— Não precisa nem concordar, tá estampado na sua cara, menininha. Eu to é surpreso por você ainda estar viva!

    Yaci manteve seu silêncio, recuperando aos poucos sua compostura. O sol brilhava cada vez mais forte nas suas costas, projetando sua sombra à frente.

    — Yaci! Você está bem?! — Perguntou Hilda.

    Ela ofereceu ajuda para a menina se levantar. A puxou para cima, limpou suas roupas com tapas leves e gentis e conferiu seu rosto e braços procurando por hematomas. Aquele cuidado materno trouxe lembranças da Vó Heloísa.

    — Estou bem, obrigada Hilda. E vocês, como estão?

    Olhou primeiro para Pietro, preocupada que o susto o tivesse feito mal, mas o velho apenas acenou para ela, aparentava estar melhor do que ela.

    — Estou bem, só um pouco assustada, mas acho que todos estamos…

    Yaci acenou com a cabeça, e deu atenção ao homem que aguardava pacientemente pela sua resposta.

    — Está mais calma? E aí, podemos conversar sobre aquele bicho medonho?

    Yaci concordou, e o homem fez sinal para que ela o seguisse. Pararam na fogueira apagada.

    — Pode se sentar, tem essas cadeirinhas de pano para você não se sujar. Vou acender a fogueira e esquentar alguma coisa pra gente, tenho perguntas para você! Então vamos fazer uma troca, você responde tudo o que eu quero saber, e eu banco a comida hoje, fecho?

    — Fechado, senhor…

    — Quirrel, não precisa do senhor, vamos nos separar em pouco tempo então não precisa gravar meu nome.

    Não demorou muito para que a lenha começasse a estalar. Quirrel deixou duas caixas metálicas perto do fogo e sentou-se de frente para Yaci em uma cadeira similar. 

    Ambos encararam o fogo por alguns momentos, a fogueira era grande, então mesmo aqueles que não queriam o aconchego do fogo se aproximaram para esquentar seus cafés da manhã.

    Alguns usavam espetos ou galhos para deixar a comida sobre o fogo, outros como o mercenário deixavam marmitas de aço perto do fogo para esquentar seu conteúdo.

    — Água? — Ofereceu Quirrel

    — Tenho a minha.

    Ela tirou uma grande garrafa de vidro da mochila e deu um gole. Ele levantou uma sobrancelha, surpreso pela atitude da menina. Mas perdeu a atenção quando seu parceiro disse que aceitaria um pouco d’água.

    Levantou a garrafa acima da boca e derramou o líquido com calma, quando terminou de beber a fechou com força e jogou para o homem que havia pedido.

    — Não encosta a boca! — Avisou.

    — Tá, tá, não sou criança não…

    — Você é pior que uma criança!

    Yaci sorriu, divertida pela pequena interação. O homem pegou um galho e com cuidado retirou as marmitas do fogo. Deixou uma à frente dela e a outra pegou a outra para si. Tirou um pano grosso do bolso e usou para segurar o ferro quente por baixo sem se queimar.

    — Cuidado que tá quente pra caralho! Tem um pano ou alguma roupa pra segurar a marmita por baixo?

    Yaci levantou o polegar em afirmativo, mas percebeu que faltava algo para que pudesse comer.

    — Tem um garfo sobrando?

    — Não trouxe? Aqui, pega! 

    Jogou o garfo e ela pegou com destreza, imitou a forma que ele segurava a marmita sem se queimar, e começou a comer.

    Tirando os dois, ninguém comeu em volta da fogueira, o dia já havia raiado e o calor só aumentava perto do fogo. Todos se retiraram com suas comidas aquecidas para comer em seus respectivos grupos ou famílias.

    Hilda e Pietro se retiraram após o pedido de Yaci, para que pudesse conversar com o homem sem interrupções.

    A clareira foi recheada pelo som das conversas. A escassa vegetação não fazia um bom trabalho em esconder a transição da estrada de terra e barro, que cortava a floresta ao meio, para o cinza dos tijolos de concreto a distância, visível mesmo entre as árvores. O ambiente era pacífico, mesmo que a paz fosse falsa.

    Aquela mancha verde no meio da malha rodoviária do Império nunca traria consigo o mesmo esplendor e serenidade que uma exuberante floresta, Yaci não tinha como saber disso, mas sentia a superficialidade daquele local.

    O contorno fraco, as cores borradas, um desenho apagado com a folha machucada de tanto esfregar a borracha. Uma parte má preservada, de um todo que foi destruído há muito tempo.

