Índice de Capítulo

    O templo era tão imponente quanto da última vez que Zorian o visitou — os mesmos anjos da guarda olhando para ele, a mesma sensação de abandono do prédio e a mesma história da criação esculpida nas pesadas portas de madeira. Desta vez, ele estudou os entalhes na porta com mais interesse do que da última vez, já que algumas das imagens eram bastante interessantes à luz das coisas que ele havia descoberto após sua primeira visita. Para ser mais específico, algumas das esculturas inferiores retratavam monstros que surgiram do coração descamado da Dragoa Mundial e esses monstros eram claramente primordiais. Eles tinham toda a aparência de criatura de retalhos impossível que parecia ser a única característica definidora de primordial, e combinavam com as descrições de primordiais conhecidos que ele havia lido nos livros.

    O cruzamento profano entre escorpião, libélula e centopéia era com certeza Hynth, o Lorde Locusto, cuja carapaça de bronze era impermeável a quase tudo, exceto armamento forjado por deuses, e cujas quatro pinças podiam rasgar aço como papel. A capacidade de liberar nuvens de insetos devoradores e mordedores dos poros de seu corpo que devastaram o campo por quilômetros ao redor da coisa, enquanto o primordial atacava qualquer um forte o suficiente para detê-lo completava a imagem de um desastre natural vivo. 

    O aglomerado de asas pendurado acima de Hynth provavelmente era Ghatess, que segundo os mitos era uma bola feita de asas de pássaros multicoloridos — e apenas asas de pássaros — que criava tempestades e tornados por onde passava, canalizando a matéria para o centro de sua esfera, onde parecia desaparecer sem deixar vestígios. 

    A coisa javali/crocodilo/porco-espinho era Ushkechko, uma besta feita de vidro preto indestrutível que envenenava qualquer um que encostasse em uma de suas numerosas saliências laminadas. Ele também podia disparar as ditas saliências como flechas nos oponentes. A entidade parecida com uma lesma coberta de olhos e bocas era-

    “Posso ajudá-lo em algo, jovem?”

    Zorian parou de escrutinar a porta para olhar para Batak. Na última vez que esteve aqui, pediu para falar com Kylae, mas desta vez o homem à sua frente seria suficiente. Ele pode até ser preferível, considerando que Kylae deveria ser uma mestra adivinha. Ele deu ao homem um sorriso nervoso e falou.

    “Eu… queria ter uma conversa com você, se não for um grande problema.”

    “Claro!” o homem disse com alegria, conduzindo Zorian rapidamente para dentro. Zorian lembrou da última vez que o templo não recebia muitos visitantes. Deve ser uma existência bastante solitária servir como guardião deste lugar. Em pouco tempo, os dois estavam sentados em frente a uma mesinha na sala semelhante a uma cozinha que Batak usava para receber visitantes, com um bule de chá preparado fumegando na frente deles.

    “Então… sobre o que você quer falar comigo?” Batak disse depois de uma conversa fiada, levando o copo à boca e tomando um longo gole.

    “Eu queria perguntar sobre primordiais,” disse Zorian.

    Batak imediatamente engasgou com o chá e passou os segundos seguintes tossindo.

    “Por que *cof* você iria querer saber sobre eles?” Batak perguntou incrédulo.

    “Eu… não tenho certeza se devo contar a você. Não quero problemas.”

    Batak deu a ele um olhar curioso e impassível, mas Zorian sentiu uma nota de preocupação em sua mente.

    “Bem, não tenho certeza se você sabe ou não, mas há um boato se espalhando de que algumas pessoas vão tentar atrapalhar o festival de verão,” Zorian começou.

    “Já ouvi falar disso, sim,” Batak suspirou.

    “Bem, alguns dias atrás, fui com alguns amigos aos níveis superiores da Masmorra para fazer um trabalho para um cliente. Um trabalho simples de encontrar e recuperar um objeto, mas acabamos nos deparando com uma base subterrânea cheia de trolls de guerra e quase morremos no processo. A polícia está mantendo tudo em segredo no momento, mas eu entendo que a investigação deles revelou que não era a única base lá embaixo. Alguém passou meses preparando uma cabeça-de-ponte para este ataque e tem muitos ativos para queimar…”

    Depois de mais de uma hora de explicações e esclarecimentos, Batak parecia aceitar que o ataque era algo muito mais sério do que ele pensava e (mais importante) que era apenas uma distração para uma tentativa de convocação de um primordial. Por sorte, tudo o que Zorian estava dizendo a ele era totalmente verdadeiro, então qualquer método de detecção da verdade que o homem estivesse usando retornou suas explicações como genuínas. 

