Capítulo 103: Quebra-cabeça e Arte
09 de abril de 2024, terça-feira.
Antes de saírem do prédio, Victor acabou cruzando com algumas pessoas que estavam na recepção, aparentemente, esperando alguém. Ele sorriu, acenou, e após se aproximar e os cumprimentar:
— Aki, deixa eu te apresentar o pessoal da equipe. — Disse ele, com um tom amistoso. — Esse é o Bruno, nosso Coordenador do Núcleo de Artes Marciais. Ele cuida dos treinos e das atividades esportivas.
Bruno, um homem de porte atlético, usava uma camisa preta com um símbolo de caveira nas mangas. Ele inclinou levemente a cabeça num cumprimento simpático.
— Prazer, Aki. — disse, com um sorriso discreto.
— Aqui está a Gisele, Coordenadora de Atividades Artísticas. — Continuou Victor. — Ela organiza as oficinas de arte e as apresentações culturais e de dança.
Gisele, de olhar vibrante e postura elegante, com seus, destacados, olhos azuis intensos, deu um sorriso caloroso.
— Seja bem-vinda. Qualquer dia desses, você precisa vir conhecer uma das nossas aulas. — Propôs. Aki sorriu em resposta, se sentindo animada para conhecer a oficina.
— Essa é a Marye, nossa Coordenadora de Serviço Social. — Disse Victor, apontando para uma mulher de semblante acolhedor e postura firme. — É ela quem faz a ponte entre a associação e as famílias.
Marye apertou a mão de Aki de forma calorosa.
— É um prazer conhecer você. Já ouvi falar muito bem.
— O Amaro — Victor indicou o homem negro, de camisa social. — É o Coordenador da Logística Social. Ele garante que todos os nossos eventos e ações tenham os recursos necessários para acontecer.
— E essa é a Tabby… Quero dizer, essa é a Tábata… — Disse, virando-se para a mulher de sorriso tranquilo e jaleco branco — É nossa Nutricionista e Coordenadora do Programa de Nutrição. É graças a ela que todo mundo envolvido no projeto come bem.
Tábata riu.
— Tento fazer o possível. — Ela apertou a mão de Aki. — Podemos trocar contato? Eu adoro a cultura japonesa. — Ela mostrou uma tatuagem no braço com um símbolo de um anime.
Aki riu e olhou para Victor, que acenou, mas Tábata, entendendo o momento, deu espaço para continuar as apresentações.
“Tabby? É tipo um apelido carinhoso?” — Aki pensou, com um sentimento estranho, mas logo ignorou, balançando a cabeça e continuando sem pensar nisso.
— Por último, mas não menos importante… — Victor olhou para um rapaz que usava uma espécie de macacão azul. — Esse é o Diego, nosso técnico de manutenção predial. Se algo quebra, ele é o herói que conserta.
Diego acenou com a mão, num gesto simples e simpático.
— Prazer, Aki. — Ela respondeu.
Conversaram um tempo, acomodados nas cadeiras de material sintético preto e armação cromada. Nesse momento, combinaram o horário que estariam em cada oficina para as visitas.
…
O carro seguia pelas ruas mais afastadas do centro, cruzando pequenas avenidas arborizadas, até chegar a um bairro tranquilo. Durante o trajeto, Aki olhava pela janela, observando como o cenário mudava — de prédios altos para casas simples, cercadas de jardins e pequenos comércios locais. Depois de cerca de vinte minutos, Victor estacionou em frente a um muro branco, pintado com peças coloridas de quebra-cabeça, intercaladas com girassóis vibrantes.
— Esse é o espaço onde atendemos principalmente crianças com deficiência intelectual ou cognitiva… — Explicou Victor, desligando o carro. — É um dos nossos núcleos mais sensíveis e, pra mim, um dos mais especiais.
Aki sorriu levemente, sentindo a curiosidade crescer. Ao passarem pelo portão, azul escuro, ela percebeu que o clima ali era diferente. A atmosfera em si era diferente e ela não sabia explicar como.
