Capítulo 18: Novo Mundo
Do outro das muralhas, em uma encruzilhada suja, sem sinalizações, havia um estabelecimento que nunca fechava, ou melhor, quase nunca!
Funcionava vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, só fechando quando a ressaca do dono era demais para aguentar.
Todas as suas paredes eram pretas, tanto no exterior quanto interior apertado e desorganizado, A única coisa que quebrava o profundo preto das paredes era a logo em lettering branco em uma delas, escrito em letras garrafais:
BAR DO LOMEU!
SERVINDO BEBIDA PRA QUALQUER UM QUE PAGAR
DESDE A ÉPOCA DA LONGNECK COM ROLHA
Tonéis de aço velho e enferrujados serviam como mesa para os mais variados clientes daquele bar mal cuidado enterrado no meio de prédios nas ruas da capital da verdade.
Em um canto escuro e apertado do bar, quatro pessoas estavam em volta de um grande tonel de aço escuro. Dois deles, muito bêbados, rindo alto de forma espalhafatosa, os outros dois, mais reservados, tentavam compreender e participar da conversa sem sentido de seus companheiros. O clima era ótimo, leve e divertido apesar do lugar sinistro. Até que então, um barulho imaginário, que só eles escutaram começou a tilintar ao redor deles.
Era o som de vidro se quebrando. Se estilhaçando em mil pedaços.
Em seguida todos os sorrisos e gargalhadas foram substituídos por silêncio inquietante, olhos bem abertos de surpresa, e olhares esperançosos, observando com expectativa a única mulher na mesa levantar a mão e mostrar para eles a razão daquele barulho metafísico ressoar naquele bar.
— Samantha… levanta ah… a palma da mão pra gente ver, por favorzinho?
A mulher, com um olhar vidrado, encarando a própria palma incrédula, levantou a mão à frente do rosto, em direção a todos seus companheiros.
— Impossível… — murmurou a Samantha
Naquele momento, quebrando toda a tensão da mesa, Andrei, começou a rir alto, uma risada genuína, aguda e esganiçada. Gargalhava como se tivesse acabado de escutar a melhor piada do mundo, talvez, para seu senso de humor sem sentido e confuso, essa poderia realmente ser a melhor piada do mundo.
Na palma de Samantha havia uma gravura de um círculo azul perfeito, composto de diversos desenhos complexos, que desafiavam a geometria e a razão. Dentro do círculo estava contido um padrão de minúsculas letras de alfabetos antigos, formando palavras com significados confusos. Entretanto, o círculo, os desenhos, e as palavras, estavam destruídos, suas bordas estavam queimando e desaparecendo de sua pele através de um brilho vermelho incandescente, que transformou a gravura cinzas que caíram no chão antes de desaparecer.
— O que é isso? — Lucas perguntou
— O feitiço de rastreio que a Samantha colocou naquela menina quebrou… Perae, capitão! Isso significa… — Pedro não conseguiu terminar a pergunta, pois Andrei já estava em pé batendo no tonel e gritando.
— Sim! A menina quebrou o selo entre o corpo e a alma, e o feitiço que foi colocado no vão que separa o físico do etéreo quebrou junto.
Samantha encarava Andrei com olhos vidrados, se perguntando se tudo aquilo não era mais uma das pegadinhas elaboradas daquele canalha. Mas ela sabia que não. Não era possível que o feitiço só deixasse de existir daquela forma, só existia uma explicação para aquilo. E odiava essa explicação.
— Calma! Como assim?! Você nem chegou perto da menina, como você colocou um feitiço de rastreio nela?
— Não te interessa porra! Cuida da sua vida.
Lucas olhou para ela surpreso, nunca tinha visto sua companheira tão irritada. Se perguntava o por que de toda aquela agressividade…
Talvez tivesse perdido muitos materiais para criar o feitiço e agora estava se sentindo pobre. Talvez estivesse sentindo dor por ter o feitiço apagado de sua pele. Mas não, Lucas logo entendeu o motivo de tanta irritação, pois ele veio junto com a risada esganiçada do seu capitão.
