Capítulo 19: Capa Preta
Um nome e um título. Depois de um ano, aquela voz que a acompanhou durante todo o caminho tortuoso e viu de perto seus erros e acertos, dos mais banais até os paranormais. A entidade que apareceu em seus sonhos, lhe deu conselhos ou simplesmente atazanou seu juízo agora tinha nome e rosto.
Essa descoberta ecoou em seu mundo. A imagem da sombra em seus pés mudou de forma singela, imperceptível para qualquer um, menos Yaci.
Ela não conseguia descrever a mudança, não era visual, muito menos física, era mais um conceito, um sentimento, além do véu das cores, o contorno se tornou mais definido, claro, mais compreensível. Pois é claro, Yaci havia compreendido mais uma faceta do que tornava Aby a Anhanga, ela mesma.
— Certo Aby, Vai me acompanhar enquanto experimento, o que esses olhos enxergam?
De novo não houve resposta. Neste ponto, já era uma situação corriqueira para Yaci, entretanto a sensação foi diferente.
Não era apenas o sumiço irritante que Aby sempre performava nas horas menos apropriadas. Era o silêncio, o vazio em sua cabeça.
De certa forma foi libertador, ter de volta sua mente só para si, o ápice da privacidade.
Depois de se apresentar, a sombra original parecia ter ido para um lugar além da consciência de Yaci.
“Deve ter ido dormir, as sombras precisam dormir?”
Pensou despreocupada, e continuou a explorar o novo mundo em que vivia, começou, obviamente, pela fábrica desativada em que vivia.
Observou tudo, seus novos olhos captavam camadas de abstração e memórias. Queria saber como ficariam seus desenhos e pinturas, dado todo conhecimento que agora tinha sobre o mundo. Cada linha que traçasse seria feita pela fonte, fitando o esboço do mundo e o transferindo-o direto para seu papel, usando a paleta de cores da realidade, iria canalizar elas através do seu pincel para qualquer tela que escolhesse usar.
Passou então para os objetos. Lápis largados pelo chão, os cabos desencapados espalhados pela fábrica, as lâmpadas queimadas que balançavam no teto, tudo era o mesmo, apenas mais perto de se tornar completo.
Se sentia bem ao estudar cada objeto com cuidado e ver ele mudar em tempo real. Entendeu que sua compreensão, emoção e conexão com os lugares, pessoas e objetos ao seu redor, mudaram a forma que interagia com o seu mundo, pois o mesmo ainda estava incompleto e somente estudando e compreendendo aquilo ao seu redor, conseguiria torná-lo mais completo.
Chegou aos seus pertences, de frente a eles bastou um olhar para distingui-los dos demais objetos ao redor da fábrica. A diferença era como o céu e a terra. Aquilo que lhe pertencia a muito tempo, tinha uma linha preta, a mesma que compunha o esboço de tudo, ligando-a ao objeto.
Não apenas isso, mas instintivamente sabia, sob seus olhos brilhantes, aqueles objetos estavam completos. Cada ranhura, desgaste de uso e marca de dedo lhe entregava detalhes, histórias e insights sobre aquele item, tinha certeza que conseguiria replicá-los com perfeição em qualquer superfície, com nenhum detalhe sendo deixado de fora.
Em comparação a seus pertences, todo resto empalidecia. Quanto mais explorava seu mundo, maior era o vislumbre de quão imperfeito ele era.
Passou o resto do dia explorando cada canto empoeirado da fábrica, expandindo lentamente seu mundo e quando o sol se pôs, já estava cansada e com fome, entretanto, enquanto escolhia uma comida para jantar, uma coisa chamou sua atenção, o livro de capa preta, que estava guardado perto da freezer da fábrica.
Ela não conseguia desviar o olhar do livro nem por um instante. Diferente de todo resto, o livro não mudou, continuou o mesmo, não havia entendimento ou realização em vê-lo apenas um arrepio que subia pela espinha e uma sensação de ânsia inexplicável.
Esqueceu que estava cansada e que tinha fome, pois a alguns passos de distância estava algo incompreensível, cujo entendimento não existia dentro dos limites do seu novo mundo.
“O que é você?”
Pensou, aos poucos o livro começou a mudar, se tornou mais escuro, opaco, as linhas de seu contorno desaparecendo. Ele não existia, mas ela olhava para ele. Era impossível capturar sua essência, pois ela vazava pelas linhas finas e fracas do seu esboço, contaminando o ambiente.
Quanto mais próxima chegava, mais alta as vozes ficavam, sussurrando em seus ouvidos, era distante, a miríade de vozes dizendo palavras indiscerníveis de barulhos guturais de animais. Mas que a cada passo se tornava mais claro, mais humano, ou era Yaci, que estava se tornado menos humana? Não importava naquele ponto, estava tão perto, os sussurros passaram a ser gritos, porém o sentido se perdia na multidão de milhares de vozes que a rodeavam, mas ela sabia como resolver isso.
Bastava abrir o livro, e todas suas dúvidas seriam sanadas, ela teria a resposta para tudo que já se perguntou durante toda a vida.
Mas quando seus dedos acariciaram o couro preto do livro, um clamor choroso, alto, lutando para ser escutado, cruzou seus ouvidos.
— Não abra! Escute minha voz, foque só nela, por favor não abra esse livro!
A voz de Abyara estava distante, abafada, como se estivesse do outro lado de uma parede grossa. Mas seu grito foi alto suficiente para ser escutado.
Yaci acordou, com o livro estranho em mãos, seu polegar a caminho de abri-lo.
— Quando eu cheguei aqui? — Se perguntou
Olhou para trás e viu sua janta jogada no chão. Sentiu a tremedeira das mãos, o sangue deixando seu rosto, o medo do desconhecido, e o peso da névoa que obscurece as memórias daqueles minutos do qual não teve controle do próprio corpo.
Apenas um instante depois um senhor de idade, feito de algo imaginário e que de alguma forma conseguiu se tornar corpóreo, passou por ela e tomou o livro das suas mãos.
— Você…
— Tive que mudar um pouco meu planejamento de aula, mas tá tranquilo. Vamos lá, primeira lição, e ao mesmo tempo tarefa. Nunca, em hipótese alguma, chegue perto, toque ou abra esse livro sem a minha permissão e presença, entendeu Yaci?
Mesmo ainda tomada pelo choque, ela não perdeu a mudança de atitude do velho. Assumindo que era hora de ter algumas respostas, ela decidiu seguir com aquela loucura.
— Sim, professor! Posso fazer uma pergunta?
— Pode, fala aí.
— O que é esse livro, e por que eu não posso abrir?
Ele parou por um momento, coçando a barba, formulando uma resposta decente, e que fizesse sentido para a menina, ela ainda era mundana, muito humana para a totalidade daquela questão.
— Veja bem, isso não é um livro! É um local, tipo uma cidade, só que foi presa dentro de um objeto, sem mais perguntas neste assunto, não faria sentido responder, você ia ficar me olhando com cara de paisagem, sem entender nada. — Deu tempo para ela assimilar aquela informação, quando Yaci pareceu estar pronta, ele continuou — A segunda é bem mais simples, não é que você não possa tocar, você pode! Mas você ia morrer logo em seguida, sabe? Prefiro não perder minha aluna pra uma bobeira dessas, já pensou, morrer “de livro”, que humilhação? Só não deve ser pior do que morrer engasgado com caroço de azeitona…
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