Desde o ano passado, essa tinha sido a sua vida, nada mais, e nada menos. Bem, às vezes menos.

    Entretanto, o dia dava sinais de estranheza. Havia uma comoção acontecendo nas redondezas das áreas das pessoas de classe baixa. Ou como seus irmãos os chamavam: os pobres não tão pobres.

    Já que todos das favelas estavam classificados simplesmente como miseráveis.

    — Por que esses riquinhos estão fazendo tanto barulho? 

    Andando por aí, de beco em beco, de viela em viela, ela aos poucos foi montando um quadro geral da situação, depois de ouvir muitas conversas com o canto do ouvido.

    Havia uma onda de mortes, pessoas assassinadas de forma brutal, ou simplesmente caindo mortas no chão ao andar pelas ruas.

    “Por que toda essa bagunça por algo assim? Esse tipo de coisa acontece todos os dias, no distrito da miséria!”

    E realmente acontecia. Morte era, de longe, o acontecimento mais corriqueiro na vida dos habitantes das favelas do império da verdade.

    Seja por má condição sanitária, ou pelos criminosos e loucos que espreitam a noite e não tem pudor em cometer qualquer tipo de atrocidade! Não havia um único morador das favelas que não tenha perdido um ente querido.

    Mas essa banalização da morte, era exclusiva das favelas do Império da Verdade.

    Qualquer lugar, fora daquele grande antro de desespero e praga, a morte não natural, ou por velhice, era rara, de certa forma. Claro, levando em conta que nas áreas mais pobres, as pessoas também consideram morrer de exaustão durante o trabalho e desaparecer depois de ser convocado para a guerra, uma causa de morte natural.

    Yaci, achou estranho mas não contestou, há muito tempo entendeu que a vida era diferente para aqueles fora da miséria. Independente disso, ela continuou a sua busca por alimentos, se aproveitando do pânico e da histeria coletiva para ir mais fundo na área dos cidadãos de baixa classe.

    Quanto mais adentrava a cidade, mais bizarra se tornava a situação da cidade. As pessoas não estavam simplesmente “morrendo”. Algo, ou alguém estava acontecendo.

    As pessoas estavam cada vez mais assustadas, mais preocupadas, e isso é claro, gerava desatenção. As pessoas em seus momentos de desespero se tornavam desleixadas com seus pertences. Yaci, esperava que a comoção de uma área acabasse, e na surdina, se movendo de forma ágil, pegando os pertences derrubados no chão.

    Às vezes era uma moeda, às vezes um salgado ou um lanche mordido, com sorte, dinheiro em notas. As pessoas nunca pararam para pegar pertencer que caíram depois que começaram a correr

    Momentos como esse eram raros, poucas vezes na vida ela teve a chance de conseguir dinheiro, era provável que somente nesse curto espaço de tempo, ela tenha conseguido mais dinheiro do que em toda sua vida.

    Óbvio, nesses poucos anos de vida, ela não tinha muitas oportunidades de ganhar dinheiro, e poderia dizer com orgulho, que nunca machucou alguém sem motivo ou saiu por aí assaltando como alguns criminosos faziam. Esse era um dos maiores ensinamentos que seus irmãos lhe deram, algo que ela nunca deveria descumprir.

    Então hoje, foi realmente uma oportunidade única, afinal, quem perdeu foi relaxado!

    Ela foi se esgueirando, se movendo pelas sombras e pelos cantos sujos daquele lugar, onde os olhos dos cidadãos preocupados não alcançavam, ou assim ela pensava.

    Quando foi cruzar uma rua vazia para chegar em um beco, ela ouviu.

    — Ei… me- menininha, aqui! Me ajuda por favor!

    Se virando para a voz, Yaci viu um homem, ou o que restou de um, saindo com dificuldades de uma viela, escorado na parede.

     Com de terno chique estropiado e mal cuidado, com olhos vidrados, veias pretas saltadas por todo seu rosto e com um sangue viscoso e de coloração estranha escorrendo de sua boca.

