“Eu sinto dor, portanto eu existo.”

    Antes do primeiro pensamento, houve a dor de nascer, o grito gutural carregando a tristeza da confirmação da existência.

    O berro agudo e irritante é simplesmente o ponto de partida da vida. Nasce aos berros, chorando em desespero e dor. Morre-se em silêncio, aos poucos perdendo o sentido, até que a paz finalmente alcance quem tanto fugiu dela.

    “Eu me lembro da paz, durou pouco, algumas semanas no máximo, escuridão infindável, o abraço confortável de se ter somente uma consciência. É cômico, para não dizer trágico, a paz foi tirada de mim, mas a escuridão não…”

    Seus olhos brancos observavam uma parede vazia, ainda sentada em uma cadeira, tateou ao seu redor até achar sua bengala de apoio. A segurou firme na mão e se dirigiu com confiança para seu quarto. A cada passo abstraía os diversos sons da cidade. 

    A vida em todas as suas formas produzia sons, o tinido, tom, as oitavas e as afinações, todos carregavam sutis significados. A mulher os percebia com maestria, explorava o mundo exterior, depois de sua janela, por toda cacofonia da vida que chegava aos seus ouvidos.

    Mas hoje precisava de foco. E como era difícil manter-se concentrada, conter a excitação. Pois era hoje, o dia mais aguardado de sua vida.

    Habilmente navegou através dos móveis e cômodos sinuosos de sua enorme casa. Desceu com leveza as escadas, com sua mão deslizando pelo corrimão de mogno. 

    Seus dois gatos se animaram ao vê-la. Rodearam seus tornozelos, os pelos longos e cheios dos animais tão brancos quanto marfim faziam cócegas quando passavam por ela. 

    — Bom dia bebês! 

    Abaixou-se para afagar as pequenas bolas de pelo. Neste movimento uma cascata ruiva de seus frondosos cachos caíram para frente, como uma cachoeira alaranjada.

    Dedicou os próximos minutos àquelas criaturinhas tão preciosas. Pegou-as no colo, abraçou, beijou. Ela na verdade se despediu.

    Sentiria falta deles quando alcançasse a paz? Não, seria impossível. Não há saudade, tristeza ou alegria na paz misericordiosa, apenas… paz.

    No amplo espaço aberto do salão de sua casa, usou sua bengala indiscriminadamente, ela se movia sem pausa ao redor, procurando por algo.

    Mas antes que pudesse achar, a campainha tocou.

    Se moveu para a porta com graça, tomou cuidado com os degraus. Ao abrir, uma face conhecida a esperava.

    Obviamente não sabia como era sua face. Mas poderia reconhecer aquele jovem a frente dela mesmo que mudasse de rosto.

    — Olá madame Carmelita, você… está mais linda do que nunca hoje.

    A voz se afinando ao final da frase, o coração acelerado tocando uma sinfonia firme e saudável. Aquele jovem entregador estava terrivelmente apaixonado.

    Carmelita sorriu, o jovem não sabia, mas seu coração, sangue e voz elogiavam a madame daquela casa mais do que qualquer palavra poderia representar.

    O sorriso foi tão brilhante e ela tinha quase certeza que o ouviu o coração do rapaz perdeu uma batida e se atrapalhar na sinfonia.

    — Obrigada Jean! Salvou meu almoço mais uma vez.

    Diferente dos outros santos, que se isolaram do mundo, Carmelita permaneceu todas as suas eras entre mundanos. Justamente por esse tipo de interação.

    Incapaz de presenciar a maldade do mundo por conta própria, decidiu sentir. Sentir tudo, e ser sentida de volta. De fato, foi a santa que mais viveu. 

    Amigos, inimigos, paixões, rivalidades, nunca se esqueceu de nenhuma.

    Nem negou seus sentimentos por covardia, mesmo que soubesse que tudo terminaria em luto e dor. A eternidade lhe atribuiu o dever de viver até que Eles dessem o último suspiro desta era. Ela simplesmente escolheu carregar mais um fardo, o de não se fechar para o mundo.

    Era revigorante ouvir um coração jovem pular, o suficiente para acelerar o seu antigo, mesmo que um pouco. 

    “Uma pena, que péssimo timing…”

    — Por nada, é sempre um prazer poder te ver. Aqui está seu pedido… — deu uma leve pausa em sua fala para juntar coragem. — Veja, um conhecido meu abriu um restaurante, a inauguração vai ser esse fim de semana, gostaria de vir comigo para um jantar?

    Pega de surpresa, sua expressão suave desmanchou. Um sorriso melancólico, que não mostrava os dentes tomou o lugar.

