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    Capítulo 010

    Detalhes Negligenciados

    Os olhos de Zorian se abriram abruptamente quando uma dor aguda irrompeu de seu estômago. Todo o seu corpo convulsionou, dobrando-se contra o objeto que caiu sobre ele, e de repente estava bem acordado, sem nenhum traço de sonolência em sua mente.

    “Bom d-“

    “Não, não é,” Zorian interrompeu. “Como poderia ser um bom dia? Eu fui morto de novo! Comido por um verme gigante desta vez. E acordar assim está realmente começando a me irritar! O loop temporal não poderia ter começado um dia depois ou algo assim?”

    Ele olhou para sua irmã com expectativa. Ela olhou para ele, confusa e talvez um pouco assustada.

    “Hum, o quê?” ela perguntou hesitante.

    Sem falar, Zorian a virou para a beirada da cama. Ela caiu no chão com um baque e um grito indignado, e ele logo se levantou para responder melhor a qualquer violência com a qual ela decidisse retaliar. Tendo aprendido a lição durante as reinicializações anteriores, imediatamente partiu para o banheiro antes que ela pudesse se orientar.

    Ela percebeu o que ele estava fazendo bem rápido, mas a essa altura ele já havia trancado a porta atrás de si. Os gritos de indignação dela eram música para os ouvidos dele, em especial porque acabaram fazendo com que a mãe fosse atrás dela e lhe desse uma bronca.

    Talvez tenha sido um bom dia, afinal.

    * * *

    Trens… Zorian não gostava mesmo deles para começar, mas estava começando a desenvolver uma antipatia intensa por eles desde que foi pego nessa coisa de loop temporal. Viajar de trem com regularidade era quase tão irritante quanto Kirielle pular sobre ele no início de cada reinicialização. 

    Ele havia brincado com a ideia de matar o tempo puxando uma conversa com Ibery, para que ela o conhecesse quando conseguisse um emprego na biblioteca, mas desistiu da ideia depois de um tempo. Principalmente porque decidiu não se candidatar ao cargo neste reinício. 

    Trabalhar na biblioteca como vinha fazendo consumia bastante tempo, e ele tinha um projeto muito mais promissor para trabalhar — dominar todos os exercícios de modelagem do livro de Ilsa para que pudesse convencê-la a tomá-lo como seu aprendiz. A magia da biblioteca era útil, mas livrar-se de Xvim seria absolutamente inestimável.

    Ele também não estaria presente em Cyoria quando a invasão acontecesse. Não neste reinício, nem em um futuro próximo. Mesmo que tivesse que revelar seu segredo a Zach por causa disso, pegaria o primeiro trem para fora da cidade na véspera do festival de verão. 

    Ele sabia que a coisa inteligente e responsável a fazer seria ficar na cidade e observar o que estava acontecendo — como a invasão estava progredindo e o que poderia ser feito para detê-la. Sabia disso, mas… era demais para ele. E não apenas porque se envolver naquela confusão parecia levar a uma morte inevitável. 

    A montanha-russa emocional da evacuação foi muito difícil para seus nervos, mas isso foi apenas um sintoma do problema real. Ele lutou com seus pensamentos por um momento, tentando identificar a raiz do problema. Todas as razões que poderia pensar pareciam… erradas.

    E então percebeu. Foi o desamparo. Toda vez que seus pensamentos se desviavam para o tópico da invasão, ele não conseguia se livrar da noção de que as forças reunidas contra ele estavam muito além de sua capacidade de lidar e que a única razão pela qual sobreviveu tanto tempo foi por pura sorte. 

    Ocorreu-lhe que a forma de sua morte mais recente poderia com facilidade ser uma alegoria para toda essa invasão. Então você repeliu uma matilha assassina de lobos invernais e alcançou a segurança, ajudou a frustrar uma emboscada traidora e agora acha que o pior já passou? 

    Não, estúpido, um verme gigante de repente pula do chão e arranca sua cabeça com uma mordida! Como você deveria lutar contra algo assim? Como ele deveria lutar contra algo assim?

    Talvez não devesse. Muitas coisas sobre a invasão pareciam… implausíveis. Tão implausível quanto Zach se tornar um super prodígio no período de um único verão, Zorian aprendendo todos os 15 exercícios de modelagem no livro de Ilsa no período de um mês, ou a viagem no tempo sendo real. 

    E se sua teoria de haver um terceiro viajante do tempo estivesse correta e que alguém fosse o mentor da invasão? Isso explicaria muito. Então, pensando bem, também colocaria muitas questões por conta própria… como por que esse viajante do tempo hostil ainda não havia lidado com Zach? O lich já havia provado que era muito possível ferir pessoas como Zach e Zorian, e já estava trabalhando para as forças invasoras.

    Apesar disso, ele pretendia se envolver com a invasão somente depois que adquirisse alguma magia séria, ou depois que se acalmasse um pouco e se sentisse com capacidade emocional de enfrentar a situação. O que vier primeiro. Não é como se pudesse estudar a invasão em grandes detalhes se continuasse morrendo logo no início, de qualquer maneira.

