Capítulo 9: Metal Fervente
Se apoiando na estaca que pegou do chão, cerrando os dentes por causa da dor. Yaci caminhava pelas ruas escuras. Um passo de cada vez, aguentando a dor e fome, ela refez seu caminho, ainda faltava muito para aquele dia desgraçado acabar.
Minutos pareciam horas, e horas pareciam dias. A única coisa que a ajudava a manter a passagem do tempo, era a lua, que brilhava singela no céu.
Cada passo por si só era uma batalha diferente. A fome minava suas forças, enquanto a dor lhe causava tremedeiras por todo corpo. Ela não sabia como aquele homem havia curado, mas o processo a deixou com um tipo de fome que nunca sentiu antes.
Parecia que seu próprio corpo iria se canibalizar a qualquer segundo, como se ela tivesse que lutar para impedir que seu corpo devorasse sua própria carne.
Mas era melhor não pensar nisso, pensar cansava, e tirava o foco de sua missão. Dar mais um passo.
Depois de dar esse passo, ela se convencia de que daria só mais um, procurava forças em todos os cantos da sua mente, corpo e alma, tudo para dar mais um passo, depois outro e depois outro. Um passo de cada vez, uma batalha de cada vez, uma vitória atrás da outra.
Esse processo continuou até que enfim, ela chegou aonde aquele pesadelo começou. A interseção entre dois grandes cortiços. Por sorte, parecia que ninguém havia passado por aquele lugar hoje, porque tanto sua bolsa, quanto as sacolas de comida estavam lá, largadas ao relento.
Ninguém passou por ali, ninguém roubou suas coisas. Que sorte ela teve, talvez fosse o primeiro momento real de sorte que ela teve em anos. Ou então talvez ninguém passou por ali por causa da destruição misteriosa de edifícios ou da morte de inúmeras pessoas. Mas para o bem de sua frágil alegria, ela preferiu acreditar que era sorte.
Com sua moral renovada, ela foi rapidamente em direção a suas coisas. Ela só tinha um braço, esse no qual segurava a sua bengala improvisada, mas ela daria um jeito de carregar suas bolsas de volta pra casa.
Ela pegou suas coisas, e continuou sua caminhada, fazendo apenas pequenas paradas para comer.
Todo processo de chegar em sua casa havia demorado, mas ela chegou, e até certo ponto, chegou bem saciada. Ela não tinha percebido com quanta fome estava, até começar a comer. Metade das provisões que ela tinha para sobreviver a semana, ela devorou no caminho. Mas no final, se provou ser uma coisa positiva.
De frente aquele buraco no muro, no qual ela usava para entrar em casa, um pensamento simples, mas necessário, começou a surgir em sua mente.
“Como eu vou rastejar com o braço assim…”
A resposta? Veio rápido, afinal, era uma solução que ela havia aplicado diversas vezes para diversos problemas de sua vida.
Ela aguentava. Engolia o choro, medo e fazia o que tinha que ser feito para sobreviver, assim como ela fez durante o dia todo hoje.
O saco de comida não estava tão grande, então seria mais fácil levá-lo consigo, era apenas uma questão de aguentar um pouco a dor.
“Vai ser rápido! Vambora, quanto mais rápido você começar, mais rápido vai terminar…”
Depois de alguns minutos nem um pouco agradáveis, ela já estava saindo do buraco. No fim, realmente foi rápido, isso não apaga o fato que sentiu dor, mas em momentos como esse, é melhor se apegar ao lado bom das coisas.
Entrando em casa, ela tirou sua bolsa com cuidado para não se machucar mais. Foi até o anel, com as palavras daquele homem dando esperança de que teria seu braço saudável de novo.
“E se o anel não funcionar por não caber no meu dedo?” “Ele disse que daria um jeito no meu braço, será que ele quis dizer que meu braço vai cair?!”
Mas ela não saberia se não tentasse. Em um ato de coragem, e muito desespero, ela apoiou o braço em seu colo e colocou o anel no dedo indicador com cuidado, como o homem havia dito para fazer. Cabia três de seus dedos no aro do anel de ouro. O anel ficou imóvel por alguns instantes, antes de colapsar sobre ele mesmo, e se fechar com força em volta do indicador de Yaci.
