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    História Paralela – 8 O Cepo 2

    A avaliação final da 34ª turma da Academia de Esgrima Krono foi concluída, e um total de trinta e sete candidatos foram aprovados. Estritamente falando, eles ainda não eram oficialmente aprendizes. Só se tornariam verdadeiros membros da família Krono após a cerimônia de entrada, que ocorreria cinco meses depois no salão principal de esgrima Alcantra.

    O motivo para esse longo intervalo era óbvio: tratava-se de uma consideração gentil, permitindo que retornassem às suas casas e aproveitassem um período de descanso antes do início do treinamento infernal.

    — Nos vemos no outono!

    — Com certeza. E se prepare, da próxima vez não vou perder!

    — Por que você não desafia a Elena com toda essa confiança?

    — Isso já é demais… Enfim, até logo.

    As famílias escoltaram as crianças nobres de volta, enquanto as crianças plebeias partiram para suas cidades natais nas carruagens fornecidas pela academia. Kai observou seus colegas partirem, alguns dos quais haviam se tornado próximos ao longo dos últimos meses.

    Aquele era um adeus. Ele não tinha intenção de retornar à Academia de Esgrima Krono.

    “Olhe bem. É assim que é a parte sul do continente.”

    Ele se lembrou da época em que vagou pelo Sul com Ignet Crecensia. Foi horrível. O orfanato, que ele pensava ser o próprio inferno, não era nada em comparação.

    As memórias vívidas das pessoas que sofriam diariamente sob indivíduos ainda mais cruéis e em circunstâncias muito mais miseráveis que as suas continuavam claras em sua mente. Os candidatos daqui reclamavam do treinamento árduo desde a infância, mas, comparado àquilo, existiam vidas muito piores.

    Ele não os criticava nem os menosprezava. Ele entendeu, ao ver a espada do Diretor Airen Farreira. O ambiente, os pensamentos e o caminho de cada pessoa eram diferentes, não errados. Ao perceber isso, Kai aprendeu a enxergar a partir de diferentes perspectivas, a aprender com os outros e a cultivar aos poucos a espada dentro de seu coração.

    Isso significava que ele já não era mais o garoto impotente que só conseguia chorar no Orfanato do Amor.

    “Ainda que meu poder seja limitado, há muitos lugares no mundo que precisam da minha ajuda.”

    É claro que Kai não estava superestimando suas habilidades. Ele não pretendia se envolver em nada além do que era capaz. Mesmo sem ser imprudente, havia inúmeras coisas que ele podia fazer na parte sul do continente.

    Kai planejava seus próximos passos com afinco. “Primeiro, preciso visitar o orfanato. Apesar de a Lady Ignet ter dito que continuaria cuidando dele, ainda assim devo verificar com meus próprios olhos. Depois disso…”

    Nesse meio-tempo, sua carruagem chegou. O cocheiro era um jovem com uma perna protética e um sorriso simpático bastante cativante.

    — Eratria, no continente Sul… É uma bela distância.

    — Vai ser difícil chegar até lá?

    — Não. Não há dificuldade num trabalho pago. Suba. Partiremos imediatamente.

    Kai assentiu, vendo o sorriso confiante do cocheiro. O jovem instigou os cavalos assim que o garoto entrou na carruagem, e a paisagem familiar da Academia de Esgrima Krono começou a desaparecer aos poucos. Kai a observou por um bom tempo, com olhos nostálgicos.

    Mas sua contemplação não durou muito, pois ele logo adormeceu. Era um alívio ter encerrado uma grande etapa, e o cocheiro também dirigia muito bem. O garoto caiu num sono tão profundo que nem notaria se alguém o carregasse para fora. Dormiu tranquilamente até pouco antes do pôr do sol.

    Quando acordou, viu que estava amarrado com uma corda. Olhou para o jovem de perna protética com uma expressão confusa e perguntou:

    — O que está acontecendo?

    — Como assim? Você foi sequestrado.

    — Não brinque. Um cocheiro contratado pela Academia de Esgrima Krono jamais faria algo assim.

    — Por que tem tanta certeza?

    — Hã?

    — Acha mesmo que até Krono não tem inimigos? Não dá pra ser tão ingênuo nesses tempos traiçoeiros. Dizem que há cada vez mais seres demoníacos por aí, mesmo que os próprios demônios não estejam aparecendo. Quem sabe com que tipo de tramoias eles estão envolvidos?

    — Isso é…

    — Claro, eu não sou um desses caras maus.

    — Então… quem é você? — Kai perguntou, com curiosidade genuína.

    O jovem parecia se divertir com a situação, mas, para Kai, não parecia uma pessoa má. É claro que ele podia estar fingindo, mas, se fosse o caso, deveria ao menos tentar criar um ar mais ameaçador. De qualquer forma, suas habilidades pareciam notáveis.

    Kai era o segundo melhor, mesmo entre os gênios, da Academia de Esgrima Krono. Para ser completamente imobilizado sem sequer perceber, esse homem tinha que ser um especialista extremamente habilidoso.

    “Ou talvez seja um mago, ou feiticeiro.”

    Obviamente, Kai não esperava uma resposta sincera. Mas ele respondeu. Ao contrário das expectativas, o jovem revelou sua identidade com muita facilidade.

    E essa identidade chocou Kai além de qualquer imaginação.

    — Ah, eu nem me apresentei. Sou Russell. Russell Farreira.

    — O-o filho do diretor?

    — Isso. Meu pai… digo, o diretor, está tendo muita dor de cabeça por sua causa. Então, que tal visitar o orfanato e depois voltar quietinho pra escola de esgrima, hein?