    A tristeza no olhar esmaecido de Carmelita respondeu por ela. 

    — Se for um momento complicado tudo bem, podemos jogar para uma data mais a fren…

    — Não é isso. — Ela cortou — Quero dizer, é um momento ruim, mas não um passageiro… você não terá mais notícias de mim, acho que pode-se dizer que hoje é nossa despedida. Eu vou me mudar para longe, não pretendo voltar.

    O fervor no sangue do rapaz diminuiu, os batimentos desacelerando orquestraram um réquiem para sua paixão, que naquele momento morreu junto com todas as esperanças e sonhos de romance que tinha com aquela dama saída de seus sonhos.

    — Eu entendo… Me desculpa pelo desconforto então, sei como esse tipo de mudança é exaustiva. 

    O Jovem se virou e começou a caminhar para longe, mas no último degrau da escada que levava para rua parou. Com pressa tirou um papel grosso e texturizado do bolso. Com pressa voltou para a frente de Carmelita, e com delicadeza segurou suas mãos.

    Seus batimentos cantavam uma música romântica, mas trágica, sua respiração curta denunciava seu nervosismo e dúvida. Mas nada disso impediu o rapaz de falar.

    — Senhorita Carmelita, não quero ser mais uma preocupação sua nesse momento tão conturbado, não vou insistir mais no assunto, mas se precisar de mim para qualquer coisa, pode me chamar pessoalmente. Aqui, preparei isso para você para que tivéssemos mais contato, mas acho que logo ficará sem utilidade. 

    Ainda segurando uma de suas mãos, lhe entregou gentilmente o papel. Ao passar os dedos por ele, para desvendar o que o rapaz lhe entregou, Carmelita não podia ficar mais surpresa.

    O papel estava escrito em braile, continha o número da linha telefônica da residência do rapaz, junto com um endereço.

    — Como você escreveu isso?

    O papel estava um pouco machucado, os furos irregulares, alguns mais fundos que outros, mas completamente legíveis.

    — Ah… primeiro eu achei um livro com o alfabeto em Braille, depois eu fiquei um tempo tentando pensar em alguma maneira de marcar o papel com os furos. No final eu acabei usando um martelo e um prego.

    A mulher à sua frente gargalhou. Sua risada era a coisa mais linda que o rapaz já escutou em toda a vida. Queria ele, poder fazê-lá rir todos os dias, para escutar esse riso tão belo.

    — Ficou muito ruim? — Jean perguntou apreensivo.

    Carmelita passou os dedos pelo papel mais uma vez apreciando o carinho que o jovem sentia por ela.

    Realmente, era impossível não se emocionar.

    Milênios se passaram e de tudo já fizeram para ela. Reis mandaram alaúdes tocarem liras de amor para ela. Poetas recitaram suas rimas, ajoelhados aos seus pés, algumas dessas, tão famosas reverberam até hoje, sendo estudadas escritores e historiadores.

    Carmelita viveu por eras, mas sempre foi tratada da mesma maneira. Mesmo depois de a verem empunhar uma arma contra exércitos, fora do campo de batalha ela voltava a ser uma jóia preciosa. Frágil, que deveria ser mantida a distância na cristaleira. 

    Nunca se dirigiram a ela como um indivíduo, em guerras era uma arma, na paz, no máximo um ornamento. 

    Pela primeira vez, alguém se dirigiu para ela, escreveu uma mensagem para ela, na língua dela.

    Não havia intermediário, apenas Carmelita e Jean.

    — Foi a coisa mais pessoal que alguém já fez para mim… — Ela respondeu, limpando uma lágrima que havia escapado.

    Ela ficou rente ao corrimão dos degraus que levavam a rua, deu passos ágeis até a calçada. Ela escutava as conversas paralelas dos transeuntes nas ruas, os sons dos motores, que nos últimos anos, de pouco em pouco substituíram o bater de cascos dos cavalos. 

    Lá no meio do mundo, abraçou o jovem, com toda sua ternura. Com a cabeça encostada em seu peito, ouviu de perto todas as mensagens e juras de amor que o coração de Jean produzia, sem ter como esconder. Esse foi o presente de despedida que deu para ele.

    Jean, por outro lado, quase não conseguiu retribuir o abraço. Ali, preso pelos braços daquela mulher, ele não se sentiu amado, se sentiu seguro. Se perguntou, como alguém tão pequeno e cego conseguia exalar tanta confiança.

    Mas depois de ponderar por mais um segundo, não se importou, a segurança relaxou sua mente das inseguranças que sofria, e no abraço carinhoso dela, ele se permitiu derreter.

