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    Não havia nada tão místico quanto o portal de Anya Marta, um portal que conectava dois espaços. Levaria apenas um breve segundo para atravessá-lo, mas a sensação estranha que atingia o corpo fazia parecer que o tempo se estendia por muito mais.

    Todos, incluindo Airen, sentiram o mesmo. Claro, os membros do grupo de Ethan estavam muito mais empolgados, pois era a primeira vez deles. Pelo contexto, já haviam presumido que seria algum tipo de passagem os levando ao palácio de Arvilius, mas experimentar isso pessoalmente era muito mais eletrizante.

    “Não é à toa que dizem que feitiçaria é melhor do que magia”, Giovanni pensou consigo mesmo enquanto nadava pelo portal dourado, sua mente cheia de pensamentos que magos certamente considerariam ofensivos. Todos estavam perdidos em seus próprios devaneios, aproveitando aquela experiência única na vida.

    Somente Ethan pensava em algo diferente.

    “Sua Santidade, o Rei Sagrado…”

    Aquelas palavras, por si só, já eram suficientes para fazê-lo engolir em seco. Na verdade, naquele momento, Ethan se sentia mais ansioso do que qualquer outro ali.

    E não era porque havia cometido algum pecado. Sim, ele trabalhava em uma indústria frequentemente ridicularizada por fugir assim que as coisas saíam do controle, mas Ethan não tinha nada do que se envergonhar. Ele havia trabalhado duro para obter seu cartão dourado como mercenário, uma conquista possível apenas graças às suas habilidades, caráter, senso de responsabilidade e liderança. Seu orgulho nisso era o que o mantinha firme e evocava a inveja de todos os aventureiros que vagavam pelo continente.

    Falando em orgulho…

    “Eu ainda tenho esse orgulho?”, a expressão de Ethan escureceu com esse pensamento. Para ser franco, ele já não tinha mais a mesma confiança de antes.

    Era algo inevitável. O espadachim careca era alguém que ele poderia ter enfrentado de cabeça erguida, mas assim que foi revelado que fazia parte da Guilda Wise, Ethan imediatamente se tornou tímido e inseguro.

    E no momento em que viu os olhos ferozes do mestre espadachim Brodie Sharper, seu corpo foi tomado por suor frio. Ethan talvez não fosse o maior espadachim que existia, mas acreditava que levava uma vida digna, uma crença que logo foi reduzida a cinzas.

    E depois disso? Tudo nele havia sido patético desde então. Mesmo quando, embora não tivesse visto com seus próprios olhos, as circunstâncias claramente indicavam que Gael Wise era um homem perverso, ele ainda pensou longa e profundamente sobre se deveria permanecer ao lado de Jarin. Porque estava com medo. Medo de ser arrastado para um conflito grande demais para ele suportar. Medo de ser varrido e esquecido…

    “Eu não era tão forte quanto pensava.”

    Como alguém que acabara de perceber sua própria covardia, Ethan não pôde deixar de se sentir oprimido diante da presença do Rei Sagrado, a mais alta entidade daquele reino.

    — Oh!

    Antes que percebesse, a cena à sua frente havia mudado.

    Eles estavam em uma sala espaçosa