Sua consciência retornava aos poucos.

    A troca entre Kuzimu e Kizimu era sempre incomum — mas dessa vez, havia algo errado. Se forçasse a permanecer desperto, sinos começavam a bater dentro de sua mente; se cedesse, era como dormir e acordar, como um interruptor sendo desligado e ligado de forma irreal.

    Mas algo estava… diferente. Kizimu havia cedido sua consciência a Kuzimu, e agora despertava em um cenário que não havia previsto. Não sabia o nível real de poder da maldição, mas lembrava que Masha dissera que ele conhecia artes místicas — mesmo que isso ainda não fizesse sentido para si. Só que… a troca havia sido um erro grotesco.

    — O quê!? — berrou o homenzarrão, irritado. — Eu tenho certeza que meu tiro te matou, por que você está sem ferimento e com essa cara de bocó?

    Kizimu olhou para o próprio corpo. Suas mãos tatearam o peito. Havia um buraco na camisa — um tecido fino, delicado — como se realmente tivesse levado um tiro. E de fato, à sua frente, a confirmação: o homem empunhava uma espingarda ainda fumegante. Ele havia sido alvejado.

    Mas… por que não morreu?

    Antes que pudesse formular qualquer resposta, percebeu algo ainda mais preocupante. A garota — Pandora, a que antes estava ferida — agora jazia desacordada no chão. Kim estava desaparecido. E o homem, com um gesto fluido e ameaçador, ergueu novamente a arma.

    Tudo aconteceu tão rápido, com tamanha precisão, que Kizimu não teve tempo nem de se mover.

    E então — um disparo.

    ★———★———★

    Kizimu resfolegou ao tentar se proteger de um tiro que não o alcançou. Ouviu o estampido. Sentiu o ar deslocado. Mas o projétil… não o atingiu.

    Porque ele não estava mais onde estivera segundos antes.

    Agora, sua autoproclamada irmã o segurava nos braços. Ao lado dela, Kim jazia inconsciente, um ferimento visível na cabeça, sangue escorrendo em fios finos.

    Tudo havia mudado num piscar. Como se o mundo tivesse virado uma página e ele, sem notar, tivesse sido jogado em outra cena. Diferente de quando trocava com Kuzimu — onde havia uma sensação clara de sono e despertar — aquilo fora como uma quebra abrupta, sem transição.

    Kizimu olhou com mais atenção. O nariz de Aisha sangrava.

    O que… aconteceu? Ela não deveria estar na luta. Então, por que enfrentou aquele monstro?

    — Aish—

    — Silêncio. — a garota o interrompeu, em sussurros. — Ele não notou onde estamos.

    Escondidos na mata, observavam o homem, tomado pela fúria. Chutava uma árvore com tanta força que a casca se esfarelava. Seu rosto estava vermelho como pimenta.

    A seguir, ele caminhou até a garota caída. Segurou-a brutalmente pelos longos cabelos e a ergueu, mesmo estando desmaiada.

    — Temos qu—

    — Cala a boca. Ele não é alguém que você possa vencer.

    A tentativa de reação de Kizimu foi cortada por Aisha, com urgência desesperada. Eles apenas observavam enquanto o homem arrastava Pandora pela raiz dos cabelos, arranhando seu corpo contra a terra. E logo, sumiu de vista, levando a garota para longe.

    Quando o silêncio dominou novamente, Aisha soltou a respiração presa.

    — Agora, sim, podemos falar.

    — Aisha, ela é uma residente. Não podemos deixá-la de lado.

    — Ela é uma amiga minha. Mas não posso arriscar perder você. Eu não quero perder ela, mas… — ela rosnou, irritada — É fofo e louvável o que quer fazer. Mas você nem conhece ela, seu idiota.

    — Mesmo assim.

    Ela estava certa. Eram todos desconhecidos. Mas Kizimu não queria ver ninguém morrer. Era como quando se segura uma criança prestes a atravessar a rua no sinal vermelho. Você não a conhece. Mas saber que pode fazer algo e não fazer… é desumano.

