Capítulo 31 – Marcado (2/4)

Ele franziu a testa enquanto se aproximava. Eles não tinham mentes, percebeu. Foi por isso que ele não os detectou até que eles atacaram — no que dizia respeito ao seu sentido mental, eles não existiam. Somado ao fato de que ainda estavam vivos com seus membros cortados e que seus ferimentos não sangravam, a conclusão era óbvia.

Seu palpite estava certo: eram definitivamente mortos-vivos. Até onde ele sabia, os únicos seres que contavam como “sem mente” para os propósitos da magia mental eram oozes¹, golens, criaturas enfeitiçadas com Bloqueio Mental e os chamados “mortos-vivos sem mente”. Os javalis claramente não eram nem golens, nem oozes, e ele duvidava que Bloqueio Mental estivesse envolvido. Isso também explicaria por que eles pareciam não ter sangue e não sentiam dor ou hesitação.

“Você está bem aí? Você meio que levou o pior daquela explosão”, disse Zorian, mudando sua atenção para o homem que veio salvar. Agora que estava perto dele, ele podia ver que Lukav Teklo era um homem de meia-idade bastante bonito, ostentando longos cabelos pretos, uma barba cuidadosamente esculpida e um físico bem musculoso. Zorian ficou um pouco surpreso com isso, pois esperava alguém… mais selvagem. Afinal, seus colegas da vila lhe disseram que o homem desprezava o contato humano e preferia passar seu tempo na natureza.

“Sim. Sim, estou bem”, disse o homem, levantando-se antes de cambalear perigosamente. Zorian rapidamente o pegou e o ajudou a recuperar o equilíbrio. “Droga. Içado pelo meu próprio petardo, literalmente.² E nem consegui nada com isso. Ignoraram totalmente meu repelente patenteado de animais. Isso é alguma compulsão que eles estavam sob…”

“Tenho quase certeza de que são mortos-vivos”, disse Zorian.

“O quê, sério?” Lukav disse, semicerrando os olhos para o javali mais próximo. “Minha visão está um pouco embaçada agora. Ele… ele realmente está tentando se contorcer em minha direção ainda?”

“É, eu acho que sim”, Zorian confirmou.

Lukav gritou uma torrente de palavras em alguma língua Khusky que Zorian não reconhecia. No entanto, ele tinha certeza de que eram palavrões, então talvez fosse melhor assim.

“Me desculpe”, o homem disse depois de algumas respirações calmantes. “Não quero ser rude. Quero agradecer, rapaz. Tive sorte que você me encontrou por acaso quando aconteceu. De outra forma, eu certamente teria morrido.”

“Bem, não foi inteiramente sorte”, Zorian disse, fazendo com que o homem lhe desse um olhar intenso. “Você é Lukav Teklo, certo?” O homem assentiu. “Eu estava procurando por você com base na recomendação que você recebeu de um dos meus amigos, o Kael Tverinov.”

“Ah, Kael!” Lukav imediatamente animou-se. “Ótimo garoto, pena que ele parou de vir quando ficou noivo daquela garota bruxa. Eu estava esperançoso em recrutá-lo como aprendiz, mas temo que Fria o tenha alcançado primeiro e, diferentemente dela, eu não tinha uma filha fofa para atraí-lo. Alquimista talentoso, aquele garoto. Eu perguntaria como ele está, mas podemos fazer isso na minha casa, quando eu me acalmar um pouco.”

“Isso seria bom”, Zorian disse. “Embora eu queira dar uma olhada nesses javalis mortos-vivos que atacaram você, primeiro. Tenho certeza de que alguém acabou de tentar assassiná-lo Não acho que javalis mortos-vivos surjam por conta própria.”

