio tomar conta, seguia seu caminho com cautela, nunca baixando a guarda, ela havia aprendido a lição, e o preço nem foi tão caro, só um braço e ainda o recuperou depois!
Depois de horas aparentemente despistando o vento, ela parou em frente ao buraco que levava a sua casa e apenas na falsa segurança da grande fábrica ela conseguiu suspirar de alívio e relaxar os músculos.
Cansada, simplesmente se jogou na cama e cobriu os olhos, agora era hora de digerir todas as informações que havia recebido.
Ou melhor, Yaci queria fazer isso, pensar como descobriu a real identidade de seu irmão da pior maneira possível, as implicações que essa revelação trazia. Mas não conseguiu, nunca em sua vida pensou que teria seus raciocínios interrompidos pela conversa de suas sombras.
— Você viu aquilo, viu o que a pirralha disse?! Haha, é disso que eu tava falando quando decidi visitar os vivos, quem diria que a pirralha que você se ligou seria tão interessante!
— Você fala demais velho, se você vai ser inconveniente sempre que tiver a chance, pelo menos se mostre mais útil com o tempo. Até agora você só falou algumas palavras para Yaci, e nenhuma delas foi de alguma utilidade!
— Tsc, eu não vim até aqui pra ensinar uma pirralha aleatória! Eu ia observar até ela mostrar que merece ser ensinada. E hoje ela fez isso! Haha, nem eu na idade dela tinha tanto culhão pra contar uma mentira com a cara tão lavada assim. Ela metendo o câo serinha, porra, fez meu dia!
Yaci não podia acreditar em seus olhos e ouvidos, na verdade, não queria acreditar. Depois de um dia estressante, ela não pode descansar, porque sua sombra, que se dividiu em duas, agora estavam conversando uma com a outra… mais confuso ainda, era o misterioso e austero velho que a tinha assustado hoje cedo, começou a falar como um moleque qualquer, que vivia no sudeste do Império da Verdade como ela.
Não teve outra reação a não ser grunhir alto enquanto cobria o rosto com o travesseiro. “Eu realmente estou louca” pensou.
Era impossível aquilo ser real, um velho feito de sombras usando gírias e maneirismos de um jovem qualquer do Império.
Ela já não sabia o que era mais reconfortante, estar louca e essas duas sombras serem alucinações, ou então, estar sã, e aceitar que tudo aquilo, por mais surreal que fosse, como a realidade nua e crua.
— Pirralha! — Não teria tempo para pensar, já que o velho que falava como um adoslescente rueiro começou a chamá-la.
— Meu nome não é pirralha, é Yaci
O velho levantou uma sobrancelha, olhou ela no fundos dos olhos e disse:
— E quem perguntou? Você perguntou — apontou para a sombra — Não perguntou, eu tava falando com você, não tinha como perguntar. E eu, eu perguntei? Não, não perguntei.
— Você é uma criança por acaso?
— Eu? Não! Eu sou velho pra caralho! Você que é a pirralha.
Cada palavra que Yaci trocava com aquele velho a deixava mais e mais embasbacada. O pior, era a seriedade e naturalidade com que o vovô garoto falava.
“Ele acha que está sendo jovial?” Teorizou, procurando uma explicação lógica para a personalidade ridícula daquele velho.
— Veja bem, pirralha, a partir de agora você vai me chamar de professor, entendeu? Alguma dificuldade nisso?
— Sim! Eu não vou me referir a você como “professor” até você começar a me chamar pelo meu nome.
Mesmo sendo uma sombra, o velho suspirou profundamente, com dificuldades em manter a fachada brincalhona e calma.
Ele se aproximou dela de forma vagarosa, cada passo fazia sua sombra mais real, substancial. A alguns metros dela, ele não era mais uma projeção na parede, ele era real.
Feito de uma matéria desconhecida, era disforme, como se lutasse para manter a imagem fisionomia do idoso, uma batalha entre consciência que mantém a persona do velho, com a matéria que sustenta sua carne sombria.
Em frente a Yaci, ele já estava completamente manifestado, com todos os detalhes de sua existência. Carregava rugas em sua face, cicatrizes pela sua pele, era possível ver as costuras e remendos em suas roupas, os calos em seus dedos.
Ele estava lá, sorrindo, como um avô sorria para a neta. Mas apenas um momento depois o chinelo de madeira, vinha e folhas que ele usava se encontrava em direção ao rosto de Yaci, se movendo a uma velocidade vertiginosa.
Um estalo alto, agudo ecoou pela fábrica. Yaci só conseguiu entender o que aconteceu quando ricocheteou na parede da fábrica.
Seu nariz estava sangrando, seus olhos estavam marejados de lágrimas, era possível que seu nariz tivesse quebrado.
Não teve mais duvidas, aquilo com certeza era real, aquela dor era real.
Mesmo com a visão turva, ela conseguia ver o que havia mitigado o impacto na parede. Eram as barracas de seus irmãos.
Duas lonas rasgadas, pedaços de madeira, móveis quebrados, nada ficou intacto. Duas das oito barracas foram destruídas.