    Eventualmente, o trem chegou a Cyoria e Zorian começou sua longa jornada em direção à academia. Ele não estava com pressa desta vez, porque encontrou um feitiço para se proteger da chuva no último reinício e estava ansioso para experimentá-lo. 

    Bem, ele na verdade encontrou vários feitiços de proteção destinados a lidar com a chuva e outras condições climáticas adversas, mas apenas um estava dentro de sua capacidade de conjurar. Tudo bem, porém, já que o feitiço barreira de chuva era o mais adequado para seus propósitos de qualquer maneira — oferecia a proteção mais completa, ao custo de ser desgastante e terrível para manter. 

    Ele podia ver por que o dreno de mana seria um problema sério para as pessoas que queriam usar o feitiço extensivamente, mas Zorian só precisava que durasse uma ou duas horas em uma área excepcionalmente rica em mana de Cyoria.

    Além disso, estar envolto em uma esfera invisível que repelia a água era mais impressionante do que as proteções mais sutis e sofisticadas. A barreira funcionava de verdade na água em geral, não apenas nas gotas de chuva, então nem precisava se preocupar em pisar em poças e encharcar o calçado. 

    Ver a água na estrada se abrindo diante dele como na frente de algum tipo de emissário celestial era muito divertido. Também aumentou um pouco seu ego, algo que precisava muito depois de ser tão derrotado durante a invasão do reinício anterior.

    Talvez ele nunca usasse o feitiço depois de sair do loop temporal, já que um guarda-chuva era bom o suficiente para a maioria das ocasiões e não consumia mana, mas encontrar uma loja que os vendia ao longo de sua rota habitual da estação de trem provou ser uma tarefa difícil. 

    O que, agora que pensava sobre isso, sugeria que ele provavelmente usaria o feitiço de vez em quando, já que duvidava que esta fosse a única vez em sua vida que se encontraria sem um guarda-chuva adquirido com facilidade.

    Ele balançou sua cabeça. Não deveria mesmo estar fantasiando sobre o que faria depois de sair do loop temporal, já que não parecia que isso aconteceria tão cedo. Tinha que se concentrar no presente… e isso parecia estranho, considerando a situação dele. 

    Como o que faria com Zach? Ele ficou muito tentado a apenas admitir tudo para o menino e fazer com que eles tentassem descobrir essa bagunça juntos — certamente duas cabeças pensam melhor do que uma? Zach era impulsivo, mas não poderia ter chegado tão longe sem ter uma boa cabeça em seus ombros. Ele não se sentia muito confortável com essa ideia, porém — suspeitava bastante que havia mais em Zach do que parecia, e odiava avançar sem saber no que estava se metendo.

    Ele decidiu ver como Zach interagia com ele neste reinício antes de decidir.

    * * *

    “Zorian! Por aqui!”

    Zorian olhou para o Benisek de aparência feliz acenando para ele como um lunático e se perguntou o que deveria fazer. Ele não queria mesmo falar com ele. Benisek pode ser seu amigo mais próximo entre os estudantes, mas também era bastante irritante às vezes, e não é como se ele pudesse dizer a Zorian algo que ainda não soubesse neste momento. 

    No final, suspirou em derrota e caminhou até o garoto sorridente. Loop temporal ou não, parecia errado desprezar alguém tão feliz em vê-lo, em especial porque ele compartilhou tanta história com Benisek.

    Ele achou interessante que Benisek estivesse presente no refeitório neste momento, já que esse não era seu comportamento habitual nas reinicializações que Zorian experimentou até agora. Esse tipo de divergência inexplicável acontecia o tempo todo, o que era de se esperar — havia pelo menos dois viajantes do tempo vagando pelo loop temporal, mudando coisas inconsequentes e cruciais — mas foi surpreendente ver uma mudança tão rápida no loop temporal.

    Fazia apenas um dia desde que chegou a Cyoria. No geral, demorava pelo menos uma semana até que tudo saísse dos trilhos e, mesmo assim, muitas coisas se repetiam. A maioria dos professores seguia algum tipo de plano de ensino fixo, por exemplo, e raramente se desviava dele. 

    Tanto quanto sabia, Fortov sempre vinha procurá-lo para obter ajuda com a pomada de trepadeira roxa, mesmo que seu acidente com Ibery só tenha acontecido perto do final do loop temporal. O que, pensando bem, sugeria que o acidente não fora tão acidental assim. Meio suspeito para um acidente ser tão insensível às mudanças…

    “Você acabou de chegar a Cyoria, não é?” Benisek perguntou com entusiasmo no momento em que Zorian se sentou ao lado dele.

    Zorian assentiu com hesitação. Benisek só ficava tão animado quando falava sobre uma garota muito gostosa ou quando pegava material de fofoca bastante suculento. Ele esperava que fosse o último, porque não havia como Zorian ficar de outra forma.

    “Você não vai acreditar nisso!” Benisek disse entusiasmado. “Você conhece Zach? Sabe, Zach Noveda, último descendente da Casa Nobre Noveda? Ele estudou conosco nos últimos dois anos.”