“Ah, não, definitivamente não”, Lukav concordou. “Mortos-vivos menores como esse são basicamente golens de carne, só que com uma alma ou espírito escravizado colocado dentro em vez de um núcleo de automação. Os únicos mortos-vivos que surgem ‘naturalmente’ são fantasmas e outras entidades de alma. Alanic sempre foi muito claro sobre isso. Não tenho certeza de quem tentaria me matar, de todas as pessoas, mas aparentemente irritei um necromante em algum lugar. Quanta sorte. Vou relatar isso à guilda e pedir que eles cuidem disso, mas sinta-se livre para examinar essas coisas o quanto quiser enquanto isso. Eu mesmo estou meio curioso, mas adivinhações nunca foram meu forte, então…”

Zorian assentiu e começou a trabalhar, usando um feitiço de alteração para prender o torso sem pernas do javali mais próximo para que ele não se debatesse e se movesse antes de passar a analisá-lo.

Como ele temia, ele não descobriu nada particularmente útil e foi forçado a deixar a cena para os investigadores da guilda. Seguindo o conselho de Lukav, ele sumonou novamente o disco cortante e picou todos os javalis abatidos, exceto um, em pedaços menores que não se moviam mais. Lukav alegou que um único javali morto-vivo era o suficiente para os investigadores da guilda e ele não queria arriscar que o atacante os pegasse, costurasse as pernas de volta e os enviasse atrás dele novamente.

O último javali intacto foi enterrado profundamente no solo por meio de outro feitiço de alteração de Lukav, onde aguardaria a chegada dos investigadores da guilda.

“Zumbis, esqueletos e outros mortos-vivos não eram nem de longe tão fáceis de criar quanto as histórias fazem parecer”, Lukav explicou como eram feitos enquanto se dirigiam para sua casa. “Mais fácil e barato de fazer do que golens, claro, mas ainda é uma despesa significativa de ingredientes alquímicos e de tempo. Perder uma dúzia de zumbis assim deve ser uma grande perda para quem quer que esteja me alvejando. Não faz sentido deixá-los recuperar suas perdas deixando os javalis zumbis em condições consertáveis. Alanic me disse para sempre destruir qualquer morto-vivo incapacitado após a batalha, apenas no caso de seu criador estar por perto para consertá-los novamente. Eu nunca pensei que estaria em uma posição em que esse conselho seria útil, mas aqui está.”

“Perdoe-me, mas o Alanic de quem você está falando é Alanic Zosk?” Zorian perguntou.

“Uau, sim”, Lukav confirmou. “Suponho que Kael o recomendou também?”

“Sim. Na verdade, ele me deu uma lista bem longa de magos de almas — você foi apenas o primeiro nome da lista.” Ele não era realmente, mas isso pouco importava. O homem gesticulou para que continuasse. “Preciso da sua ajuda com uma porção de magia da alma que me atingiu. Não me sinto confortável falando sobre isso aqui ao ar livre. Espero que você me ouça quando chegarmos à sua casa.”

“Justo. Mas a menos que você tenha sido atingido por uma maldição de transformação, não penso que haja muito que eu possa fazer por você. Alanic é realmente uma aposta melhor — ele não é especialista em quebra de  maldições, mas ele conhece o básico do campo, pelo menos. Claro, seria ainda melhor buscar a ajuda da guilda, mas estou supondo que você tenha um bom motivo para não querer envolvê-los.”

“Eu tenho”, confirmou Zorian. “E embora eu perceba que a chance de você ser capaz de me ajudar é pequena-“

“Ei, essas são palavras insultantes”, Lukav alertou.

“-Eu ainda espero que você me ouça e tente me ajudar. É bem possível que você tenha uma chave crucial para resolver meu problema, mesmo que você seja incapaz de me dar uma solução total. Meu problema não é exatamente uma maldição. É exótico o suficiente para que Kael tenha recomendado Silverlake como uma possível solução se tudo mais falhar.”

“O quê?” Lukav perguntou incrédulo. “Ele recomendou aquela bruxa velha pirada como uma solução para alguma coisa?”

