— Já é noite, o que pretende fazer agora?

    — Descansar. Mas se você quiser abrir o bico, eu fico acordada. Já disse pra você, eu quero ter algumas respostas. Mas descansar é prioridade, ainda tô toda quebrada do chute e amanhã eu vou falar com a Hilda sobre a viagem até o mar.

    O Professor suspirou, seu olhar subiu para o teto. Passou alguns segundos observando o ambiente sombrio e sem vida da fábrica. Parou em um canto remendado por tábuas de madeira, do outro lado, via o céu noturno, as estrelas e a escuridão.

    Não tirou os olhos do céu, nem fez questão de se virar para Yaci, apenas perguntou, hipnotizado por pelo véu da noite.

    — Eae, vai aceitar ir com ela? Minha sugestão é que vá. Muita coisa nova pra ver, pra se viver, você ia expandir seu mundo, e ia deixar o passado para trás, só vejo vantagens!

    — Se você for mudar o assunto eu prefiro ir dormir, ainda mais com você dizendo como se eu não fosse encontrar minha família.

    O Professor olhou nos olhos de Yaci com gentileza. Por um momento ela suspeitou, da última vez que fizera uma expressão parecida, ele a tinha chutado como uma bola de futebol.

    Mas logo deixou que o medo se esvaísse, pois reconhecia aqueles olhos. Melosos, densos, de alguém que tem muito mais passado do que futuro, que leva nos ombros o peso de anos de experiências. Eram iguais ao da Dona Heloísa, não totalmente, mas algo próximo.

    — Talvez seja melhor que você não encontre eles… Já pensou na possibilidade de você não gostar do que encontrar Yaci?

    Ela não entendia o que aquele velho queria dizer com essa pergunta. Seu olhar não era pena, nem empatia. Era mais distante, frio e indiferente. O mesmo olhar de ler um livro, do qual o desfecho você já conhece, a sabedoria mórbida, o tédio de ver a história se repetir de novo.

    — Não fique com essa cara, seguir em frente não é a mesma coisa de abandonar e esquecer. — Ela tentou responder, mas ele levantou a mão, gesticulando que não havia acabado de falar. — Só estou dizendo que, se você procurar cadáveres, quando achar você vai ter que enterrá-los do mesmo jeito.

    Foi a primeira vez que tinha visto o velho falando sério e de uma forma um pouco formal. Isso tornou tudo mais inquietante.

    Sem resposta, Yaci mudou de assunto. Não tentou ser sutil, nem disfarçar seu incômodo, não poderia fugir da própria sombra, fugiria então, do que não queria ouvir.

    — Está ficando tarde, vou dormir, amanhã eu tenho que dar uma resposta para Hilda e o avô dela. Você deveria fazer o mesmo, se é que você dorme.

    — Não. Não tenho esse privilégio. Mas você está certa, descanse, se cure logo pra que possamos começar a te ensinar a sobreviver, até a próxima Yaci.

    A despedida foi rápida. O velho respeitou a vontade de Yaci de permanecer sozinha com seus pensamentos, ele entendia que aquela menina passou por muita coisa, em muito pouco tempo, se não tivesse passado, não conseguiria ter quebrado o selo.

    Yaci, por outro lado, ainda perturbada, se deitou, mas o sono não vinha, sua mente era uma tempestade, seus pensamentos um vendaval, mesmo que a fábrica estivesse em silêncio, sua cabeça não estava.

    Quando finalmente pegou no sono, teve uma noite agitada e sem sonhos. Tudo era novo, por consequência, cansava. Era exaustivo redescobrir o mundo. E quando o estado mais profundo do sono chegou por algumas breves horas Yaci ficou em paz. 

    Sua respiração profunda e lenta, com os olhos fechados, sem nada para descobrir, aprender ou pensar. Não havia o sentimento de realização e conquista, por outro lado, também não sentia tristeza, melancolia ou angústia. Não havia nada. Nada para se alegrar, nada para se arrepender. A morte deveria ser assim, calma e misericordiosa, eterna.


    A cada passo que dava sentia mais ansiedade. Não achava que Hilda ou o velho estavam certos, ela iria encontrá-los, ficaria feliz em fazê-lo. Mesmo que o resultado não fosse aquilo que esperava, depois de tanta coisa, ela precisava de uma resolução, não um final feliz.

    Entretanto, não sabia que resposta daria para Hilda, ainda estava indecisa.

    Enquanto andava, a ansiedade se esvaiu, dando lugar a preocupação e um foco frio. 

    Atrás dos seus olhos, o mundo aos poucos começou a perder a saturação, ficando cada vez mais opaco, simples e cinza. A única cor que sobrou era o vermelho, que foi destacado, se tornando vibrante e chamativo. 

    Isso não seria muito perceptivo, se por algum motivo, pequenas gotas e manchas de sangue não estivessem espalhadas por toda a sua visão.

    Eram pequenas, facilmente passariam despercebidas se não estivessem marcadas pelo mundo. Estavam em todos os lugares, sujando a palma da mão das pessoas ao seu redor, na gola de camisas, na barra das calças e manchando cada objeto, rua, parede, às vezes era apenas uma gota, uma marca de mão, uma pegada mas estava lá.

