Capítulo 84 - Impotente (1/3)

Capítulo 084

Impotente

Zorian despertou lentamente em sua cama, em Cirin. Sua cabeça estava confusa, seu corpo doía por inteiro e ele tinha dificuldade em se lembrar do que estava fazendo no reinício anterior. Confuso e com dor, permaneceu deitado na cama por um tempo, oscilando entre a consciência e a inconsciência.

Gradualmente, sua mente começou a clarear e ele começou a se preocupar. Algo estava errado. Sim, ele estava se sentindo péssimo, mas era mais do que isso. Algo estava sutilmente fora do normal naquela situação, e isso estava realmente começando a incomodá-lo.

‘Ah, certo’, de repente percebeu. “Kirielle não me acordou pulando em cima de mim. Eu acordei sozinho, sem ninguém por perto. Isso não deveria ser possível, a menos que algo tenha dado muito, muito errado…”

No momento em que percebeu isso, foi como se algo se encaixasse em sua mente e tudo voltasse à sua memória. A visita repentina de Quatach-Ichl, o roubo da adaga dos cofres reais com a ajuda dele, a batalha final contra o antigo lich e o ataque insidioso à alma que ele usou pouco antes do fim do reinício… as memórias inundaram sua mente de repente e sem trégua. O processo foi violento e antinatural, como se algo estivesse enfiando esses pensamentos diretamente em seu cérebro, sem se importar com seu bem-estar. As ondas de dor e náusea que emanavam de sua alma danificada se intensificaram repentinamente, e ele mal conseguiu se levantar da cama antes de vomitar tudo no chão do quarto.

Vagamente, ele percebeu que Kirielle entrou correndo quando ele começou a fazer barulho e saiu correndo aos berros, chamando a mãe para ajudar, mas ele não tinha condições de reagir. Precisou de toda a sua força apenas para se manter consciente e suportar a dor. Sua alma parecia que ia se partir, e ele instintivamente sabia que seria um erro terrível desmaiar naquele momento. Ele e Zach há muito teorizavam que suas almas se sincronizavam de alguma forma com seus corpos no início de cada reinício, interagindo com sua força vital e reorganizando seus cérebros para dar conta das memórias acumuladas ao longo dos loops, e parecia que isso era verdade… exceto que, em seu estado atual, ela não era mais capaz de completar esse processo de forma suave. Sem os esforços conscientes de Zorian para estabilizar sua alma, ela não só devastaria seu corpo e mente, como também poderia se ferir ainda mais em sua confusão.

Se ele perdesse a consciência agora, quem sabia quando acordaria? Uma pequena parte de sua mente, em pânico, temia que ele já tivesse passado a maior parte dos reinícios restantes em coma induzido por danos à alma, mas ele afastou esse pensamento por enquanto. Não era hora de se preocupar com isso. Por ora, tudo o que ele podia fazer era cerrar os dentes e lidar com o problema em questão.

Ele não sabia quanto tempo passou naquele estado, tremendo no chão do quarto enquanto lutava para se manter acordado, mas eventualmente a Mãe e Kirielle o viraram sobre um cobertor e o levaram para um quarto de hóspedes para se recuperar. De alguma forma, ele conseguiu persistir até que sua alma finalmente se acalmou. Quando finalmente se recuperou o suficiente para falar, descobriu que ainda era o primeiro dia do reinício. Ele não reagiu quando Kirielle veio acordá-lo e permaneceu assim por cerca de duas horas antes de despertar. Mãe e Kirielle pareceram abaladas com a gravidade de sua aparente doença e se recusaram a deixá-lo se levantar e andar sozinho depois disso. Elas também chamaram um curandeiro local para examiná-lo, o que era muito irritante, mas perfeitamente razoável diante do que havia acontecido, então ele dificilmente poderia reclamar.

Como era de se esperar, o curandeiro não encontrou nada de errado com ele. Ele não era um mago, apenas um morador local que sabia reconhecer doenças comuns e prescrever poções apropriadas. Ele não encontrou nada de grave com Zorian, então simplesmente sugeriu que o observassem atentamente por alguns dias para garantir que não acontecesse novamente. A mãe ficou bastante insatisfeita com a ‘inutilidade’ dele, mas pareceu mais tranquila depois de receber o diagnóstico.