— Tá de sacanagem? Eu tenho cara de babaca por algum acaso? Foi uma ordem, dá seu jeito de cumprir, não gostou vem aqui calar minha boca!
Sentada no meio dos destroços e móveis quebrados, segurando pedaços da lona e madeira das barracas, Yaci sentiu-se desolada.
As verdades que carregou durante toda sua curta vida, estavam cada vez mais desmoronando, escapando pelos seus dedos.
A cada dia que passava, entendia que nada do que sabia sobre a sua vida era completamente verdade.
E agora, por causa da sua própria sombra, os poucos resquícios materiais do seu antigo estilo de vida, dos quais ela cuidou tanto para que permaneçam intocados pelo tempo.
Uma parte da última âncora que a ligava ao passado que tanto estimava, havia sido destruída.
— Desgraçado… — Vociferou Yaci
— Hm… — Exclamou surpreso. — Nem fodendo!
Yaci não respondeu, na verdade, ela não escutou uma palavra do que o velho havia dito.
Pois um som de um tambor grave dominou sua mente, batia em ressonância com seu coração, era alto, audaz.
O verde de seus olhos se tornou mais vivaz e violento. No fundo da íris, na fina e tênue ligação da alma com o mundo, queimava uma pequena chama esmeralda, minúscula, menor que um fósforo, mas queimava.
As cores de sua visão aos poucos escorriam para a inexistência, rastejando para fora do mundo, pingando pelas beiradas da consciência, até que tudo se tornou branco, mas também se tornou preto.
Em sua visão não restava mais nada, apenas as linhas de contorno daquilo que compunha o mundo, que se misturava naquela paleta de preto e branco, esperando ser preenchida por cores novamente.
Quando a razão começou a empalidecer frente ao desconhecido, Yaci sentiu-se presa, como se estivesse presa dentro de uma caixa.
Levantou-se e caminhou até as paredes de vidro que a prendiam e que aos poucos se fechavam ao redor dela, tentando esmagá-la, suprimi-la.
Quando olhou para trás se viu sentada, ainda parada com o que restou das barracas em mãos. Estava lá, mas também estava aqui.
Não demorou muito para que a caixa se fechasse totalmente sobre ela. Agora, ambas dividiam o mesmo lugar no espaço, coexistindo entre as cores e os contornos, entre a ação e a inércia.
Quando o físico e o etéreo se uniram, o vidro que embaçava o mundo se encheu de rachaduras, uma teia infindável delas.
Quando tudo ruiu, um som peculiar de um espelho se quebrando em mil pedaços ecoou pela fábrica, mas dessa vez ele era tão material quanto espiritual, se propagou pelo ar e pela consciência.
Por fim o selo foi quebrado.
A expressão do velho era um misto de choque, incredulidade e ufania.
Yaci voltou a ser uma e se levantou fervendo de raiva, a tinta escorria dos seus dedos, manchando o chão da fábrica.
Fechou a mão em um punho, coberto de tinta mais escura que o mais profundo abismo e correu, com o único objetivo de calar a boca daquele velho que a empurrou mais um passo em direção a um futuro que não queria experienciar.
Ela não tinha técnica, mas foi rápida e bruta.
Porém de nada adiantou, quando seu soco ia conectar com o rosto do idoso, ele sem dificuldades a chutou para longe.
— Você é inteligente então vai entender rápido, raiva não te deixa mais forte, pelo contrário, você fica mais burra e comete mais erros! O que você fez foi muito impressionante, mais no fim do dia não mudou porra nenhuma, pegou a visão?
O velho continuou a balbuciar sem prestar atenção ao redor. — Eu queria te irritar pra você ficar mais perto do plano mental, mas quem diria que você ia quebrar o selo logo de cara?! Eu sou um baita professor, num só não? De qualquer forma, não faça mais isso, você só fica mais suscetível a morrer, agora vamos te ensinar a lutar de ver… Ah você apagou… Que merda, tô falando sozinho esse tempo todo?
Se projetando no chão a partir dos pés de Yaci, a sombra perguntou:
— E então, o que achou? Agora vai mostrar serviço, ou vai ficar balbuciando por aí, como fez até agora?
Exultante, o velho disse antes de desaparecer:
— A pirralh- Yaci. A Yaci é mais interessante do que eu pensei. Ela merece um pouquinho de descanso, puxe a minha consciência de volta para cá quando você achar que ela descansou o suficiente.
Só restavam as duas na fábrica, Yaci parecia estar longe de acordar, mas estava segura, se aproximando, a sombra lutou para ficar material e pegar a menina no colo.
Foi uma tarefa hercúlea, sua condição era diferente dos outros, então o mundo ainda rejeitava sua presença, mas Yaci provou que merecia seu esforço hoje.
Colocou a menina em sua cama e desapareceu, no fim todos precisavam de um descanso. Yaci principalmente, suja, machucada e emocionalmente exausta, ela dormia pacificamente em sua cama, com seu colar brilhando como um farol, seu brilho aconchegante lavando gentilmente a exaustão para fora de seu corpo.
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