Capítulo 239: Como Você Ousa (1/5)
Era início da madrugada quando a Segunda Divisão do Grupo de Investida Contra o Diabo partiu. Apesar de ser o começo do verão, o ar ainda estava frio. Eles não se preocuparam em se despedir. Afinal, já haviam se aposentado há muito tempo e sido esquecidos pelo mundo. Como não buscavam fama ou honra, isso não lhes importava.
“Tardamos demais, de fato.”
“Mas não foi tão ruim. Precisávamos disso.”
“Deixamos tudo em suas mãos. Confiamos o futuro do continente a vocês.”
Os velhos cavaleiros sorriram ao deixar a propriedade. No fim das contas, puderam ensinar os prodígios que poderiam sustentar o continente pelas próximas décadas, ou até mesmo um século.
Airen Farreira e Brett Lloyd ajudariam Ignet Crecensia grandemente em seus empreendimentos solitários.
Os membros do grupo de investida sentiram a esperança crescer em seus corações quando Quincy Meyers, de repente, parou.
— Um momento — disse ele.
Os membros do grupo assentiram às palavras de seu capitão e se viraram para ver o que chamara sua atenção.
Alguém treinava incansavelmente no pequeno salão de treinamento. Reconheceram o jovem. Era Lance Patterson.
“De fato, esse jovem é bastante talentoso, mas…”, refletiram os velhos cavaleiros.
“Não estou tão empolgado depois de ver os outros dois”, pensou outro homem.
“Por que o capitão…?”, se perguntaram os velhos cavaleiros.
Os altos sacerdotes estavam ainda mais confusos. Embora gostassem de encorajar o jovem, ele estava longe de ser alguém que poderia prender a atenção do capitão. No entanto, Quincy observou Lance por mais de um minuto antes de dizer algo que surpreendeu a todos.
— Esta geração é realmente talentosa — disse ele.
— Vamos — ordenou.
— Sim, senhor — respondeu Darin Holten, o alto sacerdote.
Ele não se preocupou em perguntar a Quincy o que o intrigara. Afinal, Quincy era o cavaleiro mais velho de Arvilius e um dos dois homens mais poderosos do reino. Ele devia ter visto algo que Darin, o sacerdote, não podia enxergar. Assim, o grupo de investida contra o diabo deixou a propriedade dos Lloyd antes que Lance Patterson percebesse que estavam o observando.
Swish!
Lance brandiu sua espada, completamente alheio ao que acabara de acontecer. Nada havia mudado. Ainda ficava atrás de Airen Farreira quando se tratava de caráter.
Swish!
E ficava atrás de Brett Lloyd quando se tratava de habilidade. No entanto, sentia-se em paz. Embora sua dor fosse tão intensa quanto sempre fora, não estava no limite como há uma semana.
“Talvez seja graças àquele orc conselheiro”, pensou Lance ao enxugar o suor do rosto.
Pensando na conversa que tivera com o misterioso orc, que desaparecera após três canecas de cerveja, ele se virou e viu Kiril o observando com um sorriso.
“Ou talvez seja graças a ela…”, refletiu.
Sem conseguir decidir, Lance voltou à sua espada.
Para ser honesto, não tinha certeza se já estava livre de suas preocupações. Embora se sentisse bem hoje, poderia não estar tão bem amanhã ou no próximo ano. Sua insegurança poderia voltar com força total. Se algo havia mudado, era sua determinação em superar qualquer obstáculo que surgisse em seu caminho. Afinal, sabia que estava crescendo e que não pararia, não importava o que tentasse bloqueá-lo. Um dia, olharia para trás e perceberia o quanto havia avançado.
Swish! Swish!
Lance balançou sua espada com um aceno de cabeça. Continuou treinando enquanto Kiril o observava ao seu lado por um longo tempo.
Slink…
Então, a escuridão que pairava sobre Lance desapareceu silenciosamente. Tão sutil e cautelosa que nem mesmo os cavaleiros sagrados do grupo de investida perceberam.
Era início de junho, quando o sol começava a arder, que Airen Farreira e sua companhia se prepararam para deixar a propriedade dos Lloyd. Enquanto se aprontavam pela manhã, Brett Lloyd, Lance Patterson e os outros vieram se despedir.
— Muito obrigado por tudo. Se não fosse por vocês, eu jamais teria percebido que havia um diabo em minha propriedade — disse Phillip Lloyd.
— De forma alguma. Apenas fizemos o que devíamos — respondeu Airen modestamente.
