Capítulo 7: Fogueira
Pulando de telhado em telhado, sem fazer nenhum barulho, sem dar sinais de que passaram por ali, como fantasmas, quatro figuras usando sobretudos escuros com bordados vermelhos e máscaras lisas de cerâmica seguiam um rastro de destruição.
Eles estavam sujos, seus casacos fediam a sangue e morte, suas máscaras brancas, maculadas por uma estranha substância preta azulada.
— É o terceiro de hoje! A situação tá indo de zero a cem muito rápido, desse jeito a gente vai morrer de cansaço suficiente!
Eles seguiam por bairros e ruas que foram demolidos, deixando terrenos e edifícios em estados deploráveis. Diversas pessoas feridas, ou mortas podiam ser vistas ao longo do caminho de destruição.
— E tu acha que a gente consegue fazer alguma coisa sobre? Não deixam a gente opinar no que comemos, imagina sugerir como lidar com uma situação.
— Você sabe como o império lida conosco, eles mandam, nós fazemos, sem espaço para discussão, isso aqui é uma punição, não uma colônia de férias! Agora é hora de focar, parece que estamos perto e eu não quero morrer por causa de bobeira.
No epicentro de tudo, uma criatura humanóide grotesca com um braço decepado, e uma menina, de pele escura e cabelos prateados, semelhante a um metal.
A garota, no que parecia ser um surto, correu para cima da aberração. Com uma velocidade que assustou a todos, ela parecia que iria conseguir escapar! Mas a lógica e o convencional não se aplicavam para essas coisas.
Mutilando os ossos do seu corpo, se torcendo de maneiras inumanas, a abominação atacou a menina. Um soco parecido com um canhão a acertou e logo depois, um estalo alto, ecoou por toda vizinhança.
— É mais uma daquelas coisas… foi transformado recentemente? Talvez do que sobrou de um cadáver?
— Faz algumas umas semanas que essas criaturas começaram a aparecer… Cada dia que passa mais estão se transformando. Ninguém lá de cima sabe o por que disso né? É nosso primeiro dia de punição e as coisas já estão assim?! Nem fodendo que eu aguento uma semana desse jeito.
Eles analisaram calmamente a situação como se não tivessem presenciado a morte de uma criança.
— Quem se importa com o que aquilo é!? A menina! Se nos apressarmos, talvez possamos salvá-la! — disse um homem mais jovem.
Empurrando seus companheiros e avançando em direção ao monstro. O jovem desenfreado pousou nas ruas destruídas. Seguido de seus companheiros.
— Ela morreu. Tipo, não tem como uma criança sobreviver a isso. Ele é meio burrinho, né capitão?
— Esquece recruta, não dá pra fazer mais nada. Rapaziada, em formação, vamos acabar com isso em três minutos. Quem atrasar o trampo vai pagar a cerveja!
— A gente tá no meio de uma punição militar e você quer beber?! Como a gente vai entrar em um bar desse jeito?!
— Eu dou um jeito, agora foco, seus engomadinhos!
Em instantes, a criatura estava cercada. Todos carregavam consigo armas de um material mais escuro que a noite.
De frente para o brutamontes nojento, um homem segurando estacas encarava a criatura.
A direita, uma mulher carregando um alabarda, com uma postura nobre e calma.
A esquerda, um jovem com um grande machado de guerra, estava acuado e triste, olhando para a pilha de pedras onde a criança havia sido enterrada.
E andando por cima do telhado, procurando um bom ponto para colocar seu rifle, um homem baixinho e desajeitado.
Naquele impasse, um grito divertido ecoou pelas paredes.
— Aaaaaaa… gora!
Nesse momento, um tiro decepou a perna da besta.
Antes mesmo que ele caísse no chão, a mulher já estava acima da criatura, pregando-a no chão com sua alabarda.
De bruços no asfalto, o sangue pútrido do monstro escorria das feridas, e derretiam tudo ao redor. Assim que a lâmina e o corpo da alabarda começaram chiar e se desfazer sobre seu próprio peso, o homem com olhos frios despencou como um míssil sobre aquela coisa, perfurando seu coração com uma estaca.
Tirando outras estacas do seu sobretudo, o homem continuou a perfurar os membros da criatura, que gritava e urrava no chão.
— É com você novato!
Antes mesmo de seu líder ordenar, o jovem e seu machado já estavam caindo em direção ao pescoço da criatura, a decapitando com um corte limpo.
No instante em que sua cabeça se descolou do corpo, ele parou de se mover, e um silêncio pesado se instalou naquele lugar, quebrado apenas pelos sons de respiração ofegante de todos.
Ainda em silêncio, como se fosse apenas mais uma terça-feira, todos começaram a preparar uma grande fogueira para queimar os restos daquela coisa estranha. O sangue do cadáver ambulante era nojento, nauseante e não natural. Exalava malícia e profanidade.
Descendo do telhado assustado, o homem com o rifle exclamou:
— C-capitão!
