Capítulo 415: O Cepo 2 (2/3)
História Paralela – 8 O Cepo 2
O Cepo era um pub localizado no território de Lloyd, famoso por sua impressionante seleção de licores raros, uma variedade que não se encontrava em tavernas comuns. Recentemente, dois novos fatores contribuíram para o crescimento da popularidade do estabelecimento. O primeiro era a presença de Lulu, a feiticeira que, sozinha, deu início à febre do Gato Preto Sortudo que varria o continente.
— Olá! Vai pedir alguma coisa?
— Uau! Um gato preto falante… Você é, por acaso, a Lulu?
— Isso mesmo! Meu nome é Lulu. Já vai fazer seu pedido?
— É inacreditável ver a Lulu pessoalmente.
— Ouvi dizer que às vezes ela trabalha aqui, mas achei que era só uma história exagerada…
A simples presença de um gato preto já era atrativa, mas um gato que falava e servia clientes? Era irresistível. Os fregueses abriam suas carteiras ansiosamente só para apertar a pata da gata e ouvir algumas palavras de boa sorte. Como resultado, o sorriso do dono, Kubharu, ficava mais largo a cada dia.
Claro, o aumento de clientes não trazia apenas coisas boas. Sendo um pub, era inevitável que bêbados arruaceiros causassem problemas, e esses incidentes também aumentaram bastante. A pessoa responsável por lidar com essas situações era o segundo motivo da popularidade do Cepo, o talento que iluminava a 34ª Turma Prateada da Academia de Esgrima Krono.
Kai interveio com calma numa briga entre dois mercenários corpulentos.
— Com licença, mas é proibido brigar dentro do pub.
— O quê? Não ouviu o que esse desgraçado disse? Ele ofendeu meus pais!
— Sinto muito por isso, mas podem acabar quebrando alguma coisa. Por favor, resolvam isso lá fora…
— Moleque atrevido, você precisa de uma lição de um homem de verdade pra aprender a respeitar os mais velhos!
O gigante de pele bronzeada ergueu a mão aberta contra o garoto. Era um gesto assustador, que poderia arrancar os dentes de uma pessoa comum com um único golpe, mas o homem estava tão bêbado que nem tinha noção disso. No entanto, havia uma presença ainda mais temível: o garoto de quatorze anos chamado Kai.
— Hã?
Kai desviou da palma do cliente com um leve movimento do queixo.
— Guh… Urgh… Bleeeaaarrrgggh!
Num instante, Kai se aproximou do oponente e enterrou o punho em seu abdômen.
Não foi preciso mais nada. O gigante de pele bronzeada, perdendo toda a vontade de lutar com um único golpe, caiu de joelhos e vomitou. O garoto o observou com um olhar frio, então se virou para o mercenário de cabelos compridos que havia causado confusão junto com ele.
— Você também tem algum problema?
— Nenhum! A-Aqui, a conta…!
O mercenário fugiu rapidamente do pub sem nem pegar o troco. Os clientes explodiram em aplausos entusiasmados.
— Uhuu! Que delícia ver isso!
— Pois é! Muito estranho. Ouvi dizer que aquele cara é um mercenário de Rank Prata. Como é que esse garoto derrubou ele com um só golpe?
— Foi o Russell que trouxe ele, sabia?
— É mesmo? Não sabia. Se foi aquele maluco que trouxe, então faz sentido.
— De qualquer forma, é divertido de assistir. É um tipo de show diferente dos espetáculos do Russell.
“Eu não acho nada divertido.”
Ouvindo os aplausos dos bêbados, Kai suspirou discretamente. Cometera mais um erro. Deveria ter mirado no queixo do homem para um nocaute limpo. Em vez disso, o soco no estômago causou vômito.
Claro, depois de limpar inúmeras vezes vômito e fraldas sujas no orfanato, aquilo não era nada para Kai. Mas limpar os irmãos adoráveis era completamente diferente de limpar um brutamontes bêbado…
Russell surgiu do nada e lhe entregou os utensílios de limpeza.
— Aqui, um pano e uma tigela com água.
— Obrigado.
Era extremamente irritante. Esse era o trabalho dele, afinal.
“Bem, ainda assim…”
Se alguém perguntasse se Kai estava insatisfeito por estar ali, a resposta seria não. Na verdade, era bastante enriquecedor. Russell Farreira podia parecer um sujeito despreocupado, mas não era nada disso. Como dissera naquela época, Kai vivia um mundo vasto todos os dias naquele pequeno lugar.
— Então, enquanto eu estava de guarda hoje, conheci um cara realmente problemático…
— Isso aconteceu? Nossa…
Ele vivenciava o dia a dia de um guarda do território.
