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    “Você mentiu para mim, não foi?”

    O rosto do bufão congelou quando Airen Farreira o encarou em silêncio.

    Tinha cometido um erro. Não havia dúvidas quanto a isso. Se intrometera, mesmo sabendo que esse tipo de batalha sempre favorecia o mais paciente. Mas não conseguiu conter sua ira fervente.

    “Por quê?”

    Os diabos eram mestres nesses jogos desde tempos imemoriais. Afinal, ao contrário dos humanos, que mal viviam cem anos, os diabos existiam por milênios. Até mesmo o diabo mais jovem do continente já vivera muitas vezes mais do que qualquer ser humano. Para eles, esperar uma ou duas décadas não passava de um breve atraso.

    No entanto, o bufão não conseguiu esperar com a mesma paciência ansiosa de sempre, atormentado pelas memórias de Karin Winker. Apesar de décadas de espera, falhou em colher os frutos que esperava, pois aquele homem resistiu à dor, à raiva e à dúvida até o momento em que ameaçou sua própria existência.

    — Maldição, maldição! — murmurou o bufão, enquanto Airen fechava os olhos e se concentrava.

    O bufão avançou rapidamente, tentando derrubá-lo.

    Crash!

    Apesar de já ter sido derrotado duas vezes, continuava tão forte quanto antes.

    Mas seus esforços foram em vão. Embora aquele lugar não fosse sagrado, ainda era governado pelas regras do jogo. O bufão não podia fazer nada além de tentar manipular e enganar Airen.

    Ainda assim, não parou. Socou e chutou o humano, tentando quebrar sua concentração.

    Pouco depois, os olhos de Airen se abriram de repente quando ele desceu sua espada.

    Slash!

    Crack!

    Seu movimento parecia comum, à primeira vista, pelo menos. Mas o bufão percebeu que a lâmina do humano, desprovida de qualquer aura, havia criado uma rachadura na barreira sombria.

    Slash, slash!

    Airen não parou. Sua expressão estava límpida e determinada, e ele continuou a balançar sua espada como se, finalmente, estivesse começando a entender. O bufão explodiu de raiva, praguejando insultos demoníacos.

    Airen não se importou. Imerso em seu próprio mundo, nem sequer registrou a crise do diabo.

    — Ugh, ah, grrr…

    Logo, o bufão já não conseguia nem mais gritar.

    Airen havia compreendido a espada da água, ou, melhor dizendo, a espada que cortava a obsessão. Ele era o vencedor, e o perdedor precisava pagar o preço.

    Com uma expressão contorcida de dor, o bufão explodiu, deixando para trás fragmentos de carne e ossos pútridos que se dissolveram na água, tornando-a ainda mais imunda.

    Airen não se importou. Seus pensamentos estavam em outro lugar.

    “Eu finalmente entendo.”

    Quando viu Ian tentando ensinar a espada da água pela primeira vez, ficou confuso. Como era possível que a lâmina magnífica que cortara a água no primeiro dia fosse a mesma espada patética que ele mostrou no dia seguinte? Ian não explicou nada. Airen ficaria mentindo se dissesse que não se sentiu frustrado com a resposta indiferente do diretor.

    Agora, compreendia. Mesmo que Ian tivesse lhe dito que o verdadeiro corte não era contra a água, mas contra sua própria obsessão, ele não teria entendido.

    Agora, via tudo com clareza. Depois de anos empunhando sua espada, Airen percebeu que as dores silenciosas podiam feri-lo tanto quanto a fúria ardente.

    “Não deixarei isso me consumir nunca mais.”

    Crack, crack…

    As fissuras se alargaram. A água turva e imunda, antes estagnada, começou a escorrer pelas rachaduras até que a barreira se rompeu completamente. As emoções negativas de Airen, antes bloqueadas por sua obsessão, começaram a se dissolver. Em vez de se agarrar a elas, ele as soltou. Com essa leve epifania, seu corpo começou a mudar.

    Woosh…

    Ou, mais precisamente, seu colar da Arte dos Cinco começou a reagir.

    O poder do metal que cultivara em sua vida passada encontrou o poder do fogo que acendeu durante suas jornadas. Então, o poder da água permeou tudo, equilibrando os elementos. Além do metal, do fogo e da água, o poder da terra começou a crescer, tão resistente quanto o metal, mas mais gentil.

    Embora Airen não soubesse, ele já havia estabelecido a base. O poder da árvore também crescia. Embora ainda fosse uma muda, suas raízes se aprofundavam, prontas para sustentar a grande árvore que se tornaria. Água, fogo e metal também criaram novos fluxos de crescimento.

    À medida que os cinco elementos se harmonizavam, o colar brilhou intensamente.

    Woooosh…

    Os cinco elementos giraram, formando o Yin e Yang, que, por sua vez, se tornaram um círculo. O Grande Supremo, a origem do cosmos antes mesmo dos diabos mais antigos, emergiu.

    Mas Airen Farreira não percebeu. Afinal, ele apenas havia compreendido um terço dos elementos, e isso já era avassalador o suficiente.

    Woosh! Wooosh! Wooosh!

    Airen balançou sua espada freneticamente, esquecendo o tempo e o espaço por completo. Seu corpo se movia, testando tudo o que havia compreendido até então.