    — Por… favor… me ajude… 

    Sua voz dessa vez tinha sido um silvo, como se pronunciar cada letra fosse uma tarefa hercúlea. O homem começou a chorar de lágrimas pretas, e então, caiu no chão.

    — Moço?!

    Yaci correu para perto dele, na esperança de conseguir ajuda-lo. Chegando lá, o homem se afogava em seu próprio sangue viscoso, escuro e fétido. Lágrimas pretas manchando seu rosto mortalmente pálido, enquanto seus olhos sem vida refletiam o céu.

    — Moço?! Moço! Acorda! E-eu vou ajudar, vai ficar tudo bem.

    Estando a um passo de chegar ao homem, tudo parou. A temperatura do ambiente à sua volta parecia cair vários graus. Sua sombra se tornando mais profunda, movendo-se sob seus pés, parando ao lado do cadáver, para então, abrir 2 olhos brancos e brilhantes.

    — Está morto, só não sabe disso ainda…

    Sua voz era profunda, poderosa, exultante, e curiosamente familiar.

    Era a voz que acordou ela hoje cedo.

    — Não há muito o que você possa fazer por ele — A sombra disse de forma leviana, não dando importância a situação.

    Quando terminou sua frase, Yaci percebeu que podia se mexer, que sempre pode se mexer na verdade, mas algo… um sentimento novo e angustiante surgia nela,  seu corpo queria correr para longe o mais rápido possível, mas também queria evitar fazer qualquer mínimo movimento.

    Seria isso… só medo? Alguém podia sentir tanto medo assim?

    — N-não… tem que ter alguma coisa que possamos fazer! Ele ainda está respirando!

    Yaci estava com medo e pressa demais para se perguntar por que sua sombra falava, ou por que se movia. Entretanto, ela parecia um pouco familiarizada com o que estava acontecendo.

    — Você nunca fez isso antes, você era só uma voz na minha cabeça! Volte pra lá agora, agora mesmo! Você nem é real! Devo ter enlouquecido! É assim que um louco se sente?

    — Menina… venha cá…

    Yaci acatou o que parecia ser o último pedido daquele homem. Ele deu um grunhido de dor e cuspiu uma quantidade surreal de sangue. Então segurou sua mão com gentileza, colocando um anel e um cordão em sua palma.

    — Me perdoe… por favor me perdoe! Pegue isso, e minha bolsa, queime-as, guarde-as, faça o que quiser com elas. Mas não deixei que isso caia nas mãos deles.

    — Deles?! Não, espere, não feche os olhos, calma, eu escuto passos, a ajuda deve estar chegando!

    Ao escutar isso, o homem arregalou os olhos. Ele pedia perdão diversas e diversas vezes.

    Ele tirou uma faca que estava escondida sobre o casaco e apunhalou a própria jugular.

    Sangue respingou em Yaci. Ela não sabia como reagir, mas finalmente entendeu o que sua sombra disse: “Está morto, só não sabe ainda.”

    Gorgolejando em seu próprio sangue, o homem empurrou o pingente e o colar, junto com sua bolsa de couro, em um esforço final. 

    A mente da menina trabalhava como nunca antes para achar uma solução para isso tudo, mas quanto mais pensava, mais sem lógica se tornava a situação.

    — Que os deuses tenham piedade de você… — sussurrou suas últimas palavras, ditas com muito esforço e dor.

    Seu corpo estava imóvel no chão. Uma grande poça de sangue se formou embaixo dele. Nada fazia sentido, e cada vez mais uma sensação de perigo tomava conta de Yaci. 

    — Pegue! 

    — O que?! Esse louco morreu pra se livrar de tudo isso! Quem são eles? E se vieram atrás de mim! Isso é perigoso, é muito arriscado.

    — Pegue Yaci, essa é a oportunidade que você sempre esperou. Alguma coisa está diferente, o mundo está mudando. Seja pra melhor ou pior, essa é a oportunidade de que o Benjamin falava.

