Capítulo 21: Viajantes
— O que?
O sangue não parava, mesmo jogando o rosto para frente, algumas gotas ainda mancharam suas roupas. Depois da cascata sangrenta que caiu de seu nariz, alguns fios vermelhos saíram de sua boca, olhos e ouvidos.
— Que porra essa! — Gritou em panico. — O que tá acontecendo comigo?!
— Se acalme — disse o professor, ao colocar as mãos nos ombros de Yaci.
Ele segurou seu rosto, o movendo com rispidez e analisando e a examinando com a frieza de um médico. Por fim declarou:
— Sua vida não está em risco, e você não está ferida, seu corpo não, pelo menos. Respire fundo, mesmo se sentir gosto de sangue. Se você se acalmar ele deve parar.
Isso não foi o suficiente para tranquilizá-la, mas ao menos afastou o medo de morrer por um sangramento interno, sobrenatural e aleatório.
— Tudo bem, tudo bem, é só se acalmar né?
Concentrou-se e respirou fundo. Sentiu as batidas do coração desacelerarem cada vez mais lentas, mais calmas e controladas. Logo o gosto de sangue sumiu. Seu nariz ainda estava sujo, mas nem de longe como antes. Seus olhos, ouvidos e boca estavam completamente limpos.
— Um ataque, de fato, mas não ao seu corpo, entende?
— Sim… Mas, o que me atacou?
O professor sorriu, adorava quando seus alunos tinham uma mentalidade rápida e afiada. Yaci estava quase lá, pena que ela ainda se negava a juntar os pontos quando isso significava destruir as ilusões que ela criou.
— Eu disse, sua casa é tão segura quanto o exterior.
Os olhos de Yaci se abriram em compreensão. O professor já sabia, Aby a alertou, ela tinha todas as peças para resolver o mistério e mesmo assim não o fez, se negou a fazer.
O fundo de sua íris acendeu com um brilho esmeralda, sua mente estava limpa de dúvidas, não havia medo e hesitação, ela tinha se decidido.
Pegou suas duas bolsas e começou a se preparar, levaria tudo que era importante, seus livros, seus pertences, suas roupas e claro, comida, toda comida que ganhará de presente.
— O que está fazendo? — Perguntou o professor com um sorriso no rosto.
— Arrumando minhas coisas é claro, e não são poucas! É melhor vocês se prepararem também, teremos uma longa viagem!
No meio de uma estrada de terra pouco usada, lá estava ele, um andarilho maltrapilho. Caminhando exausto, suas pernas não acompanhavam sua vontade, se movendo de forma vagarosa. Queria um abrigo, o afago de sua família, queria coisas que nunca poderá ter novamente. Seu corpo coberto de cicatrizes, A manga esquerda de seu casaco marrom amarrada, dando um pouco de conforto ao coto restante de seu braço.
Não demorou para que falhasse em manter sua determinação firme. Fraquejou, sua vontade derrocou e um instante depois seu corpo cedeu ao cansaço. Sem cerimônias, se esparramou no chão, sentado em meio a lama daquela estrada de terra no meio do nada, uma das poucas que restaram no meio daquele país tomado pela industrialização, pelo cinza, a morte e o concreto.
No meio de tanto sofrimento, teve um suspiro de paz ao observar o verde da natureza ao seu redor.
Entre a grama, os arbustos rasteiros, as árvores e a lama, seu cabelo carmesim brilhante se destacava, como uma chama fraca. Mesmo tapado por seu capuz, sujo e bagunçado, ele ainda queimava.
Benjamin estava a caminho de Verdemar, faltavam poucos dias para que chegasse ao seu destino. O tempo exato que iria demorar seria decidido por quanto tempo seu corpo aguentaria o abuso que vinha se submetendo.
