Capítulo 31 - Marcado (1/4)
Capítulo 031
Marcado
Zorian encarou o rosto sorridente de seu oponente, seu próprio rosto permanecia uma máscara vazia e inexpressiva. Era isso. Esta última rodada decidiria quem seria o vencedor, sem sombra de dúvida. Seu oponente pensava que havia o encurralado, mas Zorian tinha uma arma secreta — ele, na verdade, tinha espreitado os pensamentos do homem e sabia que já estava ganho.
As regras do jogo de cartas eram bem claras, afinal.
“Doze de abóboras”, disse Zorian, colocando sua última carta na mesa. O rosto do homem imediatamente perdeu o sorriso. Zorian tentou manter uma fachada fria, mas ele provavelmente sorriu pelo menos um pouco.
“Filho da p- Como você é tão sortudo!?” o homem xingou, esmurrando sua própria carta no topo da pilha — um mísero sete de carvalhos, nem de longe o suficiente para vencer — e tomando um trago da bebida destilada próxima a ele. Ele bebeu até demais, na opinião de Zorian, e seus pensamentos gradualmente ficavam mais e mais turvos para as sondas mentais de Zorian com o passar do tempo… e, embora isso o tornasse mais difícil de ler por meio de poderes psíquicos, também o tornava progressivamente pior no jogo. Ele provavelmente nem precisava trapacear para ganhar os dois últimos jogos, mas trapacear era meio que o ponto central — ele entrou no jogo de cartas para praticar sua habilidade de leitura mental em um ambiente real, não para usurpar dinheiro de vítimas desafortunadas.
“Bem, por mim já deu,”disse Zorian, levantando-se. “Foi divertido e tudo, mas eu realmente preciso ir agora.”
“Ei, você não pode simplesmente sair agora,” o homem protestou, franzindo a testa para ele. “Não é assim que se faz! Você tem que me dar uma chance de ganhar meu dinheiro de volta!”
“Orinus, você está bêbado”, disse um dos outros homens na mesa. Os dois deles desistiram há três jogos, mas ainda ficaram para conversar, beber e agir como juízes e guardiões do dinheiro. “Você não perdeu nada. É o garoto que acabou de recuperar o dinheiro que perdeu para você no jogo anterior. Ninguém precisa pagar mais nada a ninguém.”
“É, os últimos cinco jogos foram basicamente para nada”, o outro homem comentou.
Zorian assentiu. Mesmo com a leitura mental ao seu lado, algumas mãos eram simplesmente impossíveis de ganhar. Fora isso, ele propositalmente perdeu alguns jogos para não levantar suspeitas de trapaça em seus parceiros. “Estamos ambos empatados agora, e eu realmente preciso ir, então é a hora perfeita para parar”, ele disse. “Ainda assim, se você está tão desesperado por uma revanche, eu sempre posso te livrar do seu dinheiro outro dia. Vou ficar na cidade por todo o mês, de qualquer forma.”
“Você me livrar do meu dinheiro, ha! A única razão pela qual você não acabou de cueca é que você é imune à minha técnica secreta!” Orinus gritou contidamente.
Os outros homens bufaram em diversão. “Embebedar o novato é uma técnica secreta, agora?”
“Ei cara, não revele todos os meus truques para estranhos… que tipo de amigo você é?” Orinus protestou.
Após mais alguns minutos de discussão e ofertas recusadas de bebidas alcoólicas, Zorian finalmente conseguiu se justificar. Ignorando os resmungos de Orinus questionando a sua masculinidade por recusar beber qualquer coisa remotamente alcoólica, ele saiu da estalagem e começou a procurar nas ruas de Knyazov Dveri um canto afastado de onde pudesse se teletransportar sem ser visto. O jogo tinha sido tanto inesperadamente divertido quanto útil para seu treinamento de magia mental, mas ele não estava mentindo quando disse que precisava ir. O tempo era crucial para o que ele pretendia fazer.
No reinício anterior, ele descobriu que a maioria dos magos de alma na lista de Kael estavam desaparecidos ou haviam morrido recentemente. Isso era, claro, altamente suspeito — havia uma boa chance de que a coisa toda estivesse de alguma forma conectada ao loop temporal, o que significava que ele precisava saber mais sobre isso. Infelizmente, durante o último reinício, ele cometeu o erro de contar a Vani sobre os desaparecimentos, e ele gerou um alarme suficiente para fazer a polícia rastejar por todos os lugares em torno dos possíveis locais de pistas. Consequentemente, Zorian foi forçado a deixar o problema de lado e esperar pelo próximo reinício para conduzir sua própria investigação.