— Ainda bem que troquei de armadura dessa vez. Se eu tivesse continuado com o equipamento antigo, meu ombro teria sido esmagado pela clava daquele goblin. Mas escapei por pouco, viu?
— Também estou pensando em trocar meu equipamento. Minha espada tá toda lascada.
Ele vivenciava o dia dos homens durões que vagavam pelo mundo como mercenários.
— Você viu aquele artigo publicado pelo Reino Runetell? Foi revolucionário, não foi?
— Ouvi dizer que o rei de Makan morreu. Um garoto de dezesseis anos vai assumir o trono…
— O lorde ainda não adotou um herdeiro? Disseram que ele procura uma criança adequada há anos…
— Não consigo mais trabalhar como ferreiro. A força das minhas mãos está sumindo com o tempo, sabia?
Ele ouvia as histórias de um professor da academia e de um viajante do Sul. Ouvia as histórias dos moradores de Lloyd e dos membros da guilda dos artesãos. Kai ouvia, absorvendo suas vidas. Não era apenas curiosidade ou coleta de trivialidades.
Ele escutava seus contextos e origens, seus pensamentos e convicções; suas emoções e sentimentos, que se misturavam com o líquido místico chamado álcool, permitindo que fluíssem de forma mais genuína e vívida. Kai mergulhava nesses mundos, às vezes encontrando respostas para suas próprias dúvidas, outras vezes apenas refletindo sobre as respostas dos outros.
Observar seus próprios julgamentos se solidificarem pouco a pouco, e ver a Lâmina do Coração se tornar cada vez mais afiada e forte como resultado, era algo extremamente envolvente e gratificante para Kai. Na verdade, faltavam palavras para expressar o que sentia. E quando vivenciava situações difíceis, sem respostas simples, a recompensa era ainda maior.
— Está difícil de limpar? Eu faço.
Mas lidar com Jack, ex-membro de um grupo de bandidos, no Cepo, fazia Kai se sentir profundamente desconfortável. Sentia uma frustração intensa.
Jack era um assassino. Um assassino em massa que havia ferido inúmeros civis inocentes. Esse fato inflamava uma raiva ardente em Kai, que havia sofrido na pele a violência do diretor do orfanato, Devon. No entanto, independentemente do passado, o Jack do presente era… Kai odiava admitir, mas ele não era uma pessoa completamente má.
Ele não questionava como isso era possível. Ele mesmo era muito diferente de quem havia sido dois anos antes. Faltavam oportunidades de aprendizado, não se tratava apenas de esgrima.
Ao seguir Ignet e se juntar à Academia de Esgrima Krono, o garoto conheceu o mundo e as diversas perspectivas das pessoas que o habitavam. Agora era capaz de enxergar coisas que não via dois anos atrás, seus pensamentos alcançavam lugares que antes eram inconcebíveis.
Jack era igual. Teve uma infância igualmente desgraçada. Porém, ao contrário de Kai, que teve a companhia das crianças carinhosas do orfanato, a vida obrigou Jack a enxergar todos ao redor como inimigos para poder sobreviver… Em vez de ter tempo para simpatizar ou entender os sentimentos alheios, Jack precisou afiar sua espada. Para ele, o Cepo era, possivelmente, a primeira oportunidade real de sua vida.
“Por isso mesmo, é ainda mais complicado.”
Observando em silêncio Jack esfregar o chão com dedicação, Kai pensava: “Esse homem parece ter se reformado, mesmo que tardiamente, mas cometeu atos imperdoáveis no passado… Como devo tratá-lo? Devo perdoá-lo?”
“Se esse homem tivesse ferido alguém que eu amo, ainda assim eu seria capaz de perdoar? E se, por causa disso, eu tomasse outra decisão… isso seria o certo a se fazer?”
Uma corrente de perguntas difíceis surgia, uma atrás da outra. Não era fácil, e por isso mesmo era fascinante. Ele sentia que havia feito a escolha certa ao seguir Russell.
Mas então, algo completamente inesperado aconteceu.
A mulher que entrou no Cepo lhe pareceu familiar. Não era alguém com quem tivesse grande proximidade. Apenas a reconheceu por ter vindo todos os dias na mesma hora durante a última semana, saindo sempre no mesmo horário. Era um padrão estranho.
A mulher usava um capuz preto e tinha uma aparência comum, que podia ser vista em qualquer lugar. Seus olhos eram um pouco mais profundos que o normal, o que era uma característica marcante; porém, num pub, era mais difícil encontrar alguém que não tivesse uma história, então Kai não havia dado muita atenção.
Aquela mulher comum, ou talvez peculiar, caminhou diretamente até Jack e sacou sua espada.
“Ela não parece ser uma arruaceira…”
Lembrando-se de como ela o tratava com certo respeito, Kai deu um passo à frente com uma expressão desgostosa. Ou melhor, tentou, mas não conseguiu. No momento em que ouviu as palavras que saíram da boca da mulher de cabelos longos, a grande figura de Jack estremeceu visivelmente.