Quando finalmente o deixaram sozinho por um tempo, ele decidiu arriscar e acessar o seu marcador, mesmo sabendo que a ação agravaria um pouco o dano à sua alma. Ele precisava saber quantas tentativas ainda lhe restavam.

O marcador indicou que ainda lhe restavam 25 iterações, o que fez Zorian soltar um suspiro de alívio. Ele não havia perdido nenhuma das tentativas, aparentemente.

Infelizmente, as boas notícias pararam por aí. O dano que o último ataque de Quatach-Ichl causou à sua alma significava que ele estava completamente incapaz de conjurar qualquer coisa — tentar realizar até mesmo os exercícios de modelagem mais simples fazia sua alma irradiar ondas de dor e náusea por todo o corpo em protesto. Embora isso passasse com o tempo, ele estimou que levaria pelo menos três meses para que estivesse de volta à sua forma plena. Talvez até quatro ou cinco meses, se as circunstâncias o obrigassem a forçar as coisas e ele continuasse agravando seus ferimentos.

Zorian percebeu de repente que dependia de sua magia para praticamente tudo ultimamente. Ele já havia esquecido como era ser um adolescente fraco e comum. Até mesmo bolar um plano para seguir em frente que não envolvesse o uso de um feitiço de teletransporte era difícil…

Droga. Ele duvidava que Zach estivesse em situação melhor do que a dele, considerando que ainda não tinha visitado Zorian depois de tantas horas do reinício, então aquilo era praticamente um desastre total. Mesmo que não tivessem passado nenhum dos reinícios em coma, a incapacidade de usar magia limitaria drasticamente suas opções nos próximos reinícios. Não havia a menor chance de ousarem se aproximar de Silverlake ou Quatach-Ichl com uma alma tão obviamente danificada, por exemplo. Além disso, o antigo lich poderia ser capaz de reconhecer o dano à alma como tendo sido causado por ele mesmo, de algum modo – Zorian não fazia ideia de como isso seria possível, já que não encontrou vestígios de fragmentos de alma estranhos em sua própria alma, mas ele não era um lich milenar como Quatach-Ichl.

Ele suspirou. Realmente havia subestimado o antigo lich. Provavelmente, ele deveria estar se entristecendo internamente pela quantidade de sofrimento que lhes causou, mas, para ser sincero? Zorian se viu impressionado com a determinação e a crueldade demonstradas por Quatach-Ichl. Bastaram alguns instantes para que Quatach-Ichl decidisse, após ver as memórias de Xvim, que o loop temporal era real e que deveria sacrificar tudo para atingi-los onde mais doía. A maioria das pessoas duvidaria da informação recebida ou ficaria chocada demais para pensar com clareza, mas Quatach-Ichl não hesitou em sacrificar a própria alma na tentativa de derrotá-los.

Zorian entendia a lógica. Sem Zach e Zorian atrapalhando tudo, Quatach-Ichl tinha praticamente garantido o que queria com a invasão de Cyoria, e cooperar com eles não lhe era nada atraente. Deixando de lado a possibilidade de traição, ele era um lich milenar — que utilidade teria para uma ou duas décadas insignificantes? Ainda assim, saber tudo isso intelectualmente e ser capaz de ignorar o instinto de autopreservação para executar um ato suicida… eram duas coisas completamente diferentes. Zorian não fazia ideia de que uma pessoa pudesse detonar a camada externa da própria alma para lançar um ataque suicida massivo contra as almas de todos ao redor, mas mesmo que soubesse, não esperaria que Quatach-Ichl usasse tal manobra após menos de um minuto de reflexão. Zorian sabia que não seria capaz de agir com tanta ousadia se estivesse no lugar de Quatach-Ichl, e o deixava perplexo que um lich — seres tipicamente obcecados pela sobrevivência pessoal a qualquer custo — fosse capaz de se preparar para um ato suicida com tanta facilidade.

