Quem era aquele homem? Ele era mesmo “só um homem”? 

    Não, com certeza não, Yaci fez essa pergunta algumas vezes, mas algo estava muito claro naquela situação.

    “Ele” não era qualquer um! Afinal, ele carregava com ele um livro proibido para o público, além daquele livro estranho!

    Pode se supor que era um militar, já que o livro era proibido para civis. Entretanto, não era raro pessoas ricas contrabandeando coisas proibidas, nada era impossível para quem tem dinheiro o suficiente.

    As duas coisas da qual ela tinha certeza, é que aquele homem era perigoso. E “eles” que estavam atrás dele, também eram

    Yaci olhou para os itens que o homem tinha dado para ela em seus momentos finais, e escolheu qual ela iria verificar primeiro.

    Esticou as mãos, pegou o colar, e o observou com cuidado. Era de prata, incrustado com uma jóia laranja estranha, que não havia sido lapidada, e no aro que segurava a jóia, uma série de símbolos estranhos estavam desenhados diretamente no metal.

    — Isso vale algum dinheiro? Nah, acho que não… não deve valer dinheiro, mas a Iara ia gostar, ela sempre dizia que ia ter muitas jóias quando nossa vida melhorasse.

    Yaci pensou um pouco, e depois de um pouco de hesitação, ela colocou o colar. Era um pouco grande, mas confortável, parecia normal, mas com o tempo uma sensação calorosa se instalou em seu coração, e se espalhou lentamente para o resto corpo. Ela parecia… leve? 

    — Isso, essa sensação, é o colar?! Não, impossível né? Certo, logo logo deve passar.

    Mas não passou. E agora, um pouco em pânico, Yaci se questionava se tirava o colar. A sensação era boa, mas desconhecida, e o desconhecido era o medo mais comum da humanidade.

    Então, esperando que a “leveza” que sentia passasse, ela começou a pensar sobre o outro item deixado pelo homem misterioso.

    — Hum, esse anel não vai ser esquisitinho igual o colar… né?

    Yaci começou a falar sozinha, na esperança de que a voz em sua cabeça, a “sombra”, a respondesse. Mas ela estava bastante silenciosa depois de suas aparições.

    No final, decidiu analisar o anel. Mas não o colocaria de forma despreocupada como fez com o colar. Ainda não sabia que sensação era aquela, sentia que era benéfica, mas, e se o efeito do anel não fosse?

    Isso a deixou com uma espécie de repulsa com o anel, talvez só encostar nele desencadeasse sua maldição!

    “Tá bom Yaci, é só um anel, você pega, olha, e só!”

    Respirou fundo, tomou coragem, e assim foi feito. O anel tinha uma ornamentação quadrada e era de ouro, incrustado com uma gema vermelha lapidada lindamente, era bastante pesado e grande, tão grande que mesmo colocando dois dedos, o pedaço maciço de ouro ainda ficava com folga.

    Não havia símbolos estranhos desenhados nele, parecia apenas, desnecessariamente caro.

    — Agora sim, isso aqui com certeza deve ser valioso!

    Seu plano era claro, vender, ela não tinha ideia de quanto iria valer um anel de ouro tão grande, e com uma gema tão chique quanto aquela! 

    “Certeza que alguém pagaria bastante por algo tão bonito!”

    O anel era grande demais para que coubesse no dedo de uma criança, mas um pensamento divertido apareceu em sua mente.

    “Talvez dê no dedo da sombra, ela era bem grande no sonho.”

    Terminando com o anel, ela o guardou, ou melhor, escondeu, deixando-o em cima da caixa fria, dentro do esconderijo.

    Agora, ela não tinha nada para fazer, tinha tempo livre, na verdade, ela tinha muito tempo livre. Se quisesse, não precisava sair para procurar comida amanhã, e nem pelas próximas semanas, apenas teria que pegar um pouco de dinheiro e comprar comida para abastecê-la para a semana. Se o dinheiro acabasse, escolheria um dia especialmente calmo e venderia o anel.