    Oportunidade, essa palavra retumbou como um trovão. Não era exatamente isso que ela precisava para sair dessa situação? Uma oportunidade. 

    Inúmeras memórias, de cada um de seus irmãos, se lamentando vieram à tona, mas havia uma, que não era triste, nem melancólica. 

    Era de um menino, um pouco mais velho que ela, com um sorriso resplandecente. Seus cabelos ruivos cobriam vários machucados e cicatrizes que ele tinha pelo rosto. Ele a olhava com muito carinho, e dizia mais uma vez a frase que sempre falava para todos os seus irmãos.

    — Uma oportunidade, é só disso que precisamos! Pode não vir agora, mas ela vai aparecer. E quando aparecer, nem que seja só para um de nós, vai ser o suficiente pra todo mundo sair desse muquifo junto. Vocês vão ver!

    “Era disso que você falava, Benjamin? Essa é a oportunidade?”

    — É isso mesmo sombra? Essa é a minha chance de trazê-los de volta?

    —  Eles não vão voltar, e você não consegue traze-los de volta… Mas eu te digo, essa é sua chance! Se você precisa se agarrar a uma mentira pra aceitar isso, tudo bem. Eu sei como você se sente… Afinal eu sou…

    A palavra que foi dita… Não era uma palavra humana, ela não conseguia entender o que era, o que significava, tentar compreender a causou confusão. Ela conseguia lembrar, estava ali, na ponta da língua, mas nunca era dito, estava perto, mas infinitamente distante. Ela escutou, mas não entendeu e mesmo a menor tentativa de lembrar da palavra fazia seu cérebro arder, coçar de curiosidade que nunca seria sanada um mistério nunca resolvido.

    Aos poucos, um ruído irritante substituiu a confusão e começou a surgir em seus ouvidos, arranhando seu crânio, ficando cada vez mais altos.

    Mas quando parecia que seus tímpanos iriam estourar, tudo simplesmente sumiu. A temperatura voltou ao normal, todo peso que restava sobre seus ombros sumiram, dando-lhe uma sensação de leveza.

    — Parou? Sombra?! Voz na minha cabeça?

    Não houve resposta, da mesma forma que apareceu, a “coisa” desapareceu.

    Yaci pensou um pouco, contemplando as opções que tinha, ela poderia ir embora, simples assim, ir para casa e dormir, sua busca hoje tinha sido muito frutífera, mesmo com todas essas ressalvas.

    Mas as palavras de sua sombra ainda ecoavam pela sua cabeça. Ela estava cada vez mais tendenciosa a aceitar o último pedido daquele homem.

    “Eu enlouqueci, é isso, estou dando ouvidos à minha sombra, que por algum motivo fala!”

    A distância ela ouvia pessoas chegando, cada segundo mais perto de si e do cadáver. Ela não tinha mais tempo.

    Ela olhou para o colar e o anel em suas mãos, a bolsa universitária em seu colo, e então, finalmente para o cadáver, já frio, com olhos congelados juntos a uma expressão de culpa, terror e desespero.

    — Dane-se, dane-se tudo isso!

    Ela fechou os olhos do cadáver com cuidado, em um último ato de bondade para aquele homem miserável. Abriu a bolsa que lhe deu, guardou os presentes de despedida e alguns itens que havia pego mais cedo em meio aos livros e dinheiro que estavam bagunçados lá dentro, e se levantou.

    — Não interessa se essas coisas são amaldiçoadas ou não, se isso for necessário pra sair desse lugar, é nisso que eu vou me agarrar! Eu não preciso da piedade dos seus deuses, vou me virar!

    Passando a tira sobre o ombro e ajustando a fivela para se adequar a sua pequena estatura, ela limpou o que conseguiu da roupa, e disparou para o beco pelo qual veio. 

    — Por aqui! Tem muito sangue naquela viela, vamos ver se é alguém ferido!

    Yaci rumou de volta para casa de forma apressada. A noite seria agitada para aquela pobre criança.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (6 votos)

    Nota