Capítulo 57 - Indesejado (1/3)
Capítulo 057
Indesejado
Zorian olhava atentamente para as duas folhas de papel à sua frente, examinando metodicamente cada linha de texto e anotando as coincidências e diferenças entre os dois documentos. Zach sentou-se ao lado dele, observando-o trabalhar com uma carranca pensativa, sem dizer nada.
Apesar do silêncio opressivo e do clima sério, os dois papéis eram simples listas de nomes. Colegas de classe, professores, funcionários públicos… cada um deles havia listado qualquer pessoa que considerasse remotamente importante em sua própria folha de papel, sem qualquer contribuição do outro. A esperança de Zorian era que, comparando as duas listas entre si, pudessem ver se havia outras falhas óbvias na memória de Zach. Ou na memória de Zorian, aliás — era improvável, mas Zorian não descartava totalmente a ideia de que sua própria mente também tivesse sido adulterada.
“Isso é realmente necessário?” perguntou Zach. “Vai ver eu só tenha esquecido o cara?”
Zorian ergueu os olhos dos dois papéis e lançou um olhar incrédulo para Zach.
“Ei, só estou dizendo!” protestou Zach. “Quer dizer, faz bastante tempo que estou preso nesse loop temporal, e ele foi expulso antes mesmo de começar. Eu teria que ir atrás dele de propósito, e qual o motivo para fazer isso? Aparentemente, nem gostávamos um do outro, se entendi corretamente.”
“Ah, por favor”, zombou Zorian. Não havia dúvida na mente de Zorian de que a curiosa incapacidade de Zach de se lembrar de qualquer coisa sobre Veyers Boranova era artificial por natureza. “Eu até entendo você ter apagado completamente o babaca da cabeça. Caramba, eu praticamente fiz isso stambém. Mas esquecer completamente que ele existia e tudo sobre ele?”
No entanto, era exatamente isso que parecia ter acontecido, se Zach estivesse dizendo a verdade. Zorian só podia concluir que alguém havia apagado da mente de Zach tudo relacionado ao herdeiro Boranova.
Ele não tinha certeza do porquê Zach estava tão relutante em aceitar aquela conclusão, embora tivesse suas suspeitas…
Zorian voltou à sua tarefa de combinar nomes por um tempo, eventualmente tropeçando em um nome na lista de Zach com o qual não estava familiarizado. Isso não era muito surpreendente, no entanto — a lista de Zach era muito maior que a de Zorian, já que o outro garoto era muito mais sociável do que ele.
“Quem é esse tal de Ilinim Kam?” perguntou a Zach.
“Ele era aluno de um dos outros grupos durante nossos dois primeiros anos na academia”, disse Zach. “Costumávamos sair juntos às vezes. Você não era muito sociável naquela época, então provavelmente é por isso que não se lembra dele. Acho que você nunca se misturou com os outros grupos, não é?”
“Não”, admitiu Zorian. “Eu sempre estava muito ocupado naquela época. Mal interagia com meus próprios colegas, muito menos com pessoas com quem não tinha motivo para conversar. Mesmo assim, dei uma olhada rápida nos outros grupos, quando estava investigando nossos colegas em busca de potenciais candidatos para o Robe Vermelho. Não me lembro de ter visto nenhum Ilinim Kam.”
“Bem, eu disse que ele era um aluno”, apontou Zach. “Ele foi reprovado no exame de certificação e abandonou a academia.”
Bem, isso explicaria. Ele ignorava completamente as pessoas que não conseguiram passar para o terceiro ano, achando-as irrelevantes. Foi por isso que ele deixou Veyers passar também, na verdade.
“Vamos ter que fazer uma lista de pessoas assim e ver se ela nos traz mais alguma surpresa”, observou Zorian. Examinando os nomes abaixo de Ilinim, ele notou alguns nomes de outros grupos de alunos. “Dito isso, não posso deixar de notar que você conhece vários alunos fora da nossa turma…”
“Eu sei onde você quer chegar”, interrompeu Zach. “Você vai me dizer como eu consigo listar metade dos nossos colegas de ano sob demanda, mas não consigo me lembrar de nenhum cara que estudou na nossa turma.”
