Capítulo 63: Trilha
09 de janeiro de 2024, terça-feira.
Aki não havia conseguido dormir até agora. Já era quase uma da manhã. Tudo que viveu naquele dia, principalmente a cena no mirante, insistia em aparecer na sua mente.
“Victor…” Ela repetia, quando pensava no que ele iria lhe dizer. Fantasiar certos cenários fazia seu coração acelerar, sentia como se seu estômago borbulhasse.
“Você não está ajudando…” comentou consigo, quase decepcionada por não ter tido resposta.
Ela continuou virada para o canto por alguns instantes, até que, finalmente, virou-se para o outro lado, tentando achar uma posição para dormir. Seus olhos permaneciam fechados, apertando-os para tentar cair no sono.
Foi quando ela os abriu, despretensiosamente, apenas para ver Victor dormindo profundamente. Mesmo com a escuridão do quarto, era possível ouvir sua respiração pesada e ter o vislumbre de sua posição.
Aproveitando, ela se levantou para beber água. Na volta para a cama, olhou atentamente para Victor e, por um momento, sentiu uma vontade de deitar ao seu lado.
A garota balançou a cabeça, em negação a esse desejo. “O que eu estou pensando? Se comporte.” Repreendeu ela mesma, em pensamentos, enquanto deitava na cama e se cobria.
Mesmo que fosse uma noite quente, o quarto estava com o ar condicionado ligado. Seu pijama azul foi coberto pelo edredom branco e ela, ainda com certa dificuldade, conseguiu dormir.
…
Depois de acordarem e fazerem a rotina matinal, Victor e Aki saíram rumo ao próximo ponto turístico dessa viagem.
A manhã estava com o céu tingido de azul claro com nuvens brancas como detalhes de uma pintura. O carro finalmente andava em uma estrada de terra. Ao longe, a vegetação, formada por árvores retorcidas, amareladas e esverdeadas, se misturava com campos abertos e formações rochosas.
Aki apertou a garrafinha de água que segurava com as duas mãos, empolgada com o cenário que via. De certa forma, lembrava, para ela, o Senjojike Cirque — e isso a deixava animada e curiosa.
Ela guardou o comentário para si, pensando que talvez pareceria idiota. Mas não poupou elogios, sem comparações diretas.
Victor assentiu.
— Bem-vinda ao cerrado. Parece simples, mas tem uma beleza que vai crescendo em você, devagar. Igual algumas pessoas por aí.
Ela o olhou de soslaio, desconfiada se aquilo tinha sido uma indireta. Ele apenas mantinha o olhar no caminho, como se tivesse dito algo qualquer. Mas o canto da boca denunciava um leve sorriso. A garota decidiu não tentar entender.
Minutos depois, estacionaram em um pequeno recuo de terra. Não havia muita gente por perto — apenas um casal colocando as mochilas nas costas e dois guias conversando junto a uma placa com informações sobre a trilha. O ar era fresco, com o cheiro de mato úmido e terra quente começando a subir com o sol.
Victor pegou a mochila do porta-malas e a ajustou nos ombros. Aki desceu com cuidado, ajeitando o boné que ele havia insistido para que usasse.
— Tem certeza que consegue acompanhar? — ele perguntou, meio provocador.
— Você fala como se eu fosse feita de vidro — ela respondeu, erguendo o queixo. — Eu gosto de andar. Não é como se fosse minha primeira vez em uma trilha, você sabe… Só não sou muito fã de… insetos.
— Então está no lugar certo. Tem todos os tipos.
Aki parou. Arregalou levemente os olhos. Ele sorriu.
— Brincadeira. Quase todos eles são inofensivos.
— Victor… — Aki respondeu, com certo receio na voz.
— Ok, ok. Prometo ficar de olho em você. Vamos?
Ela suspirou, resignada, e deu os primeiros passos na trilha de terra estreita que se estendia entre arbustos baixos e pequenas pedras.
Enquanto caminhavam, a vegetação se fechava aos poucos, formando sombras frescas ao longo da trilha. O som dos pássaros, do vento entre os galhos e o farfalhar das folhas criava uma trilha sonora quase meditativa, tranquilizadora.