O anel, agora parecia uma massa disforme e sem cor, nem sólida, nem líquida, que tomava forma para se encaixar como parte do seu corpo.
Quando se solidificou, parecia ter se tornado um com a sua carne.
Após isso, ela sentiu uma picada, como uma vacina, e aos poucos sentiu o braço formigar e esquentar.
Não havia dor, a sensação era apenas não natural. Como se seu braço não fosse mais seu braço. Ainda pertencia a ela, mas não era o que costumava ser, estava mudando.
Depois de esperar um pouco, o medo passou, e ela percebeu que o processo iria demorar. Não sabia o que estava acontecendo, era diferente de tudo, era único. Diferente até mesmo do que ela tinha visto hoje e ontem.
— Eu tô exausta… será que tá tudo bem dormir enquanto essa coisa está no meu braço?
— Sim. Só não dorme demais. — disse sua sombra, que estava projetada na parede da fábrica.
Seus olhos brancos e brilhantes, sem vida, a encarando.
— Não esperava uma resposta sua. Por que eu não devo dormir demais?
— Você fica vulnerável…
Com essas palavras ditas, o brilho nos olhos da sombra se apagaram, e sua sombra voltou a ser… bem, só uma sombra.
— Se você explicasse o que está acontecendo, ao invés de só dizer algumas palavras antes de desaparecer, muitos problemas poderiam ser evitados.
De dentro de sua cabeça, como uma voz ecoando, a sombra respondeu com raiva:
— Se você me escutasse mais, muitos problemas poderiam ser evitados.
— Dane-se você, eu tô cansada!
Segurando seu braço, Yaci foi para a sua cama e deitou-se. Dormiu assim que sua cabeça encostou no travesseiro, quem diria que quase morrer fosse tão cansativo!
O tempo passou rápido, enquanto ela dormia uma noite sem sonhos. O relógio continuou a correr.
Uma, duas, três horas se passaram.
Entretanto, seu descanso foi interrompido. De seu braço irradiou um calor que atravessou todo seu corpo.
Ela abriu os olhos, e tentou se levantar, apenas para falhar e cair de volta deitada. Cada movimento que fazia a queimava por dentro. Seus orgão, ossos, tudo pegava fogo.
Todo seu corpo era uma fornalha, seu coração batia tão rápido quanto durante a perseguição da criatura. Até que então ela sentiu o grão de cinzas pulsando em uníssono com ele.
Ela respirou fundo, tentando manter a calma. Era difícil manter os olhos abertos por causa do suor escorrendo no seu rosto.
Então seu braço começou a se mexer. Se contorcia junto de espasmos. Ela sentiu os novos ossos e músculos surgindo de dentro do metal amorfo do anel e subindo até seu ombro e clavícula, substituindo até mesmo aquilo que estava saudável.
A sensação então passou para o exterior, sua pele ficou líquida, se misturando com o metal fervente. E assim que o último pedaço de pele foi substituído, tudo acabou. E depois do calor, veio o frio.
Ela estava tão suada, que qualquer um diria que ela tinha acabado de pular no mar.
Ela estava com sede, e querendo muito um banho.
“Meu braço!”
Estava lá, como se nunca tivesse sido machucado. A única diferença era que o anel estava entranhado em sua carne se tornando um com ela.
Junto com seu braço, o próprio anel tinha mudado, não havia ouro, nem jóia vermelha, agora ele era uma pedra ônix, bruta e chanfrada. No meio dele, como se surgisse das profundezas do mármore negro, uma gema roxa de tom escuro, profunda e abissal.
Da gema, diversos veios brilhavam levemente em roxo na batida do seu coração.
Tanto a pedra negra, quanto as veias roxas, se espalharam do anel para sua mão, como se sua própria carne fosse feita daquele material.
Ela não sabia se sentia alívio ou medo. Seu braço estava de volta! Mas realmente era o seu braço? Yaci achou que não, mas não se importava, de qualquer forma, era seu, aquilo não apenas pertencia a ela, como também era parte dela, metafórica e literalmente.
“Pelo menos eu tenho os dois braços de novo!” Nessas horas era melhor se apegar às coisas boas.