Ele jamais toleraria um diabo, mesmo que tivesse decidido não se juntar ao grupo de investida contra o diabo no início. Se qualquer mal aparecesse diante dele, faria o possível para erradicá-lo. Claro, teria que se esforçar para aprimorar suas habilidades caso quisesse cumprir esse propósito.
— É melhor você tomar cuidado na próxima vez — soltou Brett Lloyd de repente.
— Nem eu sei o quanto terei crescido até lá. Hahaha…
— Não foi engraçado?
— Brett — chamou Kaya.
— Sim, mãe. Me desculpe — respondeu Brett.
— Pelo menos você sabe se desculpar.
— É claro.
Airen conteve o riso, achando graça da interação entre mãe e filho. Para ser sincero, achava Kaya mais engraçada do que Brett. Mas, se risse, Brett poderia pensar que estava rindo de sua piada.
Desviando o olhar, estendeu a mão para Lance Patterson. Os dois apertaram as mãos vigorosamente antes de trocarem um aceno silencioso.
— Tchau! Voltarei em breve! — disse Lulu.
— Eu também. Obrigada por cuidarem tão bem de nós — disse Kiril.
Ambas se despediram dos Lloyd. Kiril também piscou discretamente para Lance Patterson, algo que todos notaram, inclusive Airen, que geralmente era alheio a essas coisas.
“Nunca pensei que Kiril demonstraria tanto afeto por alguém”, refletiu.
Não se sentiu incomodado com isso. Pelo contrário, ficou feliz por ela. Claro, não podia se perder em pensamentos. Pensando em como sentia falta de Illia Lindsay, sua amiga, despediu-se dos Lloyd.
— Vou indo agora — disse.
— Boa viagem — respondeu a família Lloyd.
Com isso, Airen e sua companhia montaram no grifo, que alçou voo com uma única batida de suas poderosas asas.
— Bem, ele não hesita em partir, não é? — murmurou Brett ao assistir Airen e sua companhia se afastarem pelos céus.
Ele sabia o motivo. Recordando-se da jovem que era amiga sua e de Airen, ainda que isso pudesse mudar mais tarde, pensou: “Está na hora de vocês avançarem para o próximo estágio, não é?”
Claro que isso não seria tão fácil, considerando o quão densos os dois eram.
— Ainda assim… vai ser divertido ver o relacionamento deles se desenrolar — comentou Brett.
— O que disse, filho? — perguntou Kaya.
— Nada. Só estava falando comigo mesmo — respondeu Brett, balançando a cabeça.
Então, ergueu o olhar. Dessa vez, não olhou na direção de Airen, mas para outro lugar.
Olhando para onde Judith poderia estar, murmurou mais uma vez:
— Sinto falta dela.
Airen e sua companhia voaram rapidamente em direção ao Reino Adan, no oeste.
Segundo Kiril, a viagem levaria no máximo quatro dias. Considerando que normalmente levava quase dois meses para ir da região central à região ocidental, a velocidade era impressionante.
“O grifo parece ter ficado muito mais rápido”, pensou Airen.
Talvez Kiril também tivesse crescido através de sua luta contra o diabo.
Com um sorriso, Airen voltou sua atenção para si mesmo. Dessa vez, não estava focando na mente como de costume. Em vez disso, concentrava-se em algo mais direto. Algo básico não para qualquer espadachim, mas pelo menos para os especialistas e mestres: aura.
Woosh.
Swoosh!
Woosh.
Uma luz dourada cintilou na espada de Airen. Ele estava praticando a invocação e a retração rápidas de uma Aura da Espada. Por mais simples que parecesse, era algo extremamente complexo e difícil.
“Nós podemos nos dar ao luxo de desperdiçar um pouco de aura com o quanto temos, mas você não pode. Se deseja usar o estilo de espada do Reino Sagrado, deve se tornar mais eficiente no uso da Aura da Espada.”
Foi o que Quincy Meyers disse enquanto ensinava a Airen vários métodos de treinamento, nenhum dos quais era fácil. Nem Brett nem Airen haviam feito muito progresso. Ainda assim, Airen estava bem. Ele não era mais quem fora antes. Enquanto mantinha a paixão que sentira ao conhecer Ignet, também se libertava de suas próprias frustrações. De fato, agora Airen era guiado por uma paz de espírito que o conduziria ao caminho certo.
Kiril e Lulu também perceberam a mudança.
