Capítulo 25: Novidades
Yaci continuava a encarar a página do corpo seco, tentando buscar mais atributos e semelhanças entre a criatura retratada no livro e a que tentou matá-la.
— E aquela co… — tentou perguntar, mas foi interrompida.
— Aquela coisa não é um fol. É vil, fere o próprio conceito de vida, não é um ser vivo nem um morto vivo. Aquela coisa provavelmente nunca viveu pra começo de conversa.
Disse com o rosto retorcido por raiva, um tom que pingava impaciência, adotando a comparação dos fols com o que fosse aquela coisa como uma ofensa pessoal.
Ela continuou a ler o livro, se perguntando como seria encontrar criaturas tão fantásticas e misteriosas. Já teve sua leva de encontros assustadores e experiências de quase morte. Não poderia encontrar um fol raposa fofinho? Um tipo de canino ou felino, filhote e bem pacifico de preferência?
— Você disse que era uma sentença de morte ouvir e entender o encourado, Por que ver e ouvir certas coisas é tão perigoso?
O homem coçou a careca e cerrou o rosto, suas marcas de expressão denunciando sua idade.
— Nessa você me fodeu… Olha, não tem explicação, tem coisas que só são! Em algum momento alguém vai descobrir, eu só não quero ser o cara que vai desvendar tudo isso. Tem coisas que é melhor deixar quieto sabe, deve ter um motivo por trás do mistério.
Yaci não gostou da resposta, mas sabia que Quirrel não estava mentindo, pois havia descoberto mais uma camada daquela pessoa.
Sobrepondo a visão do homem à sua frente, os traços e cores de uma criança curiosa, mas medrosa, porém o quadro ainda estava incompleto, ela só não sabia o que faltava. E talvez nunca descobrisse. Já tinha visto tantas facetas de Hilda e Pietro, mas mesmo assim mal via além dos esboços de quem eram.
Pessoas eram complicadas, delicadas e subjetivas. Mesmo retratando-as com perfeição em uma obra ainda deixaria detalhes. A tinta nunca alcançaria o brilho de uma mãe observando seu filho, o grafite, nunca demonstraria o cuidado de irmãos e irmãs. Poderia se aproximar, mas nunca o alcançaria no apogeu.
Ainda não satisfeita com a resposta, ela perguntou a ele uma pergunta que já se fez muitas vezes.
— Então como ainda estou viva? Se fosse tão perigoso assim já era pra eu estar com os pés juntos.
Ele a encarou, tentando formular alguma forma de responder aquele questionamento simples, porém sem solução aparente.
— Olha, é a primeira vez em muito tempo que eu falo essa frase várias vezes seguidas, mas eu não sei! Eu ainda acho que você está mentindo, ou alucinou, mas se você precisa de uma resposta pra tocar o barco e seguir com a vida, deve ser porque seus olhos são estranhos!
— O que?! — Yaci perguntou, alguns pontos finalmente fazendo sentido.
— De novo, eu não acredito em você, muito menos no que eu vejo, devo estar ficando com astigmatismo, mas seus olhos são estranhos, tem alguma coisa no fundo deles.
“Meu mundo… ele está percebendo o meu mundo pelos meus olhos?”
Sua memória se recordou do momento, e mais uma vez ela se viu aos pés do encourado, encarando aquele ser medonho e sendo encarada de volta com igual curiosidade e intensidade.
Tudo com que Yaci interagia tinha um esboço do que era, um contorno que o definia no mundo e era preenchido por cores das vivências e histórias que carregavam. Tudo, menos o encourado e o livro de capa preta.
A compreensão brilhou nos olhos da menina, tornando seu mundo mais preciso e real, cada vez mais se mesclando com a realidade ao seu redor.
“Como seria ver aquela criatura com meu olhos agora?” Pensou
Com um sorriso, feliz por ter descoberto pelo menos uma pequena parte do mistério, ela continuou a conversar, buscando descobrir mais sobre aquele mundo novo em que estava adentrando.