— Hahahaha, e agora Burguesinha, como se sente sabendo que a baratinha pode se juntar a nós daqui a pouco? Ein, eu sabia que ela tinha talento, mas porra, uma semana depois da primeira cremação dela? Quem iria imaginar. Com certeza você não, né Sá!
— Cala boca barata das neves!
— Hehe, burguesinha burguesinha burguesinha burguesinhaaaaa… Só fala o que quer, vai ouvir o que não quer.
A troca de ofensas continuou o suficiente para incomodar os outros clientes. E só parou quando tomaram um grande esporro do seu Bartolomeu, o dono do bar. Não podiam arriscar serem expulsos ou banidos, aquele era o único bar onde poderiam beber durante o serviço.
Acordou em sua cama, sem saber como chegou nela. Seu rosto doía, menos do que ontem, mas doía, um desconforto nas costelas chamou sua atenção, tateou, se lembrando do último golpe que recebeu, ao senti-las com a mão confirmou que não estavam quebradas, isso por si só já era um alívio imenso.
Yaci estava lá, acordada, olhando para o teto, mais uma vez com aquela sensação de que havia sonhado, mas tinha se esquecido sobre o que era. Mas essa inquietação não durou, bastou olhar para o lado para perceber a estranheza do mundo à sua volta.
Ao estilhaçar aquele vidro, que a separava dela mesma, a visão das duas versões de si se juntaram em uma, aprimorando suas respectivas qualidades. Através dos seus olhos verdes, as cores do mundo eram mais vibrantes, profundas, elas expressavam mais sentimentos, carregavam consigo histórias. Nada parecia aleatório, tudo detinha um jeito único e sentimental de guardar momentos . Mas quando olhava além das cores, ainda podia ver os contornos. Por trás das coisas que preenchem o mundo, estão os significados, as linhas que davam forma, e estabeleciam seu comportamento ao interagir com a realidade. Objetos, seres, lugares, reduzidos a sua forma mais primitiva, como o esboço da existência.
Ao preenchê-lo de cores, sentido, razões e sentimentos o esboço ganhava vida, neste momento, nascia a camada de entendimento que todos os humanos observavam, mas não entendiam, porém agora, mesmo que um pouco, Yaci a entendia.
— O que você vê? — Perguntou a sombra.
— Um mundo lindo. Muito lindo mesmo.
Parou por um momento, apreciando a beleza do que via. As marcas de lápis no chão, seus desenhos em papéis e nas paredes, os rasgos nas lonas das barracas, os itens que seus irmãos deixaram para trás, tudo aquilo era recheado de momentos, sentimentos, eram artes, desenhadas pelo tempo, eternizadas pela realidade, carregadas por ela, que agora, podia compreendê-las.
— Bom que gostou! Esse é o seu mundo Yaci, espero que se acostume com sua nova vida.
— Meu mundo?!
— Sim. Cada um de nós, quando quebra o “selo”, que separa nosso corpo da alma, começa a perceber o mundo de uma maneira única, não existem dois iguais. Parecidos talvez, mas é raro… — Deu uma pausa, parecia receosa em continuar. — Nem tente me descrever o que vê, é provável que eu nunca vá entender, e vice- versa comigo. Ao que parece nossos mundos são bem diferentes, só posso descrever o meu como angustiante, para dizer o mínimo.
Era uma sensação estranha, reconfortante, mas solitária. Sabia agora que via o mundo de uma forma que mais ninguém via, mas também se sentiu solitária. Tinha seu mundo, mas caminhava sozinha nele, era triste, ver algo tão belo, e não poder compartilhá-lo com ninguém.
— Sei o que está pensando… Todos pensam. Mas não se preocupe, mas cedo ou mais tarde você deve conseguir mostrar seu mundo aos outros. Mas isso é assunto para o futuro, vamos focar em se recuperar, tudo bem?
— Tranquilo então… Uma coisa, tipo, agora que tem duas sombras, do que eu posso te chamar?
— Me chamavam de anhanga a muito tempo atrás… Era mais um título do que um nome. Mas isso perdeu o significado a muito tempo… — Parou de falar, refletiu um pouco e então falou. — Abyara, mas se quiser, pode me chamar de Aby.
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