    O fato de Kylae ter um apagão de previsão naquela época provavelmente fez muito para legitimar a afirmação aos olhos do sacerdote, já que a convocação bem-sucedida de um primordial poderia ser a razão de suas adivinhações falharem. Na verdade, foi por isso que Zorian veio a este templo em particular, em vez de, digamos, o templo principal da cidade.

    “Vou notificar a hierarquia da igreja, eles devem poder dispensar um ou dois esquadrões de investigadores para verificar isso,” disse Batak. “Ainda mais se eles tiverem provas sólidas em vez de apenas uma denúncia anônima. Você por acaso tem alguma coisa por escrito?”

    “Aqui,” respondeu Zorian, recuperando uma pilha de documentos e cadernos de sua bolsa e entregando-os a Batak. “Isto é tudo o que tenho sobre a invasão. Tentei ser o mais minucioso e metódico possível. Eu preferiria mesmo que meu nome não fosse mencionado em nenhum lugar, no entanto.”

    Batak olhou a pilha em especulação. “Não posso garantir isso. Se o seu nome aparecer durante a investigação…”

    “Não vai,” Zorian interrompeu.

    “Bem, então não prevejo nenhum problema,” Batak deu de ombros. “É um pouco estranho da sua parte ter tanta informação sobre este grupo se você não é um desertor de suas fileiras.”

    Zorian não disse nada.

    “Tudo bem,” disse Batak, se animando e balançando a cabeça de leve para clareá-la. “Você ainda está interessado em ouvir sobre os primordiais ou foi apenas uma manobra para chamar minha atenção?”

    “Ainda estou interessado, sim,” respondeu Zorian. “Estou muito curioso para saber por que eles sentiram a necessidade de organizar tudo isso apenas para convocar um.”

    “Para ser justo, não acho que saber mais sobre os primordiais saciará sua curiosidade a esse respeito,” comentou Batak. “Qualquer um que queira convocar uma dessas coisas é claramente insano. Mas não importa — diga-me, o que você sabe sobre os primordiais em primeiro lugar?”

    “Eles são algum tipo de espírito poderoso vindo dos tempos antigos,” Zorian tentou. “Como feéricos ou elementais, só que mais velhos, mais estranhos e muito mais perigosos.”

    Batak suspirou. “Eu sabia que você ia dizer isso. No futuro, quando estiver interessado em algum aspecto do mundo espiritual, consulte primeiro os textos religiosos antes de se aprofundar nas obras escritas por magos. Eu sei que a igreja pode ser um pouco tendenciosa sobre muitas coisas, mas nós sabemos mesmo o que fazer quando se trata de espíritos e tudo relacionado a eles. Desde que os deuses ficaram em silêncio, os espíritos são a única coisa que nos resta, então fizemos um trabalho extenso sobre eles. E também não escondemos muito.”

    Zorian assentiu com timidez. Nunca lhe ocorreu consultar textos religiosos sobre o tema. Ele culpou o sacerdote da cidade em Cirin, que era um velho hipócrita fanático que continuava criando problemas para Zorian sempre que eles se cruzavam e, por consequência, azedou a Igreja como um todo para ele.

    Batak tamborilou com os dedos na mesa por alguns segundos, reunindo seus pensamentos.

    “Tudo bem. Primeiro, deixe-me dizer-lhe algo sobre espíritos reais. Sinto muito se isso já é familiar para você, mas preciso comentá-lo para explicar porque os primordiais absolutamente não podem ser espíritos.”

    Zorian fez sinal para que ele continuasse.