Victor seguia um pouco à frente, às vezes, ficando lado a lado para fazer algum comentário. Seguiram assim por vários metros.
Eles já caminhavam havia uns bons minutos, quando a trilha estreitou entre duas grandes pedras, ladeada por vegetação mais alta. A luz do sol filtrava-se pelas folhas, criando desenhos instáveis no chão.
Foi então que Aki parou de repente, rígida, com os olhos arregalados.
— Victor… — ela sussurrou, sua voz em pânico contido. — Tem alguma coisa em mim.
Ele se virou e a viu congelada, com o olhar fixo no ombro esquerdo. E ali estava: um besouro de carapaça brilhante, com um verde metálico quase bonito — pelo menos aos olhos de quem não estava prestes a gritar.
— Calma. Não se mexe. Ele não vai te machucar.
— Ele é enorme! — ela murmurou, em pânico. — Está andando… está andando!
Victor conteve o riso ao vê-la fazer uma careta de desespero silencioso. Ele se aproximou devagar, como quem lida com uma situação delicada — o que, tecnicamente, era verdade.
— Posso tirar ele? — perguntou, com uma calma teatral.
Ela apenas assentiu com a cabeça, o rosto rígido de tensão.
Victor estendeu a mão com delicadeza e, com um gesto cuidadoso, deixou que o besouro subisse em seu dedo. A criatura caminhou lentamente, sem pressa, até sair do ombro de Aki.
Ele se afastou alguns passos e deixou o inseto em uma folha próxima, observando-o desaparecer pela vegetação.
Aki soltou um suspiro trêmulo e passou a mão pelo próprio braço como se ainda sentisse a presença do intruso.
— Isso foi… horrível.
— Ele só queria dizer oi. — Victor respondeu com um sorriso discreto.
— Eu quase morri!
— E eu te salvei. Tecnicamente, isso conta como um resgate. Acho que agora você me deve alguma coisa.
Ela olhou para ele, sem saber se ria ou se dava um sermão. Optou por um meio termo:
— Te devo uma palmada, talvez. Por não me avisar que esse lugar é um resort de insetos exóticos.
Victor ergueu as mãos, em rendição teatral.
— Anotado. Na próxima trilha, levo um repelente… e uma armadura pra você.
Ela finalmente sorriu, ainda nervosa, mas visivelmente mais leve.
— Idiota… Já te disse, não é como se fosse minha primeira vez. Mas eu tenho gastura desses insetos grotescos. Me dá calafrios.
— Ei, sou o idiota que te salvou. — Ele sorriu. — Não se preocupe. Tem outras milhares de espécies desses bichinhos por aqui.
“Eu estou seguindo um bom caminho em fazer essas brincadeiras? Depois do climão de ontem… acho que é o melhor.” Victor pensava sempre que brincava dessa forma com ela naquele dia.
— Você realmente está me ajudando. — Ela falou ironicamente.
Os dois continuaram caminhando, fazendo comentários e Victor contava alguma curiosidade que ele sabia sobre a fauna e flora do local, quando perceberam um barulho.
O som da água correndo ficou mais forte à medida que a trilha descia por entre as pedras. Logo, eles chegaram a um pequeno córrego de águas límpidas, serpenteando entre pedras cobertas por musgos.
Aki parou diante das pedras que cruzavam o curso da água. Algumas estavam submersas, outras escorregadias. Ela olhou o caminho com certa hesitação.
— É sério que a trilha continua do outro lado?
— Sim. Mas é tranquilo, só tem que pisar com cuidado. Quer que eu vá na frente?
— Por favor — disse ela, franzindo a testa.
“O lugar é bonito. Mas não quero cair nessa água.” Aki pensou, enquanto observava o homem iniciando o trajeto.
Victor cruzou com calma, testando cada pedra antes de pisar. Algumas balançavam sob o peso, mas ele conseguiu manter o equilíbrio. Do outro lado, se virou.
— Sua vez.
Aki mordeu o lábio inferior e encarou o “caminho”. Colocou um pé na primeira pedra, depois na segunda, mas hesitou ao ver a terceira, parcialmente coberta por limo.
— Essa vai me derrubar. — Ela comentou, receosa.