A recepção era simples, mas organizada. Na parede, um mural com desenhos e pinturas feitos pelas próprias crianças coloria o ambiente. Quadros com fotos de atividades, como natação, brincadeiras e festas temáticas, davam vida ao espaço. Pelo corredor, Aki viu portas abertas que revelavam salas equipadas com brinquedos educativos, tatames e mesas pequenas. Mais ao fundo, duas quadras poliesportivas dividiam espaço com uma piscina coberta, de água cristalina.
— Aqui a gente trabalha com uma abordagem integrada. — Victor explicava, enquanto caminhavam. — Temos terapia ocupacional, fonoaudiologia, psicologia, psicopedagogia e até aulas de natação adaptada. O objetivo é que cada criança receba um atendimento personalizado, mas também tenha espaço para socializar e se divertir.
Foi nesse momento que uma mulher de postura firme, mas olhar acolhedor, se aproximou. Tinha os cabelos presos em um coque simples e vestia um jaleco branco com crachá.
— Victor! — Cumprimentou ela com um sorriso caloroso. — Que bom ver você por aqui. Estava ansiosa pela sua visita.
— Dra. Rízia! Há quanto tempo! — Cumprimentou. — Essa é a Aki… — Apresentou ele.
— Prazer, Aki. — Disse Rízia, apertando a mão dela de forma gentil. — Sou Terapeuta Ocupacional e atualmente Coordenadora do Núcleo de Desenvolvimento Infantil e Inclusão aqui.
Aki retribuiu o sorriso.
— O prazer é meu. Aqui é incrível!
— É um trabalho de muito amor… — Respondeu Rízia. — As crianças aqui enfrentam desafios enormes, mas cada pequeno avanço é motivo de celebração. Neste momento, não estamos com muitos pacientes, então, está tranquilo. Vamos, vou mostrar o lugar.
Enquanto conversavam, entre as duas quadras, um som de passos apressados se aproximou. Uma criança, com cerca de seis anos, cabelo castanho claro, pele clara e olhos castanhos, usando uma camiseta amarela, correu pelo corredor, desacelerando ao ver Aki. Ele gritava repetidamente o som “iii”. Mas parou na frente dela, curioso, e segurou a barra da blusa dela com delicadeza.
Aki se abaixou instintivamente, tentando ficar na altura dele.
— Oi… — Disse, com um tom suave e meio atrapalhada. De tanto ouvir a palavra, estava tentando reproduzir com naturalidade.
O menino não respondeu. Em vez disso, estendeu a mão e encostou nos cabelos dela, observando como se aquilo fosse a coisa mais interessante do mundo. Ele balançou uma mecha de um lado para o outro, com um sorriso admirado no rosto. Aki olhou para Victor, um pouco sem saber o que fazer.
— Ele é autista não verbal. Esse gesto mostra que ele gostou do seu cabelo, ou de você. — Rízia explicou. — O nome dele é Eliel.
Ela sentiu um calor inesperado no peito.
— Nossa… — Murmurou, olhando para o menino novamente. — Que coisa mais linda…
Aki afagou os cabelos dele com carinho e o garoto sorriu de leve. Antes de sair correndo novamente, tocou a mão dela como um cumprimento.
— Aqui a gente aprende que comunicação vai muito além das palavras… — Disse Rízia, observando a cena. — E, às vezes, um simples olhar ou gesto diz muita coisa. Muitos aqui têm dificuldade em se comunicar e precisam do uso das “fichas de comunicação”.
Enquanto caminhavam pela clínica, com Rízia explicando algumas coisas, Aki via terapeutas conduzindo atividades com cuidado e paciência. Uma sala tinha blocos coloridos e mesas para desenho; outra, com equipamentos de psicomotricidade, ajudava as crianças a desenvolverem coordenação e equilíbrio. Pela janela, ela viu um grupo de pequenos com boias nos braços, prontos para uma aula de natação. O professor dentro da piscina conversava com cada um, usando gestos e expressões para guiá-los.