    Quando finalmente recuperou a consciência, a escuridão havia desaparecido, e o sol quente iluminava seus cabelos dourados.

    O lago parecia o mesmo de sempre, sua água esmeralda fluindo suavemente.

    Era estranho vê-lo tão deserto, mas Airen compreendia o motivo. Afinal, não havia como alguém desfrutar de uma pescaria com um diabo por perto.

    “Será que todos estão bem? Alguém ficou ferido?”, Airen, sempre gentil, preocupou-se com os outros.

    Foi então que ouviu uma voz chamando por ele.

    — Airen!

    — Airen!

    A voz veio do céu. Airen ergueu o olhar e viu algo,nem um leão, nem um pássaro, voando em sua direção. Era o grifo de Kiril.

    Seu rosto se iluminou, mas logo franziu a testa, tomado por um único pensamento inquietante.

    “E se já tiver passado muito tempo…?” pensou ele, com um ar sombrio.

    A última vez que ficou preso em uma barreira de feitiçaria, cinco anos se passaram sem que ele percebesse. Embora aqueles anos não tenham sido em vão, Airen sentia culpa sempre que pensava em como seus entes queridos devem ter sofrido de preocupação.

    “E dessa vez… pareceu ainda mais longo…”, pensou, enquanto o enorme grifo finalmente pousava.

    Em contraste com seu corpo imponente, o rosto do animal era surpreendentemente fofo, parecendo mais um papagaio do que uma águia. Um reflexo do gosto de Kiril, talvez?

    Mas, é claro, essa não era a prioridade de Airen no momento. Os três saltaram do dorso do grifo, e ele soltou um suspiro ao perceber que Kiril, Lulu e Ian não haviam mudado nada. Ainda assim, sua apreensão persistia. Afinal, um ou dois anos poderiam ter se passado.

    “Se for o caso… estou morto”, pensou, sombrio, lembrando-se de sua promessa com Illia Lindsay.

    — Kiril — chamou.

    — Airen, você está bem? Era um diabo? Um diabo de verdade apareceu? — perguntou Kiril.

    — Sim, mas está tudo certo. Na verdade, eu me sinto sortudo. Sobre o diabo… Sim, eu explico. Mas primeiro…

    Com cautela, Airen perguntou quanto tempo havia se passado desde que a barreira surgiu.

    Um curto silêncio se seguiu.

    Foram apenas alguns segundos, mas para ele pareceu durar horas. Felizmente, seu pior temor não se concretizou.

    — Exatamente uma semana — respondeu Kiril.

    — Eu te disse, não disse? Eu disse que dessa vez não levaria tanto tempo — comentou Lulu.

    — Dessa vez? Está dizendo que sabia que da última vez levaria cinco anos?! — acusou Kiril.

    — N-Não, não foi isso… — Lulu guinchou e rapidamente se escondeu atrás de Airen.

    Airen relaxou quando Ian, que estivera em silêncio até então, deu um passo à frente e perguntou:

    — Você compreendeu a espada da água?

    Airen não respondeu de imediato. Em vez disso, caminhou até o lago e invocou sua espada larga dourada.

    Ian, Kiril e Lulu o observaram atentamente.

    Swish!

    Splat!

    O que aconteceu a seguir foi surpreendentemente comum. A espada atingiu a água com um splash.

    Mas, quando Airen se virou para encará-los, seu semblante estava sereno.

    — Não sei dizer com certeza, mas me sinto mais leve — respondeu.

    Ian sorriu e assentiu.


    Naquela noite, após se reunir com Ian e contar tudo o que aconteceu com o diabo bufão, Airen recebeu uma placa. Não era uma prova de que se tornara um estudante oficial. Era uma placa de graduação.

    — Não sei se devo aceitar isso… Ainda tenho tanto a aprender… — disse Airen Farreira, que agora emergia da Academia de Esgrima Krono como um espadachim completo.

    — Haha, como os outros poderiam se formar se você não pudesse? — riu Ian.

    — Mas…

    — Isso basta. A graduação é apenas um novo começo. Não pense demais nisso. Além disso… — Após um momento de pausa, Ian continuou — Ser um graduado de Krono significa que você pode me enfrentar em um duelo. Isso também significa…

    “Que pode enfrentar Khun, meu colega.”

    Ian tomou um gole de chá.

    “Pensando bem, eu vim aqui para encontrar Khun e conquistar sua aprovação”, refletiu Airen, segurando sua xícara.

    Era estranho. Apenas uma semana atrás, tudo o que ele queria era encontrar Khun e ganhar sua aprovação para se juntar ao grupo de expedição. Mas agora, esse desejo não era mais tão intenso. Isso não significava que não queria vê-lo. Afinal, teria a chance de conhecer um espadachim tão forte quanto Ian.

    Embora tivesse prometido a si mesmo que viveria como a água, sem se apegar obsessivamente às coisas, não queria negar a si mesmo essa oportunidade. Sua paixão ardia, calma e firme.

    “Além disso…”

    Ele queria ver Judith.

    Airen Farreira sorriu amplamente ao imaginar o rosto mal-humorado dela.

    Um pequeno gesto, um grande impacto.

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