Todos olhavam em direção ao seu líder com expressões apavoradas.
— O que foi? Por acaso vocês viram um fant…
As palavras morreram em sua boca, por que ele sentiu uma mão agarrando sua perna.
Olhando pra baixo, ele viu a menina. Seus cabelos prateados manchados de vermelho, seu braço direito completamente destruído, roxo, mole e sem vida. E um grande rastro de sangue a seguia desde a pilha de pedras a qual ela foi soterrada até onde estava agora, agarrando com a pouca força a pouca força que lhe restava a perna do homem mascarado.
Sem demonstrar reação, o líder ordenou:
— Continuem a preparar a fogueira!
Dois deles continuaram colocando ao redor do corpo restos de madeira e destroços, que logo, começaram a se acumular até cobrir totalmente o corpo.
— Calma! Aqui pequenina, deixe-me ajudar.
O jovem disse para ela, feliz por ver que ela ainda estava viva.
Ele a colocou sentada, e com a mão em suas costas para apoia-la.. Isso fez com que ondas de dor percorrerem todo corpo de Yaci, suas costelas estavam quebradas, por pouco não colapsaram.
— Consegue falar, garota?
Sua respiração era superficial e curta, já que qualquer movimento do seu tronco era um método de tortura diferente. Ela tentou abrir a boca pra falar, mas tudo que saiu foi uma cascata de sangue que quase a afogou.
O jovem pós sua cabeça para frente, para desentupir suas vias aéreas, fazendo a cuspir sangue mais uma vez. O peito de Yaci, que agora estava encharcado sujo de vermelho, seu pingente brilhava imaculado, como se lutasse para mantê-la viva.
— Você quer ajuda? Quer voltar pra casa? — Perguntou o capitão.
Neste momento, o monstro já estava em chamas, sons da carne sendo carbonizada e dos ossos estalando eram escutados. E logo, como se fosse expurgado pelo fogo, todo aquele cheiro pútrido desapareceu.
Os olhos de Yaci brilharam com esperança e determinação. Ela tentou fazer um sinal, qualquer que fosse para indicar que sim.
— Bom! Você com certeza tem garra. Mas me diga pequena, por que eu faria algo assim? Quem te ajudou por pena, foi meu subordinado, e mesmo assim, se eu ordenar, ele ainda te jogaria na sarjeta. Então deixe-me perguntar de novo, por que eu te ajudaria?
— Capitão!
— Calado! Mais uma palavra e assim que aquele monstro queimar nós saímos!
Com chamas refletindo em seus olhos, como duas esmeraldas flamejantes, sua expressão se mantinha resoluta, ela iria sair viva daquela situação, projetada nas paredes de uma casa, sua sombra observava a situação com curiosidade.
Cerrando os dentes com força, e se preparando para a agonia que sentiria. Yaci começou a mexer o braço que funcionava. Cada movimento que fazia, ela conseguia sentir os fragmentos de ossos rasgando sua carne por dentro. Ela colocou a mão por dentro da roupa, e tirou as notas e moedas que recebeu de troco mais cedo naquele dia.
Ela as colocou no chão, e com o sangue que manchava sua mão, desenhou embaixo, um sinal de mais, e uma casa ao lado.
— Hm?! Você quer me pagar pra eu te salvar? E está dizendo que tem mais dinheiro em casa?
Ela acenou enquanto o encarava, sem nem mesmo piscar. Quase era possível escutar as engrenagens de sua cabeça girando, pensando em como se salvar, caso ele rejeitasse a sua oferta.
Por trás da máscara de cerâmica do capitão, um sorriso sincero apareceu e que se estendeu para os seus olhos.
— Guarde seu dinheiro criança. Pedro! Chega aqui. Ajuda a garota…
— Sim, capitão! Mas… eu já tô mais pra lá do que pra cá. E com esses ferimentos, não vou conseguir fazer muita coisa, ainda mais com esse braço dela, ele é basicamente um caso perdido.
— Sim, tudo bem. Mas garanta que ela sobreviva e que possa falar por agora.
Acenando com a cabeça, Pedro sentou ao lado de Yaci, colocou as duas mãos em sua cabeça, e começou a respirar fundo. De pouco em pouco, Yaci começou a sentir seus ossos voltando para o lugar e se juntando, rasgando a carne pelo caminho, apenas para essa mesma carne e músculos se juntarem voltarem como se nunca tivessem sido machucados.
Doeu, mas não tanto quanto todo o resto. Quanto mais curada Yaci Estava, mais fome ela sentia, começou com um ruído branco, rapidamente se tornou insuportável, como se seu estômago fosse a devorar por dentro.
— Está… feito… capitão! Mais do que isso e ela morreria de desnutrição.
Pedro mais arfou do que falou. Fez uma continência para seu líder e se retirou para perto da fogueira, onde se sentou para descansar.