— Quando cheguei ao Japão, confesso que não imaginava que ficaria tão envolvido com esse trabalho novamente.
Aki não respondeu de imediato. Estava absorvendo cada detalhe. Um aperto suave tomou seu coração, misturado com uma profunda admiração.
— É… — Ela finalmente disse, com a voz embargada. — É impossível sair daqui sendo a mesma pessoa, eu acho.
O passeio durou mais alguns minutos, mas para Aki, parecia que tinha entrado em um universo à parte. Quando estavam voltando para a recepção, o mesmo menino de antes reapareceu, desta vez trazendo um pequeno desenho rabiscado em papel. Entregou a ela e saiu correndo novamente.
Aki olhou para o desenho e viu: traços simples de sol, mar e uma figura com cabelo comprido. Ela sorriu, feliz.
— Acho que sou eu… — Ela mostrou para Victor.
— Com certeza é você… — Confirmou ele.
Ao saírem pelo portão, Aki respirou fundo, sentindo o ar fresco daquela tarde, embora o calor castigasse. Segurava firme o desenho que havia recebido.
— Victor… — Ela disse, ainda olhando para o papel. — Agora entendo porque você fala desse trabalho de uma forma diferente.
— “Forma diferente”? — Ele indagou.
— Seu olhar fica diferente quando estava me explicando sobre a associação. Estou começando entender o porquê.
Ele a olhou, sério, mas com um leve sorriso.
— E é por isso que eu nunca mais quero largar tudo. Finalmente me encontrei novamente.
…
O carro estacionou diante de um imóvel de fachada clara, com amplas janelas que refletiam o céu limpo daquela manhã. Logo ao descer, Aki percebeu vasos com flores coloridas na entrada e um letreiro simples, que dizia “Academia de Artes”.
— Essa é a nossa parte mais voltada para expressão artística. — Disse Victor. — Pintura, escultura, dança…
Aki acompanhou o passo dele até o interior do local. Assim que atravessou a porta, foi recebida por um amplo salão iluminado. A luz natural entrava generosa pelas grandes janelas, banhando o ambiente com um brilho suave. As paredes eram como uma galeria: quadros coloridos, molduras simples com trabalhos de crianças e adolescentes. Havia pinturas que exibiam mãos pintadas, com cores vibrantes e traços infantis, e outras que mostravam impressionantes cenas realistas — paisagens, retratos e abstrações que pareciam dignas de um ateliê profissional.
Em alguns cantos, pequenas esculturas completavam o cenário. Eram peças de barro, madeira e até materiais recicláveis, cada uma com o seu próprio charme e talento.
— Uau… — Aki murmurou, caminhando para próximo de uma das paredes, observando melhor os detalhes das pinturas.
— É incrível, né? Aqui é como se fosse a recepção. Como não está funcionando hoje, está tudo muito vazio, mas a Gisele está por aqui. Vou te mostrar os outros salões. Vem.
Seguindo pelo corredor, chegaram a outra sala ampla. Assim que a porta se abriu, Aki viu o reflexo multiplicado de si mesma. Espelhos revestiam todas as paredes, e barras metálicas horizontais estavam presas a uma altura padrão. O piso de madeira clara dava um toque diferente, e no canto, caixas de som.
— Sala de dança… — Explicou Victor. — Ballet, jazz, dança contemporânea… até dança de rua. Os professores de dança são ótimos.
Aki imaginou crianças girando, rindo e errando passos, mas com brilho nos olhos.
— Deve ser lindo ver. — Comentou.
— E é… — Ele respondeu.
Depois de um passeio explorando todos os cantos da sala, eles seguiram para a próxima. Um grande ateliê se abria diante deles. Mesas amplas ocupavam o espaço, e todas tinham marcas de tinta seca, manchas de cores variadas e arranhões.