E foi exatamente o que fez, no momento em que acordou em Cirin e pôde sair sem fazer a Mãe e Kirielle terem um ataque. Como ele suspeitava, praticamente todos os magos de alma já se foram, mesmo naquele primeiro dia. O que quer que tenha acontecido com eles estava acontecendo há muito mais tempo do que o loop temporal existia, ao que parecia. Havia apenas duas exceções: os dois magos que foram confirmados mortos no reinício anterior estavam vivos e bem no começo do novo. O primeiro, um padre chamado Alanic Zosk, especializado em combater mortos-vivos, havia sido simplesmente encontrado morto sem nenhuma causa aparente alguns dias após dentro do reinício. O segundo era Lukav Teklo, um alquimista especializado em magia de transformação. Ele tinha sido morto por javalis não tão longe de sua casa, no anoitecer do segundo dia do reinício.
Naturalmente, Zorian pretendia falar com ambos, o que exigia salvar suas vidas. O alquimista era uma prioridade, pois ele morrera mais cedo e a causa da morte era conhecida e facilmente prevenível. Por isso sua pressa em deixar o jogo — se cronometrasse as coisas corretamente, ele chegaria à casa do homem uma ou duas horas antes de seu fatídico passeio fora da vila. Se cronometrasse as coisas incorretamente ou suas ações de alguma forma fizessem o alquimista acelerar seu cronograma… bem, sempre havia recomeços futuros. Não é como se o homem fosse morrer para sempre.
Ele poderia ter contatado o homem antes para avisá-lo, ele presumiu, mas como ele explicaria seu conhecimento do ataque? Ele apenas se tornaria suspeito. E, além disso, ele realmente queria que o ataque acontecesse. Ele duvidava que fossem javalis normais que o atacaram, então ele queria examiná-los de perto… e também, o homem estava fadado a ser mais útil se ele conhecesse Zorian como um salvador que o protegeu de uma malhada1 perversa de javalis, do que se ele simplesmente aparecesse na porta do homem sem nenhum aviso.
Depois de se teletransportar para fora da casa do homem e se certificar de que o alquimista ainda estava em sua casa, Zorian se acomodou para esperar, garantindo ficar fora da vista de qualquer janela. Se tinha algo que nunca faltava em pequenos vilarejos como este, eram velhos curiosos que não tinham nada melhor para fazer além de observar as ruas em busca de algo fora do comum. Honestamente, algumas das velhas de Cirin passavam praticamente todos os momentos que estavam acordadas grudadas nos peitoris2 das janelas, lembrando de cada pessoa que passava por seus domínios… ele perdeu a conta do número de vezes que elas o colocaram em apuros com seus pais quando ele, tolamente, esquecia de levar em conta a presença deles.
Ele não teve que esperar muito. Apenas meia hora depois de se acomodar em espera, o alquimista deixou sua casa. Foi uma boa coisa ter chegado cedo, então. Zorian prontamente conjurou um feitiço de invisibilidade em si mesmo e começou a seguir o homem a uma distância considerável. Com sorte, ele permanecera longe o suficiente para que o homem não achasse suspeito quando Zorian entrasse na cena ao primeiro sinal de problema, mas isso não podia ser mudado. Ele não se sentia confortável em colocar ainda mais distância entre os dois, sob o risco de que o homem fosse morto antes que ele pudesse ajudá-lo. Dependendo de quão desatento e hábil em combate o homem fosse, ele poderia ser dominado em segundos.
E o ataque em si estava prestes a acontecer a qualquer momento. O relatório que ele viu no último reinício disse que o homem foi morto logo do lado de fora da vila, e Lukav imediatamente seguiu diretamente para a estrada principal que levava ao próximo assentamento. Cautelosamente, Zorian sacou sua varinha mágica e tencionou seu sentido mental ao limite para localizar os atacantes antes que pudessem atacar.
Ele não encontrou nada fora do comum e ficou tão chocado quanto o alquimista quando um bando de javalis irrompeu da linha das árvores e avançou contra o homem. Ambos congelaram por um segundo e, antes que qualquer um pudesse reagir, os javalis já haviam fechado metade da distância até o alquimista.
Vergonhosamente, o alquimista reagiu primeiro. Com um movimento praticado, ele lançou uma garrafa de algum tipo no caminho da horda que se aproximava e imediatamente se jogou no chão. Sem os reflexos do alquimista e pensando que estava longe demais para ser afetado pela bomba, Zorian optou por simplesmente abandonar a invisibilidade e erguer um escudo à sua frente como precaução. Isso revelou-se um erro, pois a explosão ensurdecedora de luz e som o deixou atordoado e piscando para dissipar manchas de sua visão pelos próximos segundos.