“Eu sei,” Zorian suspirou. “Ouvi de uma fonte confiável que ela pediu um saco de ovos de caçador cinza do último cara que pediu ajuda a ela.”

“Agora, isso é simplesmente ridículo”, Lukav bufou com desdém. “Alguém está te zoando. Nem mesmo Silverlake faria isso. De qualquer forma, vou ver o que posso fazer. É o mínimo que posso fazer por alguém que salvou minha vida.”

* * * 

Depois que chegaram à casa de Lukav, o homem redigiu um relatório rápido para o representante mais próximo da Guilda dos Magos e pagou um dos garotos da vila para entregá-lo a Knyazov Dveri enquanto conversavam. Aparentemente, o garoto era um ótimo corredor e já tinha feito coisas assim para Lukav no passado. Independentemente disso, levou uma hora inteira para Lukav lidar com o problema de Zorian, durante a qual Zorian explicou a situação bem trágica de Kael ao homem, e Lukav gradualmente se acalmou e esperou que a poção que ele ingeriu cuidasse de sua concussão.

“Horrível. Pensei que ouvir sobre Kael me animaria depois de toda essa provação, mas isso só me fez sentir ainda mais deprimido”, disse Lukav. Zorian ficou em silêncio, contente em esperar Lukav continuar. Depois de alguns segundos perdido em seus pensamentos, o homem balançou a cabeça com um suspiro. “Bem, acho que a poção fez seu trabalho por agora, já que olhar para a lâmpada não machuca mais meus olhos e minha cabeça não parece mais estar cheia de lã. Você acha que pode me contar mais sobre seu problema agora? A casa tem algumas barreiras básicas contra vidências, mas não é um trabalho profissional, apenas algo que pedi para um amigo fazer para mim. De qualquer forma, a vila não tem mana ambiente suficiente para suportar algo substancial em termos de proteções mágicas permanentes. Acho que poderíamos ir para Knyazov Dveri e alugar um quarto privado em uma das pousadas mais caras, mas isso custaria uma fortuna e sou meio avesso a gastar dinheiro assim.”

“Está tudo bem,” disse Zorian. Ele já havia analisado o esquema de proteção do homem como prática e o achou adequado. Um pouco pior do que Zorian conseguiria com um dia inteiro de trabalho ou algo assim, mas muito melhor do que um esquema de privacidade erguido às pressas que havia sido seu plano original.

Depois de alguns segundos para organizar seus pensamentos, ele começou a falar. Contar ao homem sobre o loop temporal estava completamente fora de questão, é claro, mas isso não significava que ele tinha que ser totalmente vago sobre sua situação. Ele contou a ele como tropeçou em uma luta entre um lich e um mago desconhecido e foi pego no fogo cruzado, sendo atingido por um feitiço de magia de alma desconhecido no processo. O outro mago o dissipou, mas o dano já estava feito. Depois de passar várias semanas doente, ele aparentemente se recuperou, apenas para descobrir mais tarde, depois de tudo, que o feitiço havia deixado sua marca nele. Aqui Zorian foi um pouco vago, recusando-se a declarar quais eram as consequências que ele notou, simplesmente insistindo que o problema era privado.

“Difícil”, Lukav disse infeliz, quando Zorian terminou. “Saber quais foram as consequências é uma pista bem crucial sobre o que o feitiço realmente era, sabia? Você tem certeza de que não tem nada a ver com transformação?”

“Absolutamente”, Zorian confirmou.

“Nem mesmo transformações parciais?” O homem perguntou. “Lembre-se, nem todas as transformações são totais ou envolvem mudanças físicas óbvias. A grande maioria dos aprimoramentos mágicos são, na verdade, transformações, mesmo que eles só façam coisas como aumentar sua força e agilidade — todos eles invocam atributos de alguma outra criatura para fazer o que querem, transformando o usuário de uma maneira não óbvia.”