“E?” Zorian provocou. “Sua resposta pra isso?”
“Você tem razão. Definitivamente há algo de anormal em eu esquecer esse tal de Veyers desse jeito. Está feliz agora?” disse Zach, resignado.
“Sim”, assentiu Zorian. “Agora me diga quem é essa tal de Anixa Pravoski…”
Durante a hora e meia seguinte, eles examinaram lentamente as duas listas de nomes, procurando por alguma peculiaridade. A boa notícia era que Zach não tinha nenhuma outra falha gritante em sua memória, pelo que Zorian conseguia perceber. Apenas Veyers parecia estar em branco total.
“Então… você acha que Veyers é o Robe Vermelho?” perguntou Zach, cauteloso.
“Essa é a grande questão, não é?” disse Zorian, tirando os óculos e inspecionando-os em busca de sujeira. Era principalmente uma forma de ganhar tempo enquanto ele pensava no que queria dizer.
“Sim, é”, disse Zach lentamente, como se estivesse falando com um idiota. “Então, por que você não tenta responder?”
Ugh. Tão impaciente.
“É possível”, disse Zorian. “Mas eu não sei. Estou meio incomodado com algumas coisas sobre isso.”
“Como o quê?” perguntou Zach, curioso.
“Como o fato de Veyers aparentemente ter apagado apenas a si mesmo da sua memória”, disse Zorian. “Isso é tão… amador. Eu esperaria mais do Robe Vermelho. Quer dizer, se fosse eu fazendo algo assim, eu teria apagado da sua memória mais quatro ou cinco alunos aleatórios para confundir um pouco a pista.”
Zach lançou-lhe um olhar nada divertido.
“Sabe, Zorian, às vezes não consigo deixar de me perguntar se você não é o Robe Vermelho”, disse ele.
“Mas você viu nós dois na mesma sala”, apontou Zorian, completamente despreocupado com as palavras de Zach.
“Eu já sei que o Robe Vermelho consegue fazer simulacros, então isso não prova nada”, disse Zach, cruzando as mãos sobre o peito.
Zorian fez uma anotação mental para pedir a Zach que o ensinasse a conjurar o feitiço do simulacro, já que era improvável que Zach nunca tivesse aprendido o feitiço em todas as décadas que passou no loop temporal, e Zorian realmente queria o feitiço. No entanto, eles tinham problemas mais urgentes no momento, então ele relutantemente deixou a ideia de lado por ora.
“A segunda coisa que me incomoda é que é difícil aceitar que alguém como Veyers possa ser o relativamente discreto e paciente Robe Vermelho”, disse Zorian, puxando a conversa de volta para o tópico de Veyers. “Quer dizer, ele perdeu a paciência em uma audiência disciplinar, pelo amor de Deus! Ele é ainda mais impulsivo do que você!”
“Ei…” protestou Zach.
“Mas, pensando bem, nenhum de nós é muito parecido com a pessoa que éramos antes do loop temporal, não é?” admitiu Zorian.
“Há muitas semelhanças”, disse Zach, balançando a cabeça em desacordo. “Mas acho que o fato de ele ter pavio curto antes do loop temporal não prova muita coisa. Você também era bem desagradável de se interagir antes do loop temporal, e olha só para você agora…”
Isso provavelmente era uma retaliação pelo comentário anterior de Zorian sobre a impulsividade de Zach. Ele supôs que meio que merecia aquilo…
“Eu tinha motivos para me comportar daquele jeito”, observou Zorian.
“Quem disse que Veyers não tinha?” perguntou Zach. “Tenho certeza de que ele também achava que seu comportamento era totalmente justificado.”