    Claro que é Zach. Ele deveria mesmo saber.

    “Claro que eu o conheço,” disse Zorian. “Ele é… muito memorável.”

    “Ele é?” piscou Benisek. Ele balançou sua cabeça. “Quero dizer, é claro que ele é. Eu meio que não esperava que você soubesse, já que ele é um fracasso como mago e você nunca interagiu muito com ele.”

    Zorian deu de ombros. Verdade seja dita, era muito raro que ele esquecesse o nome de alguém, não importava quantas vezes houvesse interagido com essa pessoas ou quanto tempo fazia desde a última vez que a viu. Mesmo antes do loop temporal, Zorian saberia no mesmo momento a quem Benisek estava se referindo.

    “De qualquer forma,” Benisek continuou, “Zach escapou da mansão de sua família ontem.”

    “Err, o quê?” perguntou Zorian incrédulo. “O que você quer dizer com escapou? Por que ele precisaria escapar da sua própria mansão?”

    “Bem, essa é a questão, não é?” disse Benisek. “Ao que parece, ele teve uma discussão com seu guardião que acabou resultando em um duelo mágico completo. Um duelo que, veja bem, Zach venceu! Metade da mansão foi destruída e Zach fugiu para a cidade e ainda não foi encontrado. Eles estão procurando por ele em todos os lugares!”

    “Hum, uau,” disse Zorian, honestamente sem palavras. O que diabos foi isso?

    “Sim,” Benisek concordou. “Mas não tenho certeza se acredito na história oficial. Quero dizer, não há como Zach ter enfrentado seu guardião em um duelo mágico! Tesen Zveri é um mago do 7º círculo ou algo assim, e Zach mal passou em sua própria certificação! Então, pensando bem, algo com certeza demoliu a mansão Noveda…”

    “Como você sabe disso?” perguntou Zorian.

    “Está em todos os jornais,” disse Benisek. “Além disso, todo mundo está falando sobre isso. Eu não posso acreditar que um de nossos colegas de classe estaria envolvido em algo assim. O que você acha, Zorian?”

    “Ben… sendo sincero, também não sei o que pensar sobre isso,” disse Zorian.

    E ele quis mesmo dizer isso. Ele não duvidou por um segundo que Zach poderia derrotar seu guardião, 7º círculo ou não — o homem era um político, até onde Zorian sabia, não um mago de batalha — mas por que ele iria querer fazer isso?

    “Suponho que ele não virá para a aula desta vez, então,” Zorian meditou em voz alta. Então, pensando bem, não duvidava que Zach apenas entrasse na aula um dia desses como se nada estivesse errado.

    “Duvido,” riu Benisek.

    “Ele matou alguém?” perguntou Zorian. Benisek balançou a cabeça em negação. “Em resumo, ele não fez nada tão sério. Qual é a pior coisa que pode acontecer com ele se só se entregar?”

    “Bem, Tesen não deve estar muito feliz com ele agora, e ele é muito influente para ignorar, mesmo para alguém como Zach,” disse Benisek. “Atacar um dos Anciãos de Eldemar é na verdade um crime bastante sério, e Tesen poderia mesmo arruinar o dia de Zach se estivesse inclinado a buscar satisfação. Não que eu ache que ele iria, já que isso só chamaria ainda mais atenção para o que aconteceu. Tudo isso é um escândalo político gigante para ele. Eu estou supondo que Zach vai voltar depois de um mês ou mais, depois de se acalmar  um pouco, e Tesen irá magnanimamente perdoá-lo por tudo.”

    Zorian ficou em silêncio. Zach disse a ele que era raro ele passar um reinício em Cyoria, e ainda mais raro assistir às aulas. À luz disso, foi tolice dele esperar que Zach estivesse por perto neste reinício. Ele pode ter achado Zorian interessante no reinício anterior, mas era muito provável que não fosse tão interessante. 

    Ainda assim, isso era mais do que um pouco estranho. Se ele quisesse sair e fazer suas próprias coisas, não poderia apenas ter saído de sua mansão um dia e continuado? Quem o teria parado? Seu guardião? Por que Tesen faria isso? O homem era conhecido por ser muito indiferente ao lidar com suas obrigações, como evidenciado pelas frequentes ausências escolares de Zach durante os últimos dois anos, bem como seu péssimo desempenho antes do loop temporal.

    Não havia uma resposta óbvia, e Zorian não queria tentar rastrear Zach. Ele provavelmente não conseguiria encontrá-lo, mesmo que tentasse, e tinha objetivos mais alcançáveis ​​para perseguir.

    Como escapar das garras impiedosas de Xvim. O que poderia ser mais importante do que isso?

    * * *

    O resto do reinício foi agradável e tranquilo. Não havia Zach, já que o menino nunca apareceu na escola e não foi encontrado por ninguém. Depois de mais ou menos uma semana, os jornais pararam de cobrir a história porque não havia novos desenvolvimentos para justificar os artigos, e os rumores que circulavam pelo corpo estudantil diminuíram logo depois.

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