— Bom, bom, agora vamos voltar de onde paramos. Seremos rápidos, você deve estar morrendo de fome! Qual é o seu nome, pequena?
Ela olhou em volta, se perguntando:
“Como diabos eu acabei assim?!”
— Yaci… senhor! Esse é o meu nome.
— Yaci, certo? Vamos fazer um acordo. Me responda uma pergunta, então eu e o recruta te ajudamos uma última vez antes de ir embora, o que acha?
Não havia muito o que pensar, então ela apenas acenou com a cabeça.
— Pequena, diga me, onde você conseguiu esse colar?
Sua sombra tremulou um pouco. Parecia que mesmo com a fogueira ao lado, o mundo estava ficando mais frio. Não havia peso em seus ombros nem medo paralisante, apenas os olhos gelados a encarando por trás da máscara.
— Um homem machucado, caído em um beco me entregou, depois de desejar que os deuses tivessem piedade de mim.
Depois de sua resposta, sua sombra voltou ao normal e a temperatura subiu novamente, com o calor confortável da fogueira a distância.
— Entendo, ele deveria estar realmente desesperado para amaldiçoar uma criança com isso. Você deve estar com as outras coisas dele, certo? Não as quero de volta, faça o que quiser com elas, quero distância daquelas coisas pelo bem do meu emprego.
— Sim senhor…
Os olhos daquele homem se tornaram calorosos, mas ele sabia que já havia feito o suficiente, mais interferência iria apenas colocar mais empecilhos no caminho daquela criança.
O fogo estalou, dessa vez mais alto.
— Está começando. Recruta, traga a garota também!
— O-o que?! Tem certeza?
O capitão não precisou dizer nada, apenas encarar o jovem, que parecia encolher sobre aquele olhar.
— Com licença, se apoie em mim, vamos para perto da fogueira. Essa vai ser a última ajuda que podemos te dar.
Ela não foi contra, com um pouco de suspeita, deu a mão para aquele jovem mascarado, e devagar, foram em direção ao fogo.
Parados lá, rodeando a fogueira, um último estalo, alto, retumbante, foi escutado. O fogo se extinguiu, deixando o ambiente em um silêncio ensurdecedor. O corpo da criatura havia desaparecido e tudo que restava era uma nuvem de cinzas, que rodeava o que sobrou da fogueira.
As cinzas rodaram, cada vez mais rápido, até que começaram a brilhar fracamente, como se quisessem acender em fogo novamente.
Mas isso não aconteceu. Em um rasante elas entram nos corpos de todos ali presentes.
Pairando sobre Yaci, as cinzas abraçavam sua pele, com o cuidado e carinho de uma mãe, mas logo depois penetravam seu coração, como se não fossem físicas, ela sentia todos aqueles grãos de cinzas, se juntarem, se tornando um amálgama, se compactando cada vez mais.
Até que tudo parou, e em todo aquele silêncio, uma sintonia podia ser ouvida, ela vinha de um grão cinza, que não era físico nem imaginário, que morava no centro do seu coração. Era menor que um grão de areia, ele tremia, rodava ao redor de si mesmo, e de tempos em tempos pulsava, espalhando uma sensação familiar, potente e acolhedora por todo corpo de Yaci.
Quando a sinfonia parou, ela não conseguia mais sentir mais aquele grão de cinzas. Ela não entendia o que estava acontecendo, mas podia sentir, de forma primitiva e instintiva, que ela estava mais forte. Não era uma mudança perceptível, muito menos compreensível, mas ela sentia.
Depois de alguns momentos solenes de silêncio todos pegaram o que restava de suas armas, e em um piscar de olhos, desapareceram no ar, apenas o capitão ficou para trás.
— Esse seu braço… vai dar trabalho. Aquele homem deu um anel para você, junto com esse colar, não é? Coloque aquele anel no dedo indicador do seu braço destruído, vai ajudar. Eu não sei por que ele amaldiçoou, mas você ainda tem escolha.
Ele olhou para trás, apenas para ver aqueles olhos verdes brilhando como tochas na escuridão, refletindo tenacidade, determinação, com uma pitada de loucura pairando no fundo de sua alma.
— Não, não tem… Eu conheço esse olhar. Você não tem outra opção a não ser sobreviver. É uma pena, realmente, gente como a gente não pode descansar. Até mais garotinha, a gente se vê por aí.
Então, ela estava sozinha, a única coisa que destacava sua presença na escuridão da noite, era seu cabelo prateado, sujo e manchado, refletindo a pouca luz da lua que banhava o ambiente.
Ela nem tentou pedir para que aquele homem esperasse, tinha muitas perguntas, mas sabia que ele não as responderia.
Tateou o chão até achar o que sobrou de uma das estacas que perfuraram a criatura, estava torta e derretida, mas serviria de bengala, para ajudá-la a chegar em casa.
Aguentando a dor que irradiava de seu braço direito, ela devagar, um passo de cada vez, começou a andar na direção da sua casa.
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