— Aqui é onde acontece toda a bagunça, né? — Aki comentou, rindo.
— Exatamente isso. — Ela ouviu uma voz feminina respondendo.
Aki se virou e viu uma mulher de cabelos castanhos presos em um coque alto, vestindo uma blusa branca manchada de tinta e um jeans simples. Seu sorriso era aberto e caloroso e seu olhos intensos eram marcantes.
— Olá, Gisele… Novamente… — Victor cumprimentou, com um tom bem-humorado no final.
— Olá. — Ela respondeu, estendendo a mão. — Bom, essas manchas são um charme, né? A bagunça também faz parte da arte.
Victor e Gisele se afastaram um pouco para conversar, depois de Victor contextualizar sua namorada. Aki percebeu que o tom deles era mais técnico, cheio de termos em inglês. Vez ou outra, Victor virava a cabeça para explicar, já que ela não compreendia o contexto.
— Ela está falando sobre a ideia de expandir o espaço de dança e criar uma sala só para escultura… — Victor explicou. — E que recentemente conseguiram patrocínio para comprar mais materiais.
Aki assentiu, tentando acompanhar. Apesar de não compreender todas as palavras, percebia a paixão de Gisele pelo que fazia.
— Também estamos pensando em criar oficinas itinerantes. — Disse Gisele, gesticulando. — Levar a arte até comunidades mais afastadas. Muitas crianças não conseguem vir até aqui, e seria uma forma de incluir mais gente.
Victor traduziu a ideia para Aki, que abriu um sorriso: — Parece uma ótima ideia!
Gisele continuou:
— Não importa a idade, a origem ou a condição. Todo mundo tem algo a expressar. Esse é meu lema. — Ela explicou. — O projeto da “Brilho Feliz” já é incrível demais. Mas, se pudermos alcançar mais pessoas, por que não?
Victor concordou.
Enquanto a conversa seguia, Aki caminhou sozinha pelo ateliê. Observou uma estante com potes de tinta organizados por cor, pincéis de todos os tamanhos e caixas com pedaços de argila. Em uma prateleira alta, alguns trabalhos estavam em andamento — telas cobertas com panos, para proteger a pintura fresca. Em uma das mesas, um quadro inacabado mostrava um céu em tons de laranja e roxo.
— Esse é de uma menina chamada Renata… — Disse Gisele, aproximando-se. — Ela tem dificuldade de se socializar, mas quando pinta, seu talento brilha muito.
— Mesmo inacabado, dá para ver o carinho dela… — Aki comentou, percebendo os detalhes de sombreamento quase perfeitos.
— Isso que é arte, afinal… — Gisele respondeu.
Victor, percebendo que Aki estava gostando, decidiu sugerir algo:
— Aki, você quer ver a sala onde eles guardam as exposições antigas?
Ela assentiu e o seguiu até uma pequena galeria no final do corredor. Ali, em paredes brancas, estavam pendurados trabalhos de alunos que já haviam concluído cursos ou se mudado para outras cidades. Cada quadro tinha uma plaquinha com o nome do artista e o ano de produção.
Aki parou diante de uma escultura de madeira, com formas curvas que lembravam o movimento de uma dança.
— Parece até que está se movendo…
— Sim, é muito bonita. Todo trabalho aqui é incrível, não acha?
Aki ficou alguns segundos em silêncio e concordou e depois voltaram para a recepção.
Ao se despedirem, Gisele comentou com Victor:
— Qualquer dia, traz ela para uma aula de dança.
— Se tivermos a oportunidade… — Victor deu um sorriso, já imaginando Aki ensaiando alguma dança.
Quando saíram, Victor explicou o que aconteceu no fim e Aki ficou levemente envergonhada: — Eu não sei dançar, Victor… — E então, desviou o olhar.
Victor sorriu e conversaram mais, até que chegaram, finalmente, na próxima parada.

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