Dois dias tranquilos vieram e passaram rápido para a pequena Yaci. Ela não fez muita coisa, descansou, desenhou nas paredes da fábrica com seus lápis e canetas. Fez mais desenhos de todos os seus irmãos, feitos com tanto esmero e cuidado, que qualquer um que olhasse acharia que se tratava de uma foto. Teve então, seu tão merecido descanso.
Durante o tempo que ficou em casa, nem lembrou-se dos livros restantes. Focou sua atenção em descansar, limpar a mente das experiências horríveis que tinha sofrido em um espaço tão curto de tempo, e por fim, entender tudo que havia acontecido com seu corpo.
O que era o grão que se instalou em seu coração, o que seu novo braço tinha de diferente do seu antigo e o que ele mudou no resto de seu corpo. Ela se perguntou, mas no final, não descobriu nada de diferente, apenas que se sentia melhor, a melhor versão dela que já existiu. E sem mais explicações, ela simplesmente jogou tudo isso para o fundo de sua mente.
Talvez ter sobrevivido a toda aquela loucura talvez tenha a deixado mais forte, ou então, isso foi só o jeito de sua mente perturbada lidar com o trauma.
A única coisa que perturbou sua paz durante seu descanso, foi perceber que a quantidade de comida que ela consumia aumentou muito.
Mesmo tendo comido grande parte dos suprimentos no dia em que encontrou a criatura, ela deveria ter o suficiente para sobreviver ao fim de semana. Entretanto, apenas dois dias depois, toda sua comida já havia acabado. Talvez tivesse haver com o seu novo braço? Mais uma vez, ela não sabia, mas ela querendo ou não, tinha que sair para comprar comida hoje.
Por enquanto, essa seria a última vez que visitaria a vovó Heloísa por um tempo, e isso a deixou com um sentimento amargo em volta de seu coração. Afinal, durante muito, muito tempo, a velha senhorinha, tinha sido a única pessoa que a tratou com respeito, ou mesmo carinho. A única pessoa depois de seus irmãos, que a tratou como uma pessoa.
— As coisas vão ficar um pouco embaçadas pro nosso lado daqui pra frente, não acha sombra?
Desta vez, não houve resposta…
Olhando para a saída de sua casa com apreensão, ela estava pensando se realmente era seguro lá fora. Claro, nunca havia sido seguro, mas os dias anteriores bateram todos os recordes no que dizia respeito a chances de morrer a qualquer lugar e momento.
A sensação de ser a “melhor” que já havia sido não era grande o bastante para afastar o medo inconsciente que sentia do lado de fora. Mas que opção ela tinha se não transformar até mesmo seu medo em combustível. No final de tudo, que outra coisa a fez ir tão longe quanto seus medos.
Ela só precisava de um pequeno empurrão, para superar essa barreira também.
Buscando a coragem e resolução absoluta que demonstrou para aquele homem mascarado, ela pegou sua bolsa, e rumou em direção ao lado de fora.
Achou estranho o quão difícil estava atravessar a passagem para fora, parecia apertado, e mais claustrofóbico que o normal, felizmente isso não desacelerou a menina, que em poucos minutos já podia ver os raios de sol da manhã no fim do túnel.
Do lado de fora, Yaci piscou algumas vezes, pensando se não estava em um sonho, ou melhor, um pesadelo.
A dois dias, ela tinha voltado para casa sobre o manto da madrugada, então não sabia se o que via tinha sido causado pela mesma criatura que a atacou, ou durante o tempo em que esteve descansando.
Para onde Yaci olhasse, a paisagem densa e urbana que sempre conheceu e andou estava destruída além de qualquer reparo.
Preso em destroços, ou simplesmente jogados pelas ruas, diversos cadáveres estavam espalhados. Alguns tinham morrido por ferimentos horríveis, que Yaci não conseguia, nem queria imaginar em como foram feitos, outros, soterrados ou então perfurados por ferragens e destroços tinham as causas de suas mortes bem óbvias.
Entretanto, todos eles tinham congelados em suas faces uma feição de puro terror, como se antes de perecer, encararem a própria morte nos olhos. Vendo tudo isso à sua frente,Yaci teve certeza de uma coisa.
“Hoje vai ser um péssimo dia.”
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.