    — Coma com calma, temos tempo para conversar. A noite durou minutos, então quando a adrenalina e felicidade por estar vivos passar, todo mundo vai precisar descansar. Principalmente nós! Já to sentindo meu olho pesar, acredita?

    — Acredito. Eu também estou ficando cansada e quero me reunir logo com meus companheiros. Então, consegue conversar enquanto come?

    — Consigo! Um pouco de falta de educação, mas quem precisa de educação no meio da estrada, né.

    Yaci acenou com a cabeça em concordância. E em seguida, com a boca cheia de comida, perguntou:

    — Como… ele era? — Disse entre mastigadas.

    Engoliu o que estava comendo, deu mais um gole d’água.

    — Horrível.

    — Sério? Não me diga! 

    Ela riu da própria piada, era bom ter um clima descontraído depois de tamanho susto. Yaci então passou a descrever o encontro com o encourado da melhor maneira que pôde, sem omitir nenhum detalhe.

    Não tinha nada a esconder, e era melhor parecer louca, do que não ter respostas naquele ponto.

    Quirrel escutou sem a interromper, nem mesmo nas partes mais inacreditáveis. Seu rosto sério e composto, prestando atenção até na entoação da menina, anotando cada detalhe da história, e como ressoavam com a criança à sua frente.

    — Você escutou a voz dele? Como você tá viva?! Não só isso, tá me dizendo que entendeu o que ele disse!

    — Uma parte! Entendi só uma parte, o resto era como descrevi para você ou melhor, tentei, se eu fosse descrever na lata assim, diria que é indescritível.

    Ele riu, não achou a menor graça, pelo contrário, foi a maior loucura que já ouviu, não era crível, impossível, mas mesmo assim, contra toda sua lógica, ele queria acreditar naquela menina.

    — Você é maluca. Insana. Completamente pirada.

    — Venho suspeitando disso há um tempo. Mas ainda não bati o martelo.

    — É Yaci, certo? Você pode ser louca, mas eu acredito em você. Um pouco, pelo menos, escutar um desses bichos já é perigoso, entender o que dizem é sentença de morte! Então não sei se acredito nessa parte, mas sua descrição é tudo que a gente precisava!

    Quirrel esbanjava animação e entusiasmo, os punhos cerrados, ansioso para colocar a mão na massa.

    — A gente?

    — É! Eu e o branquelo com cara de babaca ali. — Apontou para o outro mercenário que estava se preparando para tirar um cochilo. — Esse lance de guarda é mais um bico, pra aproveitar e fazer dinheiro entre as nossas viagens. A gente cataloga Fols para o governo.

    Ele tirou um grande caderno surrado de uma bolsa ao seu lado, abriu e jogou aos pés dela.

    Cada página continha desenhos e esboços detalhados sobre a anatomia, fisionomia e descrições detalhadas sobre as mais diversas criaturas.

    Um sorriso orgulhoso surgiu em sua face, enquanto ele mostrava seu trabalho.

    Os desenhos eram maravilhosamente detalhados, feitos com muito esmero, ela podia sentir o peso do lápis nas páginas. Sentindo e descobrindo um pouco sobre os momentos de criação daqueles desenhos.

    As linhas mais confusas e menos intencionais nos momentos de pressa entre as viagens, os traços precisos e planejados durante uma pausa muito merecida. Tudo estava ali, contando histórias das aventuras daqueles dois pelo mundo.

    “Boiuna, Lobisomem, Tutu, Fylgja e muito mais…” Folheando as páginas, os olhos de Yaci travaram em uma figura um pouco familiar. 

    “Corpo-Seco” 

    A descrição, os desenhos, tudo era familiar, mas não exatamente igual, mas parecia muito a coisa que quase a matou. Seus dedos ficaram brancos apertando o caderno, sua mente inundada por lembranças ruins. Ela continuou a ler, com um misto de animação e receio.

    “Quando um corpo sem alma é deixado ao relento, alguma coisa, ou alguém os toma para si, usando-os como marionetes. IPC(IMPORTANTE PARA CARALHO): Matar o mais rápido possível, evite o máximo que aquela coisa se aposse mais do corpo, quanto mais tempo passa, pior é para expurgar!”

    Era diferente… mas semelhante em alguns pontos. A lembrança reavivou, e mesmo ao lado do fogo, um arrepio atravessou sua alma.

    — O que são Fols? — perguntou com um nó na garganta.

    — Como assim? A gente acabou de ver um! Criaturas, aberrações, monstros, chame do que quiser. 

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