    No fim eles se despediram. Jean, com um sentimento amargo, um desejo de afeto, um ruído branco que tirava sua atenção. 

    Carmelita, tinha pena, e talvez, se pensasse muito, uma pitada de arrependimento.

    Ambos sacudiram o corpo e deixaram o vento levar o que sentiam, precisavam continuar o dia, as tarefas e as responsabilidades.

    Já dentro de casa, ela voltou a procurar, passando nervosamente o bastão pelo chão. 

    Debaixo do tapete, o bastão travou, preso por um vão pequeno entre as tábuas de madeira do assoalho.

    E se abaixou com delicadeza, debaixo da placa de madeira, havia uma caixa de mármore branco, adornada com veios de ouro. 

    Por fim, colocou tudo no lugar. Demorou um pouco, mas não precisava estar perfeito, um pouco de bagunça caia bem no cenário que precisava criar.

    Começou a marchar em direção a sala, sentando-se em uma poltrona de couro sinuosa, de frente para uma gigantesca estante de livros, todos feitos a mão, com capas e costura customizados, por um homem chamado Henri, escritos em braille, desde o título, até mesmo a dedicatória, todas no nome de sua irmã, Carmelita.

    Ela abriu a caixa, retirando de lá um grande revólver antigo, passando a mão pela sua superfície perfeitamente lisa, exceto pelas runas gravadas e arranhadas na superfície de mármore da arma, linhas e quinas de ouro, frios ao toque lhe davam uma sensação de nobreza, apesar do propósito sujo do objeto.

    Descansou a arma no colo, enquanto tateou o fundo da caixa, procurando balas. Sentiu na ponta dos dedos, os volumes pedregosos e porosos. Eram as balas negras como o mais profundo céu da noite. Pegou uma entre os dedos, não era fria nem quente, parecia não existir mesmo a segurando, apertava com força para não perdê-la.

    Com delicadeza, usou a mão livre para abrir o tambor do revólver, para finalmente colocar a bala. 

    Finalmente, era chegada a hora. Colocou a caixa no chão, se ajeitou na cadeira e se fez confortável, mesmo que fosse hora de dizer adeus, faria em seus termos.

    No caminho de erguer o revólver até sua têmpora, pensou primeiro em seus gatos.

    Aquelas criaturas tão preciosas, como iriam reagir se, no dia seguinte, ela não aparecesse Eles não iam entender, não tinham como, apenas sentiriam sua falta. 

    Então fraquejou pela primeira vez. Afinal, as pequenas bolas de pelos viveriam no máximo por mais uma década. 

    Envelhecer era uma dádiva, na qual ela não tinha direito, mas afetava seus tão amados felinos.

    Para quem faria mal adiar o fim por mais alguns anos, além dela mesma? 

    Ela podia esperar, cuidar com todo carinho até o último suspiro amoroso de seus gatos.

    “Vivi por milênios, senti o luto mais vezes do que qualquer outra pessoa, o que é mais uma gota nesse meu oceano…” 

    Depois, veio fraquejar pela segunda vez.

    Lembrou de Jean, como o jovem estava no auge dos seus vinte. Quantos parceiros e parceiras ela viu envelhecer ao seu lado, quantos enterrou? 

    Mais uma vez, se o mundo estava fadado à extinção, que diferença fazia viver algumas décadas a mais. Queria ligar para o número naquele papel, chamá-lo para um encontro, mostrar ao rapaz que o mundo era muito maior do que ele pensava.

    Quanto tempo mais? Sessenta, setenta anos? 

    É o tempo de uma vida humana comum.

    “Viver mais uma vida não vai machucar ninguém, além de mim é claro. Era meu sofrimento, e talvez eu queira sofrê-lo um pouco mais.”

    O cano frio do revólver estava encostado em sua têmpora, mas ela havia tomado uma decisão, iria viver mais uma vida, sim, seria sua despedida, antes de enfim abraçar a paz.

    Porém, no instante que moveu o revólver um centímetro para baixo, uma mão cobriu a sua, e com força, pressionou novamente a arma contra sua cabeça.

    — Não, você não tem esse direito, e sabe disso. Promessa é dívida Car. Independente dos seus sentimentos, isso acaba hoje.

    Dália não esperou Carmelita responder antes de puxar o gatilho. O som assustou a vizinhança, os gatos se esconderam debaixo de uma cama. Na sala só havia um cadáver com um revólver de aparência normal em mãos.

    Naquele dia a Santa da bondade morreu, e a verdadeira maldade, impiedade e crueldade foram derramadas no mundo.

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