    “Os espíritos são, do ponto de vista prático, divididos em dois grupos principais: os espíritos forasteiros e os nativos. Forasteiros passam a maior parte do tempo em seus próprios mundos espirituais e só podem entrar no nosso se convocados por alguém deste lado. Demônios e anjos são os mais famosos espíritos forasteiros, embora agrupar todos os demônios em um único grupo seja feito principalmente por humanos para conveniência humana — não há equivalente demoníaco à hierarquia angelical e a probabilidade de dois demônios lutarem entre si é igual a de cooperarem em um objetivo comum. Espíritos nativos são uma multidão de espíritos que existem no plano material por padrão — você já mencionou elementais e feéricos, que são os dois tipos mais comuns de espíritos nativos. É provável que os espíritos nativos tenham sido espíritos forasteiros que aos poucos se adaptaram à vida no mundo material, pois compartilham a característica principal que todos os espíritos possuem. Ou seja, que eles não têm corpos como humanos e animais: eles são almas desencarnadas que precisam de algum tipo de recipiente para contê-los e permitir que interajam com o mundo ao seu redor.”

    “Então os espíritos são entidades da alma,” Zorian meditou. “Como liches ou ladrões de corpos.”

    “Sim, muito parecido com isso,” Batak concordou. “Na verdade, alguns espíritos são ladrões de corpos e preferem habitar corpos de humanos e animais. E é provável que o processo de transformação em um lich tenha sido desenvolvido estudando os espíritos e a maneira como eles interagem com seus receptáculos. Enfim, primordiais. Primordiais têm corpos. Corpos reais, de carne e osso. A maioria das pessoas, mesmo os magos, assumem que são espíritos por causa de suas formas estranhas e grande resistência a danos, mas eles têm mais semelhanças com dragões e outras criaturas mágicas do que com entidades espirituais. Os espíritos tendem a ser estranhos porque seus corpos geralmente são apenas conchas ectoplásmicas, que eles podem torcer em qualquer forma não natural que desejem. Primordiais são criaturas do mundo material, assim como você e eu.”

    “Mas espere,” disse Zorian. “Se os primordiais não são espíritos, mas algum tipo de estranha criatura mágica, como os atacantes planejam invocar um?” 

    “Eles não vão,” disse Batak. “Eu não queria interrompê-lo enquanto você falava, mas é quase certo que você entendeu errado. Primordiais não podem ser convocados, pois já estão aqui conosco. Amarrados, forçados a dormir e trancados, mas ainda conosco. Eles podem ser soltos.”

    Zorian sentiu um arrepio percorrer sua espinha. O primordial não iria desaparecer, ele percebeu. Os invasores Ibasan pensaram que estavam convocando um demônio sofisticado para atacar seus inimigos, mas aquela coisa nunca voltaria ao seu plano natal por conta própria. Não tinha um.

    “Por que eles foram selados?” Zorian perguntou. “Por que não apenas matá-los?”

    “Primordiais não morrem como a maioria das coisas,” disse Batak. “Eles são remanescentes, uma relíquia da época em que o mundo ainda estava fresco e a Dragoa Mundial acabara de ser presa no centro do nosso mundo. Eles são seus filhos originais, a expressão mais pura de sua raiva e ódio, e encontraram maneiras de atacar a humanidade e os deuses, mesmo em sua morte. Eles geram primordiais menores e mais fracos em seus estertores de morte e muitas vezes infligem efeitos de corrupção na área em que morreram. Até os deuses acharam difícil lidar com as consequências da morte de um deles, então acabaram por contê-los e prendê-los em cantos distantes da terra.”

    “E os atacantes acreditam que um deles está em Cyoria,” afirmou Zorian.

    “Ao que parece, sim” concordou Batak. “Eu não saberia pessoalmente — ninguém jamais viu uma dessas prisões na memória viva e os registros escritos são vagos sobre suas localizações de propósito. Ainda assim, lembrando da história, Cyoria tinha sido um canto distante do mundo até pouco tempo atrás. Então suponho que seja possível. Estranho que ninguém tenha encontrado qualquer indicação disso em todo esse tempo, porém, considerando quantos magos mergulham nas profundezas do Buraco com frequência…”

    “Entendo,” disse Zorian. Ele se desculpou logo depois. Embora interessante, isso não mudou muito as coisas e sua tarefa já havia sido concluída.

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