A fome, sede e as feridas. Cada corte, hematoma, as pequenas fraturas e trincos em seus ossos. Eles se acumulavam até que estivesse pronto para pagar o preço por se livrar deles. Um por um, uma contusão ao desmaiar por exaustão, um corte ao esbarrar na vegetação fechada nas horas que precisava se esconder. A única certeza que tinha além de que um dia iria morrer, era que amanhã, quando acordasse, teria um novo machucado para a coleção.
Estava a um passo de desistir, relaxar todo seu corpo e esperar que os cães do Império o alcançassem, uma vida de serventia não podia ser tão ruim. Ele só tinha que colocar um sorriso falso no rosto, fazer as tarefas que os outros escolhiam para ele, ir para lugares que outros escolheriam para ele, ter amigos que outras pessoas escolheriam para ele, se casar, com uma mulher escolhida a dedo, que estaria sofrendo do mesmo destino que ele, sem escolha, sem decisão, sem futuro, e no fim, morrer quando não for mais útil para a família e para o Imperador.
Era fácil… Afinal ele não seria nada, apenas uma ferramenta, uma marionete, sem vontade nem personalidade.
“Sem escolhas, sem arrependimentos, né?”
Pensou ele.
Benjamin não era como Yaci, que ao nascer cerrou a mandíbula e cuspiu na cara do mundo, que desafiava a psique humana através do puro despeito a morte
— Se ela me visse assim, a primeira coisa que ela diria seria algo como: E daí se dói? E daí se estamos cansados? Precisamos fazer isso, não precisamos?! Então pronto, levanta e anda! Você que me ensinou isso…
Mais uma vez lágrimas encheram seus olhos. Que momentos maravilhosos ele viveu, cada aula que ministrou para seus irmãos naquela fábrica sombria, cada refeição que compartilhavam, as brincadeiras, os momentos que cuidavam daqueles que ficavam doentes, as sessões de costura com Iara, as horas posando para que Yaci pudesse desenhá-los. Ele tinha saudade.
“Fui que te ensinei Yaci… mas eu não sou como você!”
Seu queixo tremia, mas não era de frio, ele não conseguia sentir frio. Só calor, abrasador, fervente, era ódio. Mais uma ferida se abriu, sangue escorria de sua boca no momento em que cravou os dentes em seu lábio.
Não estava derramando mais lágrimas isoladas, agora chorava riachos de água fervente, vapor subindo dos seus olhos.
Memórias horrendas vieram à mente. Uma lança, sangue, a morte e a fuga. Essas imagens refletiam em seus olhos, estavam queimadas em sua alma.
Cerrou a mandíbula da mesma forma que Yaci fazia quando ia enfrentar algo do qual não podia vencer. Limpou as lágrimas e se levantou da mesma forma que ela fazia ao se negar a ser derrubada pela vida.
Não era como Yaci, mas estava se tornando como ela. Não por vontade, por necessidade. Aos poucos estava fazendo do impossível algo possível.
— Não, ainda não! — disse se levantando. — Vocês pagarão pelo que fizeram, vocês vão cair comigo, vão queimar comigo! — gritou.
E com esse grito, se inflamou em chamas tão vermelhas quanto o sol poente. Banhado no fogo carmesim, seu cansaço foi lavado, o sangue que escorreu rastejou de volta para si, e suas feridas fecharam, deixando para trás mais cicatrizes, mais marcas de queimadura.
Ele jamais voltaria, nunca perdoaria, o ducado Ardore ia pagar suas dívidas em sangue.
No instante que as chamas apagaram voltou a caminhar, esteve parado por muito tempo, ceder mais a fraqueza podia ser perigoso, eles poderiam alcançá-lo.
Deixou para trás um campo florido lindo, novas flores, de sementes a muito tempo adormecidas haviam brotado, ervas daninhas queimaram junto de fungos e pragas que minavam a beleza daquelas plantas.
A lama se secou junto de seus passos, criando um ambiente firme para ele andar, e um solo fértil para a vegetação que brotava em seu encalço.
Benjamin continuou seu caminho, era tortuoso, espinhento, e cheio de arrependimentos, mas era seu, ninguém escolheu por ele.
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