“Graças aos céus que Airen está em paz. Espero que continue assim!”, pensou Lulu.
“Isso não pode ficar assim. Ele precisa progredir”, pensou Kiril.
Lulu e Kiril divergiam em suas opiniões sobre Airen. Para ser exata, Kiril queria que Airen avançasse para o próximo nível em seu relacionamento com Illia. Desde o momento em que os conheceu, percebeu que eram mais do que apenas amigos.
A única razão para o progresso ser tão lento era que ambos eram extremamente densos.
“Claro, é divertido vê-los assim. Mas, nesse ritmo, vão continuar amigos por mais dez anos”, pensou Kiril.
Em sua opinião, Illia Lindsay era uma joia rara, talentosa, bela e gentil. Tudo isso seria irrelevante se Airen não sentisse nada por ela, mas Kiril acreditava firmemente que esse não era o caso.
Airen simplesmente ainda não havia percebido seus próprios sentimentos. Se fosse assim, talvez Kiril pudesse empurrá-lo na direção certa.
“Graças aos céus que Airen sugeriu irmos vê-la”, pensou Kiril, observando Airen imerso em seu treinamento e se perguntando o que poderia fazer para ajudá-lo a perceber seus próprios sentimentos.
Ela pensou em várias possibilidades. Infelizmente, era tão inexperiente nisso quanto Airen. No fim, não conseguiu chegar a nenhuma conclusão antes de chegarem à propriedade Lindsay. Em vez disso, teve que caminhar em direção ao Castelo Lindsay, frustrada.
— Algum problema, Kiril? — perguntou Lulu.
— Não, por quê? — retrucou Kiril.
— Então por que está tão irritada?
— Não sei. Não pergunta.
— Ok… — murmurou Lulu, acuada.
Airen olhou para Kiril com preocupação.
“Quem você acha que é o problema aqui?! Não, vamos nos acalmar”, pensou Kiril, sentindo o olhar do irmão sobre si.
Respirou fundo. Por mais que se importasse com Airen, não queria que sua frustração arruinasse as coisas. Embora tivesse sido bastante impulsiva em Cezar, não podia se dar ao luxo de agir fora do lugar na propriedade Lindsay.
“Vamos lá, sorria. Sorria”, pensou Kiril, forçando um sorriso assustador. Lulu, vendo aquilo, seguiu-a com medo, todos os pelos do seu corpo se eriçando com a visão.
Airen observou a cena com carinho. Mas foi ao chegarem ao Castelo Lindsay que algo aconteceu.
— O que está acontecendo? Três carruagens? — murmurou Airen, curioso.
Três carruagens estavam estacionadas diante do portão. Embora os Lindsay fossem bem conhecidos na região ocidental, não era comum receberem tantos visitantes, já que se tornaram bastante reclusos após o ocorrido entre Karl Lindsay e Ignet.
“Aconteceu algo com a família?”, ponderou Airen quando outra carruagem chegou.
Um nobre de cabelos escuros, que aparentava estar na casa dos trinta, desceu e lançou um olhar de desprezo para Airen, Kiril e Lulu antes de passar por eles. Era evidente que estava zombando deles.
Airen imediatamente olhou para Kiril, pois sabia que ela não era do tipo que aceitava esse tipo de comportamento de bom grado. De fato, ela encarava o nobre antes de soltar uma risada seca.
— Hah.
O homem parou no meio do caminho junto com seu guarda.
O nobre encarou Kiril, que devolveu o olhar desafiador.
Assim que Airen e Lulu avaliavam a situação com nervosismo, o nobre zombou ainda mais alto.
— Hmph — respondeu Kiril, o mais alto que pôde, para que todos ouvissem.
O homem a encarou antes de soltar uma risada ainda mais alta.
— Hah.
— Hmph.
— Huh.
— Hah.
Airen, Lulu e os guardas do nobre assistiram à infantil disputa sem dizer uma palavra, assim como os membros da Academia de Esgrima Joseph.
— O moleque de Stanton fez de novo? — começaram a murmurar.
— Imaginar que ele faria isso bem em frente ao Castelo Lindsay… — disse outro.
— Ele já passou dos trinta anos. Velho demais para isso…
Todos começaram a repreender o nobre em uníssono. Ninguém prestou atenção na outra parte ou perguntou quem estava errado.
No entanto, Joseph, o mestre espadachim da academia, estreitou os olhos ao observar Airen Farreira.
“Ele não é o jovem da Terra da Provação?”, pensou.
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