Bem. Deixando isso de lado, ele de repente percebeu que tinha um problema complicado em mãos. Isso era, precisava encontrar uma maneira de convencer a Mãe a deixá-lo ir a Cyoria para verificar como Zach estava. Pelo que se lembrava, da última vez que não acordara a tempo, fora devido ao ataque dos Mergulhadores da Espada em uma das reinicializações, e tivera que permanecer em Cirin pelo resto do mês para que a Mãe se acalmasse e o deixasse sair de sua vista. Desta vez, a situação parecia muito pior, e ele precisava convencê-la a confiar nele muito mais do que ela estivera disposta da última vez.

Ele já podia sentir a dor de cabeça piorando.

* * *

Foram necessários dois dias inteiros de insistência e discussões constantes até que Zorian conseguisse convencer a mãe a deixá-lo ir. Ele pensou em simplesmente pegar um trem quando ela não estivesse olhando, mas o olhar dela o fez suspeitar que ela largaria tudo e o seguiria se ele tentasse isso. Ela podia ser incrivelmente teimosa nesse sentido. Estranhamente, foi o pai quem acabou ajudando-o, argumentando a seu favor. Ele pareceu realmente impressionado com a disposição de Zorian em ignorar a doença e continuar frequentando as aulas, e acabou ajudando-o a convencer a mãe a deixá-lo ir para Cyoria. Foi uma experiência surreal para Zorian, já que ele não se lembrava da última vez que seu pai ficou do seu lado ou aprovou suas escolhas. Ele não sabia como se sentir em relação a isso.

De qualquer forma, a mãe acabou cedendo, embora tenha insistido que ele levasse Kirielle com ele. Para que ela pudesse ‘ficar de olho nele’, supostamente. Foi engraçado vê-la parar surpresa quando ele concordou imediatamente com o pedido dela. 

A viagem foi um choque um tanto desagradável para ele. Privado de sua magia e ainda atormentado por dores fantasmas e tremores, ele teve dificuldades para carregar a bagagem e ambos acabaram ficando presos na chuva por um tempo antes de procurarem abrigo em uma pousada próxima. Ele acabou alugando um quarto minúsculo e superfaturado por uma única noite, já que a chuva não daria trégua tão cedo.

Kirielle não parou de reclamar por quase uma hora por ter se molhado, e gritou como um bebê quando viu uma barata particularmente grande rastejando pela parede do quarto.

Não poder acessar suas vastas habilidades mágicas foi uma experiência incomum e muito desagradável.

No dia seguinte, ele levou Kirielle para a casa de Imaya. Felizmente, ela não fez muito alarde com a chegada deles, embora Zorian não tivesse combinado nada com Ilsa neste reinício em particular.

Então ele saiu em busca de Zach.

Ele logo percebeu que isso não seria tão fácil quanto imaginava. Zach, como ele logo descobriu, estava oficialmente desaparecido. Tesen Zveri, o tutor legal de Zach, estava organizando uma busca por ele e pediu que qualquer pessoa que tivesse informações sobre seu paradeiro o contatasse imediatamente.

Aquilo era… muito familiar. Quase nostálgico, na verdade. Era praticamente a mesma situação que ele enfrentara durante as primeiras reinicializações depois de ser puxado para o loop temporal.

Ele se perguntou o que aquilo significava. Seria algum tipo de salvaguarda adicional do loop temporal que mantinha o controlador desaparecido até que ele se recuperasse, ou seria apenas o tutor de Zach surtando por encontrar Zach em coma e fingindo um desaparecimento? Pessoalmente, Zorian apostaria na segunda opção. Aparentemente, muitas pessoas sabiam o quão inadequada era a maneira como Tesen lidava com os assuntos de Noveda, então, se Zach desmaiasse misteriosamente de repente, ele seria um dos principais suspeitos. Zorian conseguia perfeitamente imaginar Tesen temendo que o coma fosse atribuído a ele e fingindo um desaparecimento até decidir o que fazer, assim como Jornak fez com Veyers.

De qualquer forma, era relativamente fácil provar qual das opções estava correta. Zach e Zorian possuíam um marcador com chaves idênticas, e Zorian conhecia um ritual de rastreamento que lhe permitiria localizar seu companheiro viajante do tempo com facilidade.

Tudo o que ele precisava fazer agora era encontrar alguém para ajudá-lo a realizar o ritual. Porque ele era incapaz de fazê-lo sozinho no momento.

Deuses, como ele odiava esse reinício…

* * *