Quando se recuperou, viu que o efeito da bomba sobre os próprios javalis tinha sido decepcionante — eles foram arremessados afora pela explosão (assim como o próprio alquimista, tendo, em seu pânico, avaliado mal a distância), e o javali líder, que havia sido pego no centro da explosão, explodiu em pedaços, mas os outros já estavam novamente de pé e convergindo ao seu alvo. Até mesmo aquele com uma perna quebrada cambaleava persistentemente em direção ao alquimista atordoado e sangrando, indiferente à dor que deveria ser excruciante.
Eles não emitiam sons, não tinham medo de barulhos altos ou de luzes brilhantes e ignoravam completamente ferimentos graves como se não fossem nada. Era demais para a ideia de que eram animais comuns. Ah, bem, ele meio que suspeitava que era algo assim. Agindo rapidamente para impedi-los de matar o outro homem, ele lançou um enxame de 5 mísseis mágicos nos javalis mais próximos do alquimista caído. Projéteis esmagadores em vez de perfurantes; se ele estivesse certo sobre o que essas coisas realmente eram, buracos em seus corpos nem sequer os retardariam. Os mísseis eram apenas para afastá-los de seu alvo e dar tempo a Zorian para conjurar outro feitiço mais heterodoxo que ele não pôs em sua varinha mágica. Ah, e possivelmente desviar a atenção deles para ele, embora duvidasse que qualquer coisa pudesse fazê-los mudar de alvo. Eles foram claramente enviados para matar um homem específico.
Os projéteis de impacto atingiram os javalis nos flancos, fazendo-os tombar. Como ele suspeitava, eles imediatamente mexeram-se para se levantar como se nada tivesse acontecido, e os outros quatro continuaram correndo em direção ao alquimista. Ele havia finalizou seu feitiço antes que pudessem alcançá-lo, no entanto, fazendo com que um grande disco brilhante de força se materializasse entre suas mãos.
O disco cortante era um poderoso feitiço de corte que era surpreendentemente eficiente em mana e permitia ao conjurador o “pilotar”, mudando sua trajetória de voo como bem entendesse. Taiven não se impressionou com ele, já que não era um feitiço de combate do tipo “dispare e esqueça”, exigindo concentração constante do mago para mantê-lo existindo. E, além disso, se movia bem devagar para um projétil mágico. De acordo com Taiven, magos competentes dissipariam o disco antes que ele pudesse alcançá-los ou o evitariam de outra forma, e o conjurador é como um pato de tiro ao alvo enquanto direciona o disco.
Mas os javalis não poderiam dissipá-lo e não tinham ataques à distância para tirar vantagem de sua falta de escudos. Sob o controle de Zorian, o disco disparou para frente, voando próximo ao chão — na altura que Zorian julgou ser em torno do joelho para os javalis.
O medo de Zorian de que ele havia superestimado o poder do disco e que ele seria incapaz de cortar através dos ossos de animais resistentes como os javalis se mostraram completamente infundados — o disco encontrou as pernas do primeiro javali e simplesmente passou por elas sem resistência visível. Em seu rastro, o javali se desfez, suas pernas separadas de seu tronco. Direcionado por Zorian, o disco continuou em direção ao resto deles.
No final, foi por pouco. Por um lado, os javalis nem sequer tentaram se esquivar, o avanço em linha reta que os tornaram fáceis de interceptar com o disco. Por outro lado, Zorian não havia praticado o feitiço em questão de forma realmente intensa, então ele errou dois javalis na primeira tentativa. Felizmente, o alquimista havia se recuperado a essa altura e lidou com os dois retardatários, fazendo com que um arco de espinhos semelhante a lanças emergisse do chão à sua frente com algum tipo de feitiço de alteração. Os javalis estavam tão determinados em chegar até ele o mais rápido possível que se empalaram na muralha improvisada e ficaram presos.
Zorian deixou o disco se dissipar com um suspiro. Isso foi uma vitória, sim, mas ele não estava satisfeito com sua performance. Ele congelou no começo, e seu domínio do feitiço do disco cortante deixou muito a desejar. Mas o que foi feito foi feito, e pelo menos ele conseguiu o que queria ao ir ali. Hora de deixar o disco tocar e ver no que dá. Ele partiu em direção ao alquimista, que estava ajoelhado no chão e alternava entre olhar para Zorian se aproximando e para os javalis sem pernas, ainda se contorcendo, não muito longe dele.

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