— Você, remanescente do grupo de bandidos do Crepúsculo… Foi você quem matou meu irmão, Jack — ela disse. — Eu te desafio para um duelo.
O pub, que até então estava barulhento, caiu num silêncio absoluto. Até mesmo os homens que batiam nas mesas com entusiasmo há pouco, e os que estavam prontos para apostar, paralisaram e lançaram olhares duros ao redor.
Parentesco, vingança, espada, duelo. Era inevitavelmente uma luta onde vidas estavam em jogo. Claro, isso era ilegal. Se os guardas descobrissem, ficariam furiosos, então alguém precisava intervir e impedir. Mas o clima de tensão era tão denso no pub que ninguém teve coragem de se intrometer. Os olhares convergiram naturalmente para um único lugar.
— Jack, o que você vai fazer? — perguntou Russell. — Não pode ser dentro da cidade, mas, se quiser, podem resolver isso lá fora.
O tom de Russell era ambíguo. Parecia não querer se envolver, mas também parecia disposto a respeitar a decisão de Jack. Alguns poderiam até interpretar como indiferença em relação à mulher em busca de vingança, mas felizmente ela não reagiu. Apenas encarava seu inimigo em silêncio.
Jack fechou os olhos e permaneceu assim por alguns segundos. Foi pouco tempo, mas pareceu uma eternidade.
— Vamos lá pra fora — disse ele, abrindo os olhos.
Todos observaram o ex-membro do Crepúsculo sair da cidade para enfrentar seu destino.
Uma hora depois, a luta havia terminado. Com um único golpe de sua espada, a mulher vingadora apagou a vida de Jack.
Em algum ponto da encosta, não muito longe do território de Lloyd, alguém cavou uma cova fresca em um local ensolarado. Era a de Jack. A mulher que havia se vingado sentou-se diante dela, encarando-a por um longo tempo.
Então, Russell Farreira se aproximou e perguntou:
— Está te incomodando?
— O quê?
— Dar uma sepultura tão digna ao inimigo que você quis matar tantas vezes.
— Está tudo bem. Quando morre, tudo acaba.
— Suas palavras e ações parecem se contradizer.
— É… acho que sim.
— É. — A mulher suspirou. — O Jack que eu conhecia… era um assassino que não se importava com vidas humanas, desde que fosse pago.
Russell assentiu.
— Ouvi dizer que ele era assim mesmo.
— Mas o Jack que conheci aqui era uma pessoa completamente diferente. — Outro suspiro profundo escapou dos lábios da vingadora, Kairin.
Era como ela dizia. Depois de uma longa busca, seu inimigo tinha uma aparência muito pior do que qualquer um dos piores cenários que ela havia imaginado.
Jack sorria com gentileza para os outros. Jack era capaz de suportar incômodos em prol de outra pessoa. Jack conseguia pensar não apenas em si mesmo, mas também nos outros, e demonstrar consideração… Kairin o observou durante uma semana e percebeu que aquilo não era fingimento, e caiu em desespero.
Por isso estava tão abalada agora. Será que havia feito a coisa certa? Teria sido mesmo certo executar sua vingança contra Jack? Afinal, ele sorriu e ofereceu o pescoço durante o duelo…
— Quer beber alguma coisa? — Russell perguntou a Kairin. — Porque eu vou.
Ela o encarou, sem reação.
Ele ofereceu um leve sorriso.
— Quando vou falar do meu passado, preciso disso pra soltar a língua.
— Por que você vai me contar sua história, do nada?
— Só achei que a minha história e a sua eram meio parecidas. Vai saber, talvez ajude ouvir.
Kairin o olhou com desconfiança.
— Bem, se não quiser beber, tudo bem. Na verdade, eu prefiro ficar com tudo só pra mim mesmo…
— …Me dá um pouco.
— Hmm.
Kairin estendeu a mão. — Eu disse, me dá!
Ela nunca havia tomado álcool na vida, mas naquele dia sentia vontade de experimentar. Tomou a garrafa das mãos de Russell com um tilintar, deu um gole… e logo fez uma careta, como era de se esperar.
— Isso sempre tem esse gosto?
— É bom, né?
— Bom uma ova… Não entendo como as pessoas bebem isso.
— Então devolve…
— …Deixa isso pra lá. Conta logo a sua história. Vou usar como petisco enquanto bebo.
— Você virou uma alcoólatra num piscar de olhos.
Usar uma história como acompanhamento da bebida, em vez de algo pra mastigar, era coisa de alcoólatra experiente.
Russell murmurou algo nesse sentido em voz baixa, mas mesmo assim, começou a contar sua história.
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