“Eu não sabia disso”, Zorian admitiu. “Mas não, ainda não é um efeito de transformação. Na verdade, é mais uma experiência fora do corpo, com minha alma periodicamente deixando o corpo e então retornando a ele. Então, os reforços mágicos são geralmente magias de transformação? É por isso que eles sempre parecem pedir partes de animais e coisas do tipo?”

“Projeção astral?” Lukav perguntou. “Hmm, faz sentido. Alguns feitiços de magia de alma definitivamente enfraquecem os elos entre a alma e o corpo se usados ​​incorretamente, e você disse que o feitiço que o lich conjurou em você foi sabotado. Não que deixar o feitiço seguir seu curso tenha sido uma boa ideia, veja bem, mas algumas das artes necromânticas são tão perigosas se descartadas incorretamente quanto são em sua forma bruta. Você definitivamente está certo em buscar ajuda sobre isso. E sim, as partes de animais e criaturas mágicas estão lá para fornecer um exemplo do que você quer para o feitiço de transformação. O feitiço ‘Olhos de Águia’ literalmente lhe dá os olhos de uma águia, por exemplo. A magia de transformação é muito útil para tais reforços porque é muito fácil de reverter.”

“É? Eu pensei que a transformação era perigosa,” disse Zorian. Era isso que eles eram ensinados na academia.

“Bem… talvez um pouco,” o homem admitiu. “Mas comparado às alternativas, é incrivelmente seguro. Veja, quando você conjura um feitiço de transformação comum em si mesmo, você está essencialmente colocando roupas em sua alma. Não me olhe assim, é o que é. Sim, o termo oficial é ‘concha de transformação’, mas elas são basicamente como roupas de alma.  Veja, você pode colocá-las e pode tirá-las. Mesmo que você erre o feitiço e não consiga voltar ou fique preso em uma forma alternativa por causa de um oponente malicioso, você ainda está a apenas uma sessão de dissipação ou quebra de maldição de voltar ao normal. Sua alma continua intacta e inalterada sob a concha de transformação, e uma vez que o feitiço se foi, você reverte para sua forma original. O problema é que, às vezes, as pessoas exageram e acabam se transformando demais, então você acaba com um mago, digamos, se transformando em um troll tanto na mente quanto no corpo e matando sua família inteira antes que o feitiço fique sem mana e volte ao normal. Ou eles prendem a concha de transformação com muita firmeza em sua alma e não conseguem mudar de volta, e então ficam presos na forma de um pardal ou algo assim e não conseguem falar com as pessoas ou interagir significativamente com o seu ambiente. É por isso que muitas pessoas não fazem mais transformações por meio de invocações e rituais, e apenas compram poções de transformação de pessoas como eu, que sabem o que estão fazendo — sem chance de errar, basta beber uma poção feita por um especialista e você está pronto.”

“Ah.”

“Por outro lado, quando você está literalmente bagunçando com a química do seu corpo e usando alteração na sua carne, você geralmente está fazendo algo totalmente irreversível,” Lukav continuou. “O corpo humano é algo complexo, e eu não acho que alguém realmente entenda o suficiente sobre ele para melhorá-lo significativamente. A maioria das poções que visam melhorar o corpo real com alguma mistura exótica são basicamente drogas estimulantes com propriedades viciantes ou causam danos crônicos se usadas frequentemente. E feitiços de alteração que visam alterar a carne diretamente têm grandes desvantagens que os tornam dificilmente dignos de esforço e geralmente são uma merda total para desfazer. Sei disso, fui chamado com frequência para ajudar com as consequências criadas por tais magias. Mas estamos saindo do assunto. Venha comigo e verei se posso fazer algo sobre o seu problema.”

1. Criaturas amorfas, como slimes, gosmas…[↩]
2. A frase original ‘Hoisted on my own petard’ é da peça Hamlet, de Shakespeare, significava que alguém fora arremessado pela própria bomba (petardo). Semelhante a “O tiro saiu pela culatra”.[↩]