Entre a confusão e o pânico, Yaci se jogou no chão, desviando de um chute devastador. 

    O professor a atacava com a medida perfeita entre a ferocidade animalesca e a precisão fria da técnica.

    Movendo-se freneticamente, sem um instante de descanso, lutando para se manter inteira nos meio daquela tempestade de golpes, Yaci tentava escutar os ensinamentos do seu tutor com o máximo de atenção que conseguia dispôr para a tarefa. 

    — Sua base é fraca, desse jeito vai cair a qualquer momento! — Para onde pensa que está olhando? Nunca tire os olhos do inimigo! — Ele vociferava sem esforço, sua voz estável sem o menor indício de cansaço.

    Ele fazia correções pontuais na maneira em que se movia, na forma em que firmava-se no chão. A indicava os principais pontos de atenção que deveria sempre ter em mente no meio de um combate, gritava em plenos pulmões, a trazendo de volta para a realidade no instante que seus olhos fossem nublados pela desatenção e o cansaço.

    Mas então, sua postura mudou. Ele se tornou mais feroz e impiedoso. Parou de gritar, sua próxima frase foi dita em tom baixo, porém Yaci ouviu como se fosse o som de um tambor retumbando dentro de sua cabeça.

    — Para de focar no que eu quero que você foque. — o som de tudo sumiu, mas parecia que as palavras ainda pesavam no ar à volta da menina.

    Ela torceu o tronco para baixo para esquivar de uma direta de esquerda, mas logo em seguida um joelho feito sombras a acertou no estômago.

    Yaci perdeu as forças e caiu no chão, um refluxo subiu por sua garganta, mas o engoliu de volta, já havia passado por muitos dias de fome para vomitar um almoço grátis. Ainda com o azedo do vômito espreitando sua mente ela se levantou.

    — Bom! Te dou dez segundos de pausa. Enquanto isso, me escute com toda sua atenção.

    Ela assentiu, refletindo em cada fala do professor.

    As primeiras duas frases pareciam tiradas diretamente de um livro de auto ajuda ou que um charlatão falaria para enganar alguém desprevenido.

    No quinto segundo, quando o corpo de Yaci finalmente relaxou e sua expressão transmitiu claramente sua confusão com as palavras rasas daquele velho misterioso, o professor avançou com um soco devastador.

    Um fio de sangue apareceu no rosto da menina, ela conseguiu escapar por pouco ao mover o rosto de maneira brusca para o lado. E assim, a lição de verdade continuou.

    Um chute rasteiro flutuou pela grama, acertando sua canela. 

    — Você pensa demais…

    Ele socou o estômago dela com um movimento amplo, juntando força para um golpe devastador. 

    Yaci não tinha treinamento em lutas, suas experiências com violência eram brutas e selvagens, em sua maioria se juntando aos irmãos para se protegerem de ameaças.

    Mas ela tinha um instinto e uma vontade maiores que o medo primitivo e paralisante.

    Contradizendo toda lógica, que a mandava fugir, ela se aproximou, jogando-se sobre o punho do professor e o agarrando com as mãos, antes que pudesse acumular mais força.

    Doeu, mas funcionou. Ou melhor, ela por um momento pensou ter funcionado.

    — Você cai em fintas óbvias… — disse uma voz séria, sem desdém ou sarcasmo, apenas relatando a pura verdade.

    O punho restante atingiu o rosto de Yaci em cheio. A menina caiu para trás, com o nariz pingando sangue, mas não se deu por vencida, e logo já estava em pé novamente.

    — Bom… muito bom! Como prometido, você lutou comigo sem reclamar e sem desistir por dois minutos, agora sente-se, vamos as devidas explicações.

    Yaci permaneceu em pé, pronta para reagir. Jamais cairia no mesmo truque duas vezes seguidas. O professor vendo isso riu um pouco, feliz que a lição tinha sido aprendida. Ela, por outro lado, não perdeu tempo limpando o nariz, apenas se manteve em alerta esperando pelo próximo ataque.

    O velho relaxou o corpo, levantou os braços em sinal de trégua. 

    — Pode sentar, é sério dessa vez!

    No fim, após ver que a menina não tinha nenhuma intenção de acreditar em sua palavra, disse em rendição a teimosia dela.

    — Me chute! De qualquer jeito, apenas me chute com o máximo de força que puder.

    Yaci levantou a sobrancelha, mas mesmo receosa acatou o pedido. Correu em direção ao velho à sua frente. Mas antes mesmo do golpe ser completado, o professor, de forma fluida, rodopiou ao lado da menina, lançando seu pé para trás dela, e puxando o de volta, derrubando-a sentada, com uma banda de letra, sem muito esforço.

    Yaci no chão, um pouco frustrada por não conseguir nem mesmo arranhar o velhote exibido, observava ele se sentar à sua frente.

    Ele se sentava de pernas cruzadas, relaxado. Mas sua expressão se tornou séria, e suas palavras perderam toda a leveza que detinham ao começar sua explicação.

    — Para um indivíduo acordar, ele deve primeiro se quebrar, quebrar quem ele acha que é. Só dessa forma é possível quebrar o selo que separa a alma da mente e da carne. Pois ele deixa de ser quem pensava ser, para quem é de fato.