    — Aisha, não sei por que quer deixar ela—

    — Não! Ela é uma amiga minha. Não quero deixar ela. Só que… não podemos vencer ele.

    — Por que não?

    — Você trocou com sua maldição e não lembra, mas Kim e você foram humilhados por aquele homem.

    O quê?

    O inimigo. Kizimu não havia visto sua habilidade real. Mas Kim estava desmaiado. E ele mesmo… milagrosamente vivo. Espera.

    Kuzimu.

    Kuzimu, volte.

    Nenhuma resposta. Nenhum sino. Nenhum chiado.

    O que está acontecendo?

    — Temos que voltar, antes que ele volte.

    — Aisha, leve Kim com você.

    — Não se atreva a pensar o que está pensando.

    — Não vou enfrentar ele, sua idiota.

    Ela engoliu as palavras que ia dizer.

    — Não tem como vencer, isso eu entendi. Mas deixar aquela garota morrer não tem nada a ver.

    — E como sabe que ela não morreu?

    — Porque ele está fazendo uma armadilha.

    — Armadilha?

    Claro como o dia. Se a garota estava desmaiada, por que não a matou? Por que levá-la? Ele estava provocando, usando-a como isca para atrair os que fugiram. Era uma armadilha óbvia.

    — Espera. Se o que está dizendo for verdade… vai cair na armadilha dele de propósito?

    — Não. Eu vou resgatá-la. E não vou entrar em combate. Meu erro foi tentar bater de frente com um inimigo que não conhecia.

    — Isso é loucura, não vai dar certo.

    — Aisha, me diga. Como ele não me matou da segunda vez?

    As duas sobrevivências eram um mistério.

    — A primeira vez eu não entendi também. Quando vi o tiro pegando em você e o sangue voando… eu fiquei incrédula. Só que o próprio homem achou estranho e… tive esperanças.

    — E o segundo tiro?

    — Eu cortei o tempo, pegando você no núcleo e voltando onde estava antes.

    — Quê?

    — Não tente entender. Apenas não é um arbítrio que eu possa explicar logicamente.

    Kizimu queria usar essa informação para sobreviver, mas nada parecia confiável.

    — E o combate? Eu não estava consciente. O que aconteceu?

    — O homem é insano. Por algum motivo, não foi afetado pela maldição de Kim. E sua habilidade era superior. Você desviava de todos os golpes, mas não acertava nenhum. Ele se irritou e pegou a arma como um animal, atirando tão rápido que você não conseguiu desviar.

    Aisha segurava as roupas rasgadas de Kizimu. Sua voz falhou.

    — Achei… realmente que você tinha morrido. — ela começou falando rápido. No fim, lágrimas tomaram conta de seu rosto enquanto se agarrava ao corpo dele.

    O inimigo era um monstro. Sem brechas. Sem informações.

    Kizimu era mentalmente uma criança muito inteligente. E não tinha medo — estava motivado. Mas… nada… nada podia ser feito. Então… o que deveria fazer?

    — Eu preciso ir, Aisha.

    — Não, não precisa. Eu não quero te perder de novo. Eu acabei de te reencontrar. Você acabou de acordar, não se atreva a me abandonar de novo.

    Os gritos entre as lágrimas. Ela o segurava, enterrando o rosto em seu peito. Tudo era dor.

    Kizimu deu um beijo em sua testa.

    Ele não entendia o que significava beijar. Era inocente demais. Mas algo dentro dele dizia que aquilo iria acalmá-la. Um sentimento nostálgico, quase esquecido.

    — Eu prometo, eu vou voltar vivo.

    — Não. Você não vai.

    — Aisha, não sei se tenho esse poder. Mas isso é uma ordem. Volte para casa com Kim.

    Os olhos de Aisha se arregalaram. Ela odiou o que ouviu. Irritada, tomada por uma torrente de lágrimas, cedeu. Com dificuldade, pegou Kim nos braços. Tentou dizer algo… mas nada saiu.

    Kizimu não a olhou. Sabia que, se olhasse, cederia.

    E então, correu floresta adentro.

    Deixando Aisha para trás.

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