“Vou passar vergonha. Por que você escolheu esse caminho, Victor?” Pensava, relutante.
— Vem devagar. Se escorregar, eu te pego.
— Essa promessa soa meio perigosa…
— Confia. Você não vai cair — respondeu, com a mão estendida na direção dela e com determinação.
Aki respirou fundo, deu mais um passo, e… escorregou.
Não chegou a cair, mas perdeu o equilíbrio. No reflexo, Victor avançou e segurou sua mão — firme, com os pés firmados na pedra. O puxão leve foi o suficiente para ela se estabilizar, com o corpo quase colado ao dele por um breve segundo.
Ela ficou imóvel, sentindo a respiração ligeiramente acelerada. O susto, a proximidade, a sensação de cuidado… tudo se misturava.
— Te disse que ia te pegar — comentou, ainda segurando a mão dela.
Aki olhou para os dedos entrelaçados por reflexo, e então puxou a mão com um gesto rápido, envergonhada.
— Obrigada… — murmurou. — Por não deixar eu virar estatística de turista.
Victor riu, e voltaram a caminhar lado a lado pela trilha mais larga do outro lado. O som do córrego ainda ecoava atrás deles, diminuindo conforme avançavam.
O caminho foi se abrindo à medida que subiam por uma trilha mais suave, ladeada por arbustos baixos e flores silvestres que se balançavam com a brisa. O sol já estava alto, filtrando seus raios entre as nuvens esparsas e aquecendo a pele.
Victor parou diante de uma clareira natural, depois de mais uma caminhada considerável, emoldurada por árvores e com vista parcial das montanhas ao longe. No centro, uma grande pedra plana projetava-se como uma espécie de mirante natural, e um gramado limpo estendia-se ao lado, ideal para descansar.
— Que tal aqui?
— Nossa… — Aki girou o corpo, olhando ao redor. — É lindo! Vamos tirar fotos?
Victor soltou a mochila e se aproximou, pegando Aki desprevenida Ainda assim, ela não hesitou e eles tiraram algumas fotos: do local e selfies.
Depois, o rapaz voltou para perto da mochila e começou a tirar algumas coisas de dentro: uma toalha dobrada, duas garrafas de suco, frutas cortadas em potes e alguns sanduíches simples. Tudo parecia ter sido planejado discretamente.
— Você… preparou um piquenique? — perguntou Aki, surpresa, ao ver a organização meticulosa.
— Digamos que eu previ que você ia cansar antes de mim — disse ele, erguendo a mão, convidando ela a se aproximar.
— Só porque quase escorreguei no córrego? — Ela falou, com drama. E Victor devolveu na mesma moeda.
— Não, isso foi só entretenimento gratuito.
Ela riu, se sentando sobre a toalha esticada.
— Admito: não esperava por isso. Foi gentil da sua parte. — Ela pegou um dos sucos e observou o rótulo. — Você sempre pensa em todos detalhes, né?
Victor deu de ombros, sentando-se ao lado dela, mas mantendo uma distância.
— Só quando me importo.
Aki tentou conter um sorriso, que foi mais largo do que gostaria de demonstrar. Por alguns minutos, ficaram ali, comendo e comentando as nuvens, os sons dos pássaros, e pequenos detalhes do lugar.
Enquanto terminavam os sanduíches e Aki colocava algumas uvas num guardanapo, algo voou perto de sua orelha. Ela congelou imediatamente, com os olhos arregalados.
— Tem… tem alguma coisa aqui perto de mim, né? — murmurou, sem mover a cabeça, imóvel, tensa.
Victor olhou, curioso. Um besourinho metálico, reluzente, pairava nas proximidades, atraído talvez pelo cheiro doce das frutas.
— Calma, é só um besouro… bonitinho até. Olha o brilho nas costas dele — disse Victor, inclinando-se para o lado, como se fosse um entomologista despretensioso.
Aki largou as uvas e se afastou engatinhando pela toalha ligeiramente.
— Bonitinho?! Isso aí parece uma jóia viva com asas, mas assassinas!
Victor riu, levantando-se calmamente. O besouro pousou na toalha e começou a caminhar em direção às uvas como se fosse o dono da refeição.