    — Isso é…

    — Ah, desculpa. Só pra deixar claro, isso não é um pedido, é uma ordem. Ouvi sobre os seus motivos pra sair pelo mundo, e entendo, mas sinceramente, você está ultrapassando os limites. Você está exatamente no nível de habilidade em que vai acabar morto se tentar se exibir.

    — Não posso aceitar isso. Eu conheço meus limites. Não pretendo fazer nada grandioso como reformar todo o Sul de uma vez, mas talvez, depois de ganhar mais experiência no mundo…

    — Ah, então você ainda não entendeu. Você acabou de ser amarrado e nem percebeu, lembra?

    Kai apertou os lábios.

    — Hmm. Você parece bem descontente…

    — Estou bem descontente — respondeu Kai, com calma.

    Russell assentiu, reconhecendo. — Muito bem, diga.

    — Como eu disse, não pretendo fazer nada perigoso. No máximo, vou espantar uns bandidos de beco e ajudar quem precisar. Sei que não sou tudo isso, mas também não acho que seja incapaz disso…

    Antes mesmo que pudesse terminar, Russell rebateu com firmeza:

    — Você é incrivelmente ingênuo, sabia? Acha que esses bandidos que você está subestimando vivem só entre si? Se cavar mais fundo, vai encontrar mercadores envolvidos! E acima deles, provavelmente autoridades locais ou até nobres metidos no meio. Vai acabar achando alguém grande.

    — Se você incomodar esses caras como um mosquito, esses homens perigosos vão mandar soldados particulares te torturar, pedaço por pedaço. E se você chorar e disser que veio da Academia de Esgrima Krono, vai colocar a escola numa situação complicada, sabia?

    Kai o ouviu com uma expressão desconfortável. Ele sabia, não com tantos detalhes quanto Russell descreveu, mas tinha uma ideia vaga de que a situação caótica do Sul não era algo que se resolvia sozinho. Era uma teia complexa e profundamente enraizada, extremamente difícil de desfazer.

    Por isso, nem mesmo a Academia de Esgrima Krono, nem o Reino Sagrado de Arvilius, que formavam espadachins justos e zelavam pela palavra de Deus, respectivamente,  conseguiram resolver os problemas do Sul.

    — Mas até quando vamos simplesmente ficar parados, assistindo? — perguntou Kai. — Mesmo que esteja além do nosso poder… Mesmo que seja impossível pra uma única pessoa… se a gente só aguentar… se só ficar esperando alguém resolver o caos, alguma coisa vai mudar?

    Kai sentia uma imensa frustração e revolta.

    Ao ouvir a emoção profunda na voz do garoto, Russell sentiu um certo peso na consciência. Claro, ainda era jovem, no início dos seus vinte anos… mas como adulto, e como alguém que carregava o ideal de justiça da Academia de Esgrima Krono, sentia-se responsável por ter apenas assistido passivamente ao caos que assolava o Sul há décadas.

    Felizmente, isso não significava que ele não tinha nada a dizer.

    — Primeiro de tudo, crianças precisam crescer — disse Russell. — Assuntos de adultos, deixa pros adultos. Não ouvi todos os detalhes… mas as coisas provavelmente vão mudar drasticamente nos próximos anos. Para melhor.

    — As coisas vão mudar?

    — Talvez não totalmente para melhor. A personalidade dessa pessoa parecia ainda mais difícil que a da nossa mãe. Será que vai dar certo…?

    Kai ficou confuso.

    — Enfim, ainda não é hora de novatos como eu e você entrarem em cena. Vamos esperar só mais um pouco. Vamos focar no treinamento.

    — Mas eu acredito que sair pro mundo vai ser o mais benéfico pra mim.

    — Mais do que ficar na Academia de Esgrima Krono?

    — Mais do que ficar na Academia de Esgrima Krono! — respondeu Kai com firmeza.

    Não é que aprender as formas da esgrima e treinar o corpo não fossem importantes, mas o que mais fortalecia o garoto e o fazia crescer rapidamente era… o crescimento do seu coração. Kai cultivava a Lâmina do Coração ao absorver diferentes perspectivas, pensamentos e experiências por meio das histórias dos outros.

    Como resultado, conseguiu replicar com sucesso o golpe vertical imbuído da Vontade do Metal que o Diretor Airen havia demonstrado em sua juventude. Em outras palavras, Kai precisava vagar pelo mundo, conhecer mais pessoas, compreendê-las e processar tudo à sua maneira. Isso seria um treinamento mais eficaz do que simplesmente praticar esgrima.

    Mas Russell ainda não cedeu. Felizmente, não era alguém teimoso que só queria impor sua opinião. Ele ofereceu uma alternativa ao garoto emburrado.

    — Segundo, para aprendizes como você, que estão exatamente no nível em que podem morrer se tentarem se exibir, preparei um lugar seguro onde dá pra ganhar muita experiência.

    — Uma biblioteca?

    Ignet havia dito uma vez: — Experiência é o maior bem da vida, mas nem toda experiência precisa ser vivida diretamente. É por isso que os gigantes do mundo vivem cercados de livros.

    Russell balançou a cabeça. Não estava errado, mas havia um método mais adequado para o talento de Kai em se colocar no lugar dos outros.

    — Sabe quando as pessoas são mais honestas e contam suas histórias de forma mais vívida?

    — Não sei…

    — Durante uma confissão. E quando estão bêbadas.

    Os olhos de Kai se arregalaram.

    — Não sou muito ligado à religião, mas sou bem próximo do álcool. — Russell cortou as cordas que prendiam Kai, sorrindo enquanto subia em seu cavalo. — Suba, Kai. Vou te levar a um lugar onde você vai conhecer um mundo mais amplo do que qualquer outro.

    Um pequeno gesto, um grande impacto!

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