    — Isso… é perfeito! As coisas estão ficando malucas demais para sair todo dia para procurar todo mundo, eu deveria deixar as coisas se acalmarem lá fora. Ou melhor…

    Seus olhos pousaram nos 2 livros e nos lápis e canetas espalhados pelo chão.

    — Eu vou ter tempo o suficiente para estudar bastante! É como você queria Benjamim, é quase igual aquelas escolas de que você sempre falava! 

    Ela estava tão feliz que dava pulinhos enquanto andava.

    Seu plano estava montado, ficaria em casa estudando, e nos dias que sair para comprar comida para a semana, procuraria pelos seus irmãos.

    Já era de manhã então Yaci decidiu que era melhor começar agora. Ela estava realmente animada. E assim, depois de um ano, sua rotina finalmente tinha mudado.

    Ela separou um pouco de dinheiro, saiu de casa, e foi procurar algum lugar que vendesse bastante comida por um preço barato.

    Yaci sabia que não acharia nada disso no distrito da miséria, então partiu para o distrito da pobreza, para tentar achar alguma loja, restaurante, padaria, hortifruti, qualquer coisa, que atendesse suas necessidades.

    Entretanto, desta vez, Yaci foi de manhã, e como estava procurando estabelecimentos não podia ir se escondendo pelos becos, teria que andar pelas vias e ruas principais e movimentadas da cidade. Onde é claro, haveria ostracismo por parte dos moradores e pedestres.

    Yaci nunca estava completamente limpa, ainda mais considerando que ela tinha que rastejar na terra para chegar em casa. Porém, ela nunca achou que isso fosse motivo o suficiente para que as pessoas olhassem para ela com tanto desgosto. 

    Nunca foi uma experiência agradável, mas sua família a ensinou a lidar com isso muito cedo em sua vida. A solução era a mesma que as crianças nas favelas do império da verdade usavam para muitas coisas: cerrar os dentes e seguir com a vida.

    Ela passou por diversas lojas, feiras e restaurantes. Sempre com uma educação impecável e sempre demonstrando que podia e iria pagar, afinal, foi Benjamin que a educou, como ele era tão educado e inteligente?

    Ela não fazia ideia, mas sempre lhe foi grata por passar para ela tudo que ele sabia. Entretanto, não importava quão educada fosse, as pessoas sempre a olhavam com desprezo ou nojo. O local onde vivia, importava muito mais do que sua educação ou até mesmo o dinheiro que ela carregava.

    A comoção e o medo que todos presenciaram ontem parecia uma memória distante, as ruas estavam movimentadas, algumas poucas coisas indicavam que algo havia acontecido, como pessoas sussurrando com expressões assustadas, algumas ruas e calçadas mais quebradas que o normal.

    Logo toda aquela atenção, tensão e preocupação que se afloraram ontem, não tinham outro lugar para recair senão em Yaci.

    — Oh favelada, dane-se que você pode pagar, eu não quero esse seu dinheiro roubado. — Disse o dono de um mercadinho de esquina.

    — Volta pro bueiro onde você mora, imundice! — Gritou um adolescente que passava pela rua.

    E assim seguiu seu dia, indo até um lugar, visitando seus estabelecimentos, somente para ser xingada e mandada para fora. Até que, no início da tarde, em uma área da zona oeste, Yaci entrou em uma rua sem saída, basicamente um condomínio, mas sem grades. A grande rua seguia ovalada, com diversas casas simples mas confortáveis, todas com pequenos jardins e hortas cercadas por cercas de madeira. No meio de todas essas lindas residências, estava um pequeno estabelecimento, a fachada de madeira estava escrito em letras garrafais: Padaria!

    A entrada era feita em vidro, e todos podiam ver as delícias que descansavam nas prateleiras e balcões.

    A menina entrou, já se preparando para qual xingamento ela ouviria dessa vez, talvez fosse um novo, que ela nunca tenha escutado antes! Era difícil, mas quem sabe, talvez o dono do estabelecimento fosse muito criativo.

    Dentro, encostadas em uma das  paredes de azulejos brancos, 3 mesinhas de madeira, maltratadas pelo tempo, com duas cadeiras cada, igualmente velhas. Tudo isso, a frente de um balcão branco, com uma máquina registradora e um sininho de prata em cima.

    Indo em direção a esse sino, deu-lhe um pequeno toque. Dele saiu um tilintar fino, quase irritante, que pode ser ouvido por toda loja.

    Alguns segundo depois, vindo de uma porta de madeira atrás do balcão branco, a voz de uma mulher carinhosa, amável e envelhecida falou.

    — Já vai! 

    Passos lentos mas firmes, ficaram cada vez mais altos conforme a dona daquela voz se aproximava. Então a porta se abriu, e passando por ela, entrou no recinto uma mulher, provavelmente no final de seus sessenta anos de idade, com seus cabelos loiros já meio grisalhos. 

    Ela vestia um vestido azul, com estampas de flores, seu rosto mesmo coberto de rugas ainda tinha uma expressão de alegria e junto de sua postura firme e confiante tornava quase impossível discernir a idade daquela senhora.

    A única coisa que destoava da imagem jovial dela, eram seus olhos marrons, plácidos, calmos como um lago, cheios de experiência, vitórias, derrotas, orgulhos e arrependimentos, olhos que aqueles que agora tem mais passado, do que futuro.

    Parada em frente ao balcão, ela olhou em volta, procurando quem havia tocado o sino.

    — Boa tarde senhora, eu estou aqui!

    Olhando um pouco para baixo, viu então uma menina, uma cabeça mais alta que seu balcão, com cabelos prateados e reluzentes como metal, parecidos até demais com metal para que ela não achasse estranho.

    A menina a olhava de forma séria e desconfiada, como se esperasse o pior. 

    — Olhe só! Me desculpe por não te ver aí menininha. Ao que devo o prazer da sua visita? 

    Ela disse com o sorriso mais aconchegante e acolhedor que Yaci já tinha visto.

    — Eu preciso comprar comida… o suficiente para durar o mês, mais ou menos. Ah é claro, senhora não precisa se preocupar, eu tenho dinheiro e vou pagar.

    A senhora tricotou as sobrancelhas, aos poucos compreendendo porque aquela criança tinha um olhar tão triste escondido nos fundos dos olhos.

    — Não tenho dúvidas que você possa, e que vá pagar pequena, mas isso é uma padaria, quase nada do que vendo dura mais do que uma semana, isso é claro, no limite, o pão fica duro, o salgado perde o sabor, assim por diante, no máximos, tem algumas frutas, mas só as mais verdes devem durar tanto, mesmo na geladeira essas coisas perdem a qualidade. Você deveria ir ao mercado, tem vários no caminho para cá.

    — Eles não vendem para mim.

    As palavras saíram ríspidas, atingindo a velha mulher de surpresa. 

    Seu humor murchou, finalmente entendo como aquela criança havia chego em sua padaria. No caminho até lá havia inúmeros comércios, não tinha como ela não achar o que procurava neles. A não ser é claro, se os proprietários se recusassem a vender para a menina.

    A idosa deu um suspiro longo, expirando suas frustrações para fora. E do nada, da forma mais dramática que conseguia ela levantou a mão e bateu no balcão, e junto com o estalo que se veio ela começou a falar e gesticular da maneira mais caricata possível.

    — Crápulas! Idiotas! Imprestáveis! Se recusando a vender para uma criança indefesa. 

    Ela deu a volta no balcão, ficando de frente para Yaci.

    — Qual é o seu nome garota? 

    — É Yaci… senhora.

    — Bom! Nome diferente, mas bom. Força nessa voz menina, tá com dúvida sobre o próprio nome? Eu sou a Heloísa, mas todo mundo me chama de vovó, trate de me chamar de vovó!

    — Eu não posso te chamar assim dona Heloísa, é falta de educação, eu só te conheço tem alguns minutos.

    — Ah pra lá com isso, daqui a pouco você acostuma. Eu sou avó de todo mundo, ajudei a cuidar e criar a maioria das pessoas que vivem nesse bairro, e agora eu ajudo a cuidar dos filhos deles! Sempre tem espaço pra mais um. Vai lá, sente ai, vamos pensar no que fazer pra te ajudar.

    Yaci era incapaz de não sorrir nessa situação, as falas e movimentos espalhafatosos daquela mulher eram divertidos, se não fosse pela idade avançada, diria que ela era parecida com seus irmãos. Ela facilmente poderia ser uma das crianças da fábrica.

    — Então você vai mesmo me deixar comprar aqui?!

    — É claro que vou! Mas como eu disse, as coisas de uma padaria são para consumo rápido.

    Vovó Heloísa parou para pensar. Deixando de lado toda infantilidade que vestiu a pouco para animar a menina de lado por um momento, agora coberta de seriedade, pensando em como ajudar a menina o máximo possível.

    Depois de alguns segundos em silêncio, Yaci perguntou.

    — Não posso vir aqui comprar uma vez na semana? Não me importo de comer algumas coisas que não estão frescas no final das contas.

    A mulher não parecia muito feliz com a sugestão, mas subitamente seus olhos clarearam. E pulando para fora da mesa Vovó Heloísa começou a caminhar frenéticamente por sua padaria, enquanto pegava e enchia sacolas com as comidas nas prateleiras.

    — Tá! Faremos isso então. Querida, se não fosse incomodo, poderíamos marcar um dia da semana para você vir?

    Ela se dirigiu ao caixa, passou todas as mercadorias, apertou alguns botões e disse. 

    — Deu cinquenta centavos de lunis querida.

    No final tinha cinco sacolas plásticas cheias de comida sobre o balcão, e a senhora estava um pouco ofegante.

    “Ela realmente parece uma criança no corpo de uma velha. Ela é engraçada no fim das contas” pensou Yaci, com divertimento.

    — Sim, podemos sim! Qualquer dia? Então, toda terça — deu uma pausa e dando um sorriso envergonhado ela continuou — Posso pegar mais? Aí não tem o suficiente para eu durar uma semana…

    Vovó Heloísa gargalhou, ao ver que a pestinha de cara fechada que chegou em sua padaria, já tinha ficado mais confortável em estar por perto. E isso a encheu de alegria.

    Para Yaci, o sorriso e a risada daquela senhora era acolhedor, reconfortante, tanto que ela sorriu de volta, de orelha a orelha, um sorriso genuíno. Ninguém tinha a feito sorrir de verdade desde que sua família sumiu, mas aquela senhorinha conseguiu.

    Mesmo sendo um pensamento estranho, ela não conseguiu deixar de se questionar:

    “Será que ter uma mãe é assim?”

    — Claro que pode querida, aqui, com mais esses fica sessenta centavos de lunis.

    Ela tirou alguns produtos da vitrine embaixo do balcão e encheu mais dois sacolas.

    Yaci pagou, e uma por uma foi segurando as sacolas, quando acabou sentiu que tudo estava um pouco pesado

    — Eu vou indo então! Te vejo próxima terça Dona Heloísa. 

    Yaci com passos um pouco desembestados por conta do peso foi lentamente saindo da padaria.

    — Já disse pra me chamar de vovó, pirralha! Volte sempre que quiser…

    Enquanto ela saia, Vovó Heloísa só conseguia pensar em uma coisa, enquanto olhava para as costas da menina ficando cada vez mais longe.

    “Que sorte que ela não viu as etiquetas de preço, ela tem cara de que não ia aceitar o desconto que eu dei na comida e ia reclamar no meu ouvido para o resto da vida.”

    E Yaci, andando rápido, pegava o caminho mais discreto possível para casa. Não conseguia deixar de pensar que seria acusada de roubar aquela comida caso a vissem com tantos sacos.

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