— Seu trabalho é viajar por aí caçando monstros e meus olhos são estranhos? Pensei que depois de ver tanta bizarrice você fosse mais mente aberta com a vida.
— Se liga, que eu nunca disse que caçava! Isso seria um desrespeito, cada dia que passa tem menos deles. Eles são animais normais, fazem parte da cadeia alimentar. Só são… peculiares! Mais espirituais do que reais? Não são maus nem bons, só vivem. Como tudo nesse planeta.
— E o corpo-seco, por exemplo? Eles não se apossam de cadáveres e matam pessoas?
Ele olhou para ela com um pouco de decepção, pensando se tinha colocado expectativas altas demais em uma criança.
— Abutres comem cadáveres, elas são más por causa disso? E bactérias, vírus, parasitas, vivem através de infestar e devorar corpos vivos! Não existe mal na natureza, existe o ciclo da vida!
Yaci queria perguntar o que era um um abutre, e como eram, pois ficou bem curiosa sobre a aparência de um animal que come cadáveres. Mas conseguiu captar a mensagem com o exemplo das bactérias e outros causadores de doenças.
Nós distritos da miséria e da pobreza, aves e animais de grande porte, eram mais raros do que árvores e plantas saudáveis.
Doenças por outro lado eram vilões muito conhecidos, provavelmente a maior causadora de mortes do Império.
Após inúmeros surtos e endemias, se tornou decreto a vacinação gratuita e obrigatória, como medida contra as quedas populacionais abruptas, é por consequência, quedas na formação de soldados e oficiais.
Yaci e seus irmãos, juntamente com todos nas favelas, eram vacinados. Não como proteção às suas vidas, mas para evitar que se tornassem vetores de contaminação para as outras castas da sociedade.
Ela entendia a analogia, fols não são malignos. Só precisam se alimentar, da mesma forma que uma onça mata para comer, eles o fazem da própria maneira.
E mesmo que não entendesse, tinha certeza que o homem à sua frente iria fazê-la entender, mesmo que levasse a viagem toda dando-lhe explicações e aulas sobre a biosfera mística em que habitavam.
Ele falava sobre aqueles seres misteriosos com um fascínio e brilho nos olhos. levava perguntas burras e preconceitos com seus protegidos ecológicos como ofensas à sua mãe.
A conversa a partir disso foi dominada por Quirrel destilando seu amor por essas raras e misteriosas criaturas, que não estarão andando pela terra em um futuro não tão distante.
— Você deveria ir descansar, já perdemos tempo demais conversando e a maioria de nós ainda não dormiu.
Ela concordou, se juntou a Pietro e Hilda, deitou-se na grama olhando para o céu azul aproveitando o momento de paz.
A sensação da terra macia abaixou dela era reconfortante, completamente diferente da terra em que rastejava para entrar e sair de casa, a grama fazendo cócegas em seus braços e rosto tinha um cheiro simples e relaxante que se misturava com o céu infinito recheado de nuvens, tão grande e vasto, porém tão pacífico.
Seus dois companheiros de viagem já roncavam há minutos, e ela tinha certeza que logo iria acompanhá-los naquela soneca.
Fechou seus olhos, sentindo a tensão e cansaço de seus músculos sendo lavada pela grama macia sob ela. Pensamentos e preocupações se apagando um a um, até que ela estivesse em algum lugar entre o sagrado silêncio e o sono.
Porém no instante que fazia a passagem e sua consciência caia no descanso profundo, algo puxou sua mente para fora do delicioso ócio em que se encontrava.
Levantando os olhos pesados, observou a sombra de um homem a observando entre as árvores, esperando que ela o acompanhasse para um lugar longe da atenção de todos.
Era o professor e seu olhar estava mais impaciente a cada segundo que passava, já Yaci, mais confusa, entre a falta de sono e os quilômetros que caminharam, ela tinha dificuldades de compreender a situação.
Mas a explicação veio rápido. Do fundo de sua mente, a voz de Aby ecoou:
— Levante-se Yaci, hoje você terá sua primeira aula.
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