Isso era verdade, admitiu Zorian. Na verdade, pode ser que a natureza do loop temporal tenha eliminado a maioria dos problemas de Veyers e permitido que ele se acalmasse. Assim como aconteceu com o próprio Zorian.
“Suponho que você esteja certo”, disse Zorian após uma pausa. Ele balançou a cabeça para clarear um pouco os pensamentos. “Acho que, no fim das contas, não importa se Veyers é o Robe Vermelho ou não. O fato de você não ter nenhuma lembrança dele significa que ele é alguém com quem o Robe Vermelho não queria que você interagisse, o que o torna automaticamente importante. Temos que investigá-lo.”
“Ah, nisso não há discussão”, Zach assentiu. “Embora isso me faça pensar… se Veyers realmente é o Robe Vermelho, o que encontraremos quando o rastrearmos?”
“Dependendo do método que o Robe Vermelho usou para sair do loop temporal, esperaríamos que sua contraparte neste mundo fosse um cadáver sem alma como as araneas ou uma pessoa inconsciente, igual ao resto das pessoas ao nosso redor”, disse Zorian.
“Por que um cadáver sem alma?” perguntou Zach, perplexo.
“Bem, eu estive pensando em como o Robe Vermelho poderia ter enganado o Guardião para que o libertasse da realidade do loop temporal, e percebi que ele pode ter simplesmente pedido que sua alma fosse empurrada para o seu corpo do mundo real”, explicou Zorian. “Para um necromante como ele, pode ser bastante trivial simplesmente ejetar sua antiga alma para fora do corpo e continuar normalmente dali.”
“Mas o Guardião concordaria em fazer isso?”, perguntou Zach. “Ele pode mesmo fazer isso? Ele alegou que teria que trocar almas se o corpo no mundo real já tivesse uma.”
“Não posso te dar uma resposta para nada disso, obviamente”, Zorian bufou. “Não sei o suficiente sobre necromancia ou as capacidades do Guardião para dizer se é possível. É apenas uma ideia que venho considerando, só isso.”
Por um tempo, eles continuaram a apresentar várias possibilidades um ao outro. No entanto, tudo não passava de especulação, então eles desistiram da discussão por considerá-la inútil. Teriam que esperar até encontrar Veyers para poderem considerar a questão adequadamente.
Um breve silêncio se instalou entre eles, cada um perdido em seus próprios pensamentos.
“Tem certeza de que não quer que eu dê uma olhada na sua mente?”, perguntou Zorian depois de um tempo.
“O quê?” perguntou Zach, incompreensivo, arrancado de seus devaneios pela pergunta de Zorian. Um segundo depois, quando finalmente processou a pergunta, seu rosto se contorceu em um olhar irritado. “Não. De jeito nenhum. Desculpe, mas meu cérebro já foi embaralhado por um mago mental e não quero ficar à mercê de outro. Além disso, qual seria o sentido? Posso não ser um especialista em magia mental como você, mas até eu sei que não há como restaurar memórias apagadas magicamente. Eu deixaria você vasculhar minha mente à toa.”
“Bem, é verdade que uma memória devidamente apagada é irrecuperável”, admitiu Zorian facilmente. “Mas por que presumir que o Robe Vermelho executou a limpeza mental com perfeição? Eu vi a magia mental dele em ação em um momento, quando ele tentou usá-la contra mim, e ele não era muito bom nisso. Há uma boa chance de ele ter deixado passar alguma coisa.”
“Você tem uma imagem muito distorcida do que constitui ‘bom’ quando se trata de magia mental”, disse Zach. “Não é o Robe Vermelho que é ruim, é você que é terrivelmente bom nisso. E a resposta continua sendo não.”
“E se eu disser que você ainda pode estar sob a influência da magia dele?” perguntou Zorian.
Zach o olhou surpreso.
“O que diabos você quer dizer com isso!?” perguntou Zach, elevando a voz.