— Ok, senhor Besouro, acho que a gente precisa negociar. — Ele se aproximou devagar e começou a narrar: — Eu, Victor, declaro esta área como zona neutra. Dê meia-volta e sua vida será poupada!
Aki assistia tudo com a expressão tensa, mas aos poucos seus lábios começaram a se curvar em um sorriso contido e então ela desabou em uma risada, aliviada e divertida.
Victor, então, pegou uma folha e usou como uma pequena “bandeja” para que o besouro subisse e o levou até uma moita próxima, onde o libertou com toda a solenidade.
— Você devia trabalhar num zoológico — comentou Aki, ainda rindo. — Ou no mínimo escrever um manual de convivência pacífica com insetos brasileiros.
Victor voltou para a toalha e se jogou ao lado dela, deitando de barriga para cima.
“Será que pareci idiota? Acho que exagerei. Mas não tem como voltar atrás agora.” Analisou ele, enquanto pensava numa resposta para o que ela falou.
— Se eles não me atacarem, eu não ataco também. Filosofia básica de sobrevivência.
Aki suspirou, ainda sorrindo.
— Só espero que nenhum deles chame reforços.
— Se isso acontecer, eu te defendo com a minha vida… ou com a outra folha que sobrou.
Ela soltou uma gargalhada sincera, que se misturou com a risada dele. Embora estivesse pensativo sobre estar exagerando nas brincadeiras, ficou feliz em ver a reação dela.
Entretanto, uma certa frase ecoava na cabeça de Aki: “eu te defendo com minha vida”. Apesar de compreender que estavam com tom de brincadeira, aquelas palavras a atingiram de forma quase impetuosa. Seu coração ainda estava acelerado.
Será que aquilo era só a atuação ou era sincero? Muitos pensamentos agora preenchiam sua mente.
Continuaram ali por mais alguns momentos, enquanto conversavam com um clima mais descontraído. Mesmo que Aki estivesse pensativa com a afirmação, não deixou isso atrapalhar o momento.
…
O sol já começava a descer no horizonte, marcando que já estava ficando tarde. A trilha de volta parecia mais fácil agora, talvez por já fazerem ela antes. Passar pelo córrego, voltando, foi até mais fácil do que pareceu. Sem escorregões dessa vez.
Victor andava um pouco à frente, chutando de leve pedrinhas pelo caminho, enquanto Aki o seguia com passos tranquilos. O silêncio entre eles não era incômodo — era confortável. Aki ainda estava diluindo a frase dita e Victor estava gostando do clima leve entre eles.
— Hoje foi um bom dia — disse ela, quebrando o silêncio com um sorriso suave.
Victor olhou por cima do ombro e assentiu.
— Um dos melhores. Mesmo com os ataques do exército dos insetos do cerrado.
Aki riu baixinho e balançou a cabeça.
— Não vou superar o “senhor Besouro”. Ele vai viver pra sempre na minha memória.
— Eu devia ter tirado uma foto. Ia colocar como nosso mascote da trilha. Talvez deveríamos ter tirado uma selfie.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos, olhando o perfil dele contra a luz dourada do entardecer. Ela riu, repreendendo a brincadeira da foto com o besouro, alegando ter quase morrido de susto. Por mais que não tivesse coragem de dizer em voz alta, sentia o coração leve e ainda perdida com a declaração anterior.
Tentando não pensar muito nisso, continuaram andando, e ao se aproximarem do estacionamento de terra batida, onde o carro estava, o céu já começava a ganhar os primeiros tons azulados da noite.
Victor abriu a porta do carro para ela, que a fez sorrir por dentro. Ela entrou e ajeitou o cinto, enquanto ele dava a volta para entrar do outro lado.
“Você é incrível, Victor.” Ela pensou, apesar da confusão em sua cabeça.
Ele entrou no carro.
— Pronta para mais aventuras amanhã? — perguntou ele, ligando o motor.
— Depende — ela respondeu, fingindo seriedade. — Vai ter piquenique e drama com insetos?
— Sempre. E talvez alguma trilha onde eu quase escorregue num córrego ou desmaie ao ver um besouro.
Aki deu uma risadinha e olhou pela janela, vendo a vegetação passando enquanto o carro começava a se mover.
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