    O barulho da vida urbana começou a diminuir cada vez mais, substituído por um som de gotejo. Ao redor, a população parecia alheia de tudo, Yaci era a única que experienciou aquela loucura, até que todos pararam.

    Um grito agudo, cortante, de puro horror calou o bairro. 

    O som aumentou, o céu se tornou vermelho carmesim, e logo, as nuvens desabaram em choro. Um choro sangrento, viscoso e vil.

    Tudo estava manchado. E tudo derretia. As pessoas urravam de dor enquanto sua pele escorria pelo seus corpos, dando lugar a músculos e nervos expostos. Para onde quer que olhasse, via apenas aquelas pessoas descarnadas gritando, chorando, clamando por ajuda. E Yaci, imaculada, nem uma única gota daquele sangue vil respingou nela. Estava ali, a um passo de tudo, com um véu fino, delicado a separando da morte lenta e agonizante.

    Mas sua segurança não durou para sempre. Da sua sombra, seis figuras começaram a escalar seus pés, subindo pelo seu corpo, infinitas mãos a puxavam para baixo, arranhando, cortando, arrancando pedaços. Subiram o suficiente para que seus rostos emergissem das sombras. Eles clamaram por ar, com suas bocas bem abertas e ofegantes, gaspeando por mais alguns momentos de vida, mas não conseguiam respirar. 

    Lá estavam, seus irmãos e irmãs, todos os seis, destruindo seu corpo, lançando-lhe olhares odiosos, ofegante para existirem mais um segundo em troca da sua carne e sangue.

    Doía, mas não tanto, a maior ferida surgiu ao observar os cadáveres de sua família, lutando para durar mais um instante no mundo, antes de serem levados pela misericórdia da morte

    Yaci aceitaria de bom grado trocar a sua vida pela deles, arrancaria com as próprias unhas cada parte de seu ser para ter um momento, só mais um momento com eles.

    Daria tudo para ver Iara costurando e remendando as roupas de todos, observar as invenções malucas de Rafael explodirem aleatoriamente, brincar com Tobias e Jasmim mais uma vez, lutar e competir com Gael e claro sentar junto dos outros para ver mais uma das aulas que Benjamin dava com tanta animação.

    Ela queria se doar, sacrificar-se, mas não conseguia. Com a mão trêmula e incerta, porém poderosa, ela agarrou o que restou de seus irmãos, lutando contra o desespero deles, impedindo que tirassem mais dela. Yaci não entendia como, nem porque estava fazendo isso. Queria se deixar ir, esvaecer e se juntar a eles, descansar, dessa vez para sempre. Mas não conseguia, no fundo de sua mente, algo inquebrável e inflexível brilhou dentro dela. 

    Pela força de suas mãos os corpos se desmontavam, quando os mortos, atônitos pela reviravolta, começaram a gritar, o véu que a protegia ruiu. Mas nem isso a parou.

    Puxando-os cada vez mais para fora das sombras, Yaci, com as duas mãos manchadas de sangue negro, ergueu um dos cadaveres acima de si. a maior parte da chuva de sangue atingiu Rafael, o qual ela erguia acima da cabeça com facilidade perturbadora. Não demorou para que sua pele começasse a cair e ele gritar em plenos pulmões, implorando que ela parasse.

    Chorou, mas não cedeu. Algumas gotas de sangue das quais não conseguiu se proteger a machucaram, levando consigo sua pele por onde escorria.

    Aos seus pés, uma massa disforme do material sombrio que formava seus irmãos se espalhava pelo chão, a visão e as últimas lamúrias de Rafael que se desfazia em suas mãos  feriram-na muito mais do que aquela chuva de sangue jamais conseguiria.

    Porém quanto mais dor sentia, mais voraz ficava. O brilho no fundo de sua mente, a vontade indomável de sobreviver que tomava conta do seu corpo se tornaram ainda mais brilhantes.

    Afinal, pessoas como ela não tinham escolha. Não podiam descansar. Só morriam depois de entregar tudo de si, somente após extinguir por completo sua alma. 

    Ela tinha que viver, não importa como, nem o preço a pagar.

    Quando tudo parecia perdido, e nada mais a podia proteger da chuva carmesim, ela sentiu o mundo sacudir, escutou seu nome ser chamado e em um piscar de olhos, estava encarando o teto de sua tenda.

    Foi tudo um sonho, ao seu lado, o Professor a olhava com uma expressão preocupada.

    — Yaci…

    — Estou bem! Só tive um pesadelo. — Disse ao sentar-se

    Entretanto, quando endireitou a postura, sentiu algo escorrer por suas narinas. Com um pensamento rápido jogou o torso para frente, evitando manchar as roupas.

    Do seu nariz, um fluxo contínuo de sangue jorrava. Sua cabeça aos poucos foi ficando pesada e um gosto metálico horrível tomou conta da sua boca.

    — Não Yaci, não foi só um pesadelo.

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