    Ele parou por alguns instantes, deixando aquela informação afundar na consciência da menina antes de continuar.

    — Você já quebrou o selo entre a alma e a mente, e agora habita o seu mundo, lembre-se, só você vê o mundo assim, é seu, somente seu.

    Ele continuou sem pressa, aproveitando aquela interação aluno e professor. Seus olhos transbordando em nostalgia mal contida, de lembranças que Yaci entendeu serem dolorosas demais para que ele a contasse sobre.

    — Normalmente quebrasse o selo do corpo primeiro, mas isso não é problema, nosso objetivo a partir de agora, é quebrar o selo da alma com o corpo e começar a caminhar para integrar todos em uma única coisa.

    — Como quebramos o selo então? — perguntou, ansiando por respostas.

    Ele gargalhou, o riso escorrendo com um toque de acidez e maldade.

    — A alma deve estar em sintonia com o anseio mais ardente da carne, normalmente sendo a vontade de viver ou sobreviver. E o corpo deve ser forte o suficiente para abrigar a alma e coexistir com ela. 

    — E como fazemos isso?

    — Você vai ver… dito isso, provavelmente temos mais quinze minutos antes que as pessoas dêem falta de você. Não se preocupe se alguém vier aqui no meio do seu treinamento, vão simplesmente pensar que você é maluca, já que ninguém pode me ver.

    — Espera! Tenho uma coisa para perguntar.

    — Sem tempo, pergunta enquanto corre, vai, vai, xispa da minha frente, corra o máximo de voltas que conseguir até que o nosso tempo acabe. E é pra correr como se sua vida dependesse disso, o mais rápido que você conseguir, capiche?

    Alguns grunhidos de cansaço depois, Yaci estava correndo pela clareira. Estava há um dia sem dormir, havia hematomas espalhados pelo seu corpo, lançando pontadas de dor a cada passo que dava. 

    Era extenuante e doloroso, o suficiente para que ela quase se esquecesse da dúvida que assolava seus pensamentos.

    — Você… você disse que eu já quebrei o selo… da alma e mente. — grunhiu entre arfadas.

    Ao bater a marca dos cinco minutos correndo, seus músculos gritavam através da tensão colocada sobre eles cobrando-a pelo cansaço acumulado dos últimos dias. Os olhos ardiam por causa do suor e as pálpebras tremiam na fútil tentativa de limpar sua visão. Os pulmões queimavam, clamando por uma lufada de ar, curtas, quentes.

    — Eu disse. — Finalmente respondeu, sem se dar ao trabalho de olhá-la.

    — Como eu fiz isso?! Quer dizer, ele só quebrou? Se fosse assim esse tipo de coisa não deveria ser tão raro…

    O professor, não estava espantado com a pergunta, ele estava completamente chocado. Sua incredulidade vazou para seu rosto em uma careta no mínimo engraçada.

    — Você é maluca? Quer dizer, isso deveria ser uma afirmação, afinal só sendo uma completa insana para quebrar o selo.

    — Isso ainda não explica nada! — reclamou a menina 

    A expressão de surpresa do velho só aumentou quando percebeu que a garota realmente não entendia.

    — Tá de sacanagem pirralha?! Já fez a retrospectiva do seu último ano? — Ele gritou, com raiva pela incompetência que a menina demonstrava.

    Mas mesmo assim, Yaci não entendia. Um pouco assustada com a reação do velho, que até então parecia tão descontraído e exagerado, ela parou de correr, e concentrou seu olhar em seu professor em busca de respostas.

    Neste ponto a grama por onde Yaci correu estava amassada, delineando o caminho irregular entre as árvores que ela vinha percorrendo.

    O velho, por outro lado, depois de ver os olhos verdes da menina, cheios de confusão, se lembrou de um fato que para quem vive no inferno, o mesmo passa a ser cotidiano. O intragável se torna banal.

    De fato, Yaci não era uma gênia, muito menos alguém a ser exaltada. Ela era, antes de tudo, uma menina, da qual a única coisa que era digna era a pena.

    — Yaci, o método para quebrar o selo da mente, não é outro, se não colocar tanta pressão na mente, até que ela quebre junto do selo. Só depois de catar os cacos vemos o mundo.

    Ela entendeu, mas por incrível que pareça, não via semelhança com sua própria vida, ou mesmo via motivo para que alguém como ela obtivesse um feito que outros sofreram tanto para alcançar.

    O professor deu um suspiro profundo e penoso, surpreso em como a menina não via o próprio mártir.

    — Deixa eu colocar dessa forma… durante um ano você por escolha própria, passou fome e comeu coisas que fariam adultos vomitarem tendo o equivalente a um banquete no quarto ao lado. Em prol de esperar seus irmãos, que você não tem certeza que estão vivos. 

    Não bastasse isso, mesmo nesse tipo de situação você ainda se colocava em lugares perigosos todos os dias para procurar por qualquer resquício desses mesmos irmãos, se colocando em perigo, para no fim passar por algumas experiências de quase morte.

    Em outras palavras, você é louca.

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