“É difícil acreditar que você nunca encontrou ninguém mencionando Veyers em uma das reinicializações anteriores”, apontou Zorian com um suspiro. “Ele não é mencionado com frequência, mas as pessoas falam dele de vez em quando. Em algum momento, ao longo das décadas, você realmente deveria ter notado que havia um cara que todos da nossa turma conheciam, mas do qual você não se lembra.”
“Bem… eu quase nem ia pra aula depois de um tempo…” Zach tentou.
“Zach, você tem sido estranhamente evasivo sobre Veyers esse tempo todo”, Zorian disse a ele sem rodeios. “Droga, não faz muito tempo que você voltou a sugerir que talvez tivesse simplesmente esquecido o cara. Como se não tivesse ficado bastante óbvio, àquela altura, que o cara tinha sido propositalmente apagado da sua memória. Eu esperava que você estivesse animado por descobrir algo tão importante, mas, em vez disso, você pareceu realmente ansioso para descartar tudo.”
“Zorian, você está complicando as coisas de novo”, reclamou Zach. “Por favor, fale claramente.”
“Tudo bem. Você provavelmente está sob algum tipo de compulsão para não se concentrar no assunto de Veyers”, disse Zorian. “E possivelmente esquecer depois de um tempo, se alguma vez te forçaram a lembrar. Vamos ver se você ainda se lembra dessa conversa amanhã.”
“Nem brinque com essa última parte, Zorian”, Zach o alertou.
“É o que eu teria feito no lugar do Robe Vermelho”, disse Zorian, dando de ombros. “Mas tenho a impressão de que você não precisa se preocupar com isso. Se o Robe Vermelho não se deu ao trabalho de mascarar melhor a perda de memória, é provável que não tenha se dado ao trabalho de algo tão sofisticado assim. A compulsão de ignorar o assunto em si já teria sido suficiente, de qualquer forma. Quer dizer, se não fosse por eu ser tão insistente e chato sobre o buraco na sua memória quando se trata de Veyers, você provavelmente teria descartado a ideia e, eventualmente, apagado da cabeça.”
Zach sibilou algo baixinho que Zorian não entendeu direito, mas que tinha quase certeza de que eram insultos e palavrões dirigidos ao Robe Vermelho. Algo sobre sua ancestralidade canina e sua preferência por genitálias masculinas. Independentemente disso, Zach passou os minutos seguintes andando de um lado para o outro pela área e resmungando para si mesmo.
Ele parecia perigosamente instável, para ser sincero. E não era a primeira vez que Zach fazia algo assim. Ocorreu a Zorian que todas aquelas décadas que Zach passou no loop temporal, com capacidade limitada de interagir com outras pessoas, deviam ter sido mais duras para seu companheiro de viagem do tempo do que ele imaginava.
Quão pior, então, ele teria ficado se o loop temporal funcionasse como planejado e ele permanecesse lá dentro por centenas de anos ou pelo tempo que devia durar? Talvez a Serpente Fantasma estivesse certa…
Finalmente, Zach parou de andar, passou a mão pelos cabelos de forma frustrada e se virou para Zorian.
“Não acredito que estou fazendo isso”, disse ele. “Sério, não acredito, mas parece que não tenho escolha. Zorian?”
“Sim?” perguntou Zorian, curioso. Zach finalmente o deixaria dar uma olhada em sua mente? Provavelmente, ele não conseguia imaginar o que mais-
“Quero que você me leve para Xvim de novo”, disse Zach, com uma expressão azeda no rosto. “Acho que vou precisar daquelas aulas de magia mental, afinal.”
“Ah”, disse Zorian, piscando surpreso. Ele não esperava isso. “É. Claro.”
Ele não sabia se devia se divertir ou se irritar com esse desfecho. Não era o que ele estava tentando fazer ao abordar o assunto, mas pelo menos isso estava fadado a trazer muita diversão nos dias seguintes.
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