Capítulo 5: Afogados
Dois homens caminhavam em direção às tendas, barracas e diversos cortiços que ficavam por perto.
Um dos homens, grande e franzino, tinha uma dificuldade persistente em andar. Seu semblante gritava doença, enfermidade, e fragilidade, sua face, castigada por uma palidez mórbida, sem esperança
— Temos que achar um médico pra você Zé! Cê tá com um pé na cova. A semanas sua pele vem perdendo a cor. E de ontem pra hoje seu cabelo caiu todo!
Seu irmão não respondeu. Ficou olhando para cima, hipnotizado, enquanto mancava. Seu silêncio também era motivo de preocupação, fazia quatro dias desde a última vez que falou.
Foram caminhando, às vezes paravam um pouco para respirar, quando José cansava muito, se apoiava em seu irmão para continuar. Estava claro para todos que ele não tinha muito tempo em vida.
Finalmente chegaram em seu destino, um cortiço, e o pequeno quarto onde moravam ficava na última porta do terceiro andar. E dentro, José desabou em um colchão velho e sujo. Deitado com a barriga para cima, com a boca aberta ofegante por ar e olhos dilatados e vidrados.
— Zé?! Não me abandona irmão! Por favor, aguenta mais um pouco, só mais um pouco… Deuses! Alguém! Qualquer um, eu faço qualquer coisa, mas não tirem meu irmão de mim…
Entretanto, seus pedidos caíram em ouvidos surdos, afinal os deuses já estavam afogados.
Ricardo observou seu irmão dar seu último suspiro. Enquanto seu peito lentamente parava de se mexer, e seu coração dava a última batida, uma fina névoa vazava da boca, nariz, ouvidos e olhos do rapaz. E descia de forma lenta em direção ao chão, até atravessá-lo e desaparecer.
O silêncio se instaurou por todo cortiço, somente o choro baixo de Ricardo era escutado.
Ele tentou de tudo para curar a enfermidade de seu irmão. Cobraram todos os favores que tinham, usaram todo dinheiro que guardaram, mas foi em vão.
O cadáver de seu José jazia imóvel, deitado. Esticando a mão, decidiu fechar os olhos do irmão, que permanecem abertos.
Entretanto, ao se aproximar de seus olhos, subitamente o até então, “cadáver” do seu irmão, agarrou seu pulso.
— Jo… José?! Você está vivo? Como, como isso é possível…
O aperto em seu pulso aos poucos diminuiu, até que finalmente se viu livre.
Enquanto isso, se levantando lentamente, sussurrando palavras que estavam baixas de mais para Ricardo entender.
— O que você está dizendo? Mano?!
Ricardo estava quase pulando de alegria, seu irmão até voltou a falar! Era milagre, talvez um dos deuses afogados realmente tenham escutado seu chamado!
Quando finalmente se sentou, Zé tinha um sorriso exagerado em seu rosto. Então ele se virou pra Ricardo, e com uma voz fraca, quebradiça, ele disse:
— Me… abraça… irmão!
Ricardo agora chorava de alegria, gargalhava de felicidade, e em um pulo, se jogou nos braços do irmão, que estavam abertos à sua espera.
— Você está vivo! Obrigado, obrigado deuses, obrigado!
Zé também começou a rir, e sua risada aumentava a cada segundo, junto ao aperto de seu abraço.
Logo, a risada era um grito, maníaco, e sons de estalos das costelas de Ricardo podiam ser ouvidos ao fundo.
A risada parou, mas o aperto só ficava cada vez mais apertado. E substituindo a gargalhada, orações e cânticos em línguas antigas a muito esquecidas se espalharam pela barraca.
— Para! Para Zé! O que você tá faz…
Um estalo alto ressoou por todo distrito residencial. Balbuciando palavras indecifráveis, o que restou do homem que um dia foi chamado de José, por amigos e familiares, se levanta com o corpo do irmão nos braços.
A cabeça do cadáver torcida em um ângulo não natural, com sangue saindo de todos os orifícios de seu rosto, as costelas, rasgando para fora do tórax, e sua coluna, completamente destruída.
A criatura jogou o corpo no chão como um boneco de carne quebrado, e saiu andando normalmente, ainda repetindo as mesmas palavras, orações e cânticos, como um mantra.
Talvez um dos deuses afogados realmente tenha escutado seu chamado.
Em um fim de tarde frio, dentro de uma fábrica desativada e abandonada, uma menina de dez anos estava sentada em sua cama, com um livro em suas mãos. Neste momento ela estava lendo a última página do livro, que agora, tinha várias anotações e trechos sublinhados ao decorrer de suas páginas.
Quando acabou de ler. Um senso de “dever cumprido” preenchia seu coração. Duas semanas, foi tempo que demorou para ler o livro todo, fazer as devidas anotações e assimilar todo aquele conhecimento.
Ela havia aprendido muitas coisas. A mais prática delas, e aquela que permitiu que conseguisse ler e aprender todo conteúdo do livro tão rápido, era o funcionamento de seu colar!
Ao longo das semanas, e de muito tédio entre sua leitura, ela conseguiu desvendar aquela sensação que sentia, e a mesma podia ser explicada com três palavras: foco, tenacidade e saúde.
Foco, é óbvio, porque melhorava seu foco e raciocínio, sua mente ficava mais afiada e rápida.
Tenacidade, foi estranho, mas ela também percebeu, que ao vestir o colar, precisava de menos horas de sono e de descanso para se recuperar do cansaço físico e mental além de mitigá-los um pouco ao longo do dia.
Saúde, era o mais misterioso deles, ela simplesmente se sentia mais saudável, e atribuiu isso ao colar. Ter esse item milagroso com ela foi a maior mão na roda que ela podia desejar, não era exagero chamar o colar, de mágico!
Agora, sobre o livro, Yaci aprendeu uma quantidade decente de informações. Seus conhecimentos cresceram, e isso a deixou muito feliz, Benjamin estaria orgulhoso agora.
Antes ela sabia que vivia no Império da verdade, e que a séculos ela e seu povo estavam em guerra contra Malus Verum.
Mas agora, ela descobriu que o Império e seu inimigo Malus, estavam localizados no continente Mollitian. E além desses dois países havia também a República de Statera ao oeste e por último no centro do Continente, O País regulador e mercantil, Frei.
Não havia muitas informações sobre os outros continentes, apenas que existiam, e seus nomes: Calicies e Twr.
Entre outras coisas relacionadas a história de seu país e como o sistema monetário atual foi criada, a geografia dos países de Mollitian. Pouco era realmente útil a curto prazo.
Durante essas duas semanas, ela saiu em torno duas vezes para comprar comida, água limpa para se manter e procurar seus irmãos.
As refeições constantes finalmente diminuíram o semblante da fome que marcava seu rosto, agora, ela não era mais somente pele e ossos, alguns músculos que pareciam inexistentes pela desnutrição preencheram sua figura com um pouco de vitalidade. Ela ainda era magra demais para ser considerada saudável, mas pelo menos já era um passo para a cura de sua desnutrição.
Mas tudo que é bom tem um fim. E o fim da sua bonança estava próximo. Ela só tinha dinheiro para mais duas semanas de comida, ou melhor, uma, já que hoje sairia para renovar seu estoque da semana.
— Isso foi… bom. Não acha, sombra?
Sob pés, sua sombra continuava normal, mas de dentro da sua cabeça, uma voz feminina ressoou:
— Eu disse que era sua chance.
Essa não era a resposta que Yaci esperava, na verdade, ela nem esperava uma resposta!
Durante essas duas semanas a sombra não falou com ela nenhuma vez. Então ser respondida subitamente foi uma grata surpresa.
— Você não fez nada demais sombra, apenas pagou o que me deve por morar na minha cabeça! De qualquer forma vamos logo, hoje vai ser uma das últimas vezes que compro comida.
Yaci juntou seus pertences em sua bolsa e rastejou para fora da fábrica abandonada, e foi em direção da padaria que comprou comida nas últimas semanas.
Correndo pelas ruas, Yaci cruzou diversos bairros das favelas e agora havia chegado no distrito da pobreza. Não existia uma “fronteira” que os dividia, mas sim, o cenário à sua volta passava por uma lenta transição.
Cada vez menos construções destruídas, as paredes sem manchas de sangue, o ar menos poluído e é claro, a visão de andar em direção a um belíssimo palácio, no ponto mais alto daquele país.
As pessoas também mudavam, ao invés dos olhares famintos, desesperançosos e odiosos. Olhavam para ela com desprezo, nojo, às vezes pena. Suas roupas, maneirismos, tudo era diferente.
As ruas começaram a ficar movimentadas, e cada vez menos becos apareciam para que Yaci se escondesse.
Nesses momentos, onde ela andaria em meio aos cidadãos do Império, olhares tortos, e comentários maldosos eram comuns.
— Como essa “coisa” veio parar aqui?
— A criminalidade vai disparar de novo!
Alguns, em sua maioria mais adolescentes, por não temerem nada nem a ninguém, ou idosos, por não terem mais nada a perder, eram mais diretos.
Gritavam, apontavam, ameaçavam.
Mas hoje, um deles fez algo novo.
— Volte para o buraco que você veio, esse não é lugar para animais!
Depois de berrar em seus ouvidos, o menino que a xingou pegou um tomate, e jogou nela.
A tentativa foi falha, o tomate passou longe de Yaci, caindo no chão e se espatifando. Entretanto, isso a surpreendeu muito.
Não pelo ato, ou desprezo que sentiam por ela sem razão. Mas pelo que foi jogado.
“Isso é comida?”
Era a única coisa que Yaci conseguia pensar.
Um sentimento novo surgiu dessa visão incomum, algo ardente, nauseante, como uma azia.
“Eles podem fazer isso? Jogar comida em alguém assim? Um ano, um ano juntando comida, comendo restos, e eles podem jogar comida fresca, nova, no chão sem nenhum arrependimento?”
Esse fato atingiu Yaci como um soco. Esse sentimento, que não sabia o nome nem o significado, foi a primeira vez que sentiu algo assim. Ele saiu de seu coração, que batia forte, como se respondesse aqueles xingamentos e subiu, querendo sair pelo seu rosto, que se transformou em uma carreta. Suas sobrancelhas franzidas, olhos afiados, mandíbula contraída.
“Como se chama esse sentimento?”
Mas nada a impediu de continuar, sua face estava tapada por seu cabelo enquanto olhava para o chão, escondendo tudo que sentia enquanto caminhava para frente.
“Essas pessoas… elas não são ricas, estão longe disso.”
Na verdade, a maioria daqueles que estavam ali tinham apenas o suficiente para se manter funcionais, e ainda assim, a diferença era esmagadora. Sua visão subiu, parou olhando para uma montanha, e em seu topo descansava o palácio. Feito de marfim e ouro, no ponto mais alto do Império, sinuoso, poderoso, imponente, como se observasse tudo e todos de cima, Yaci se perguntou:
“E eles? Como eles vivem? Aqueles acima de todos…”
Em meio a tantos pensamentos, no que parecia um piscar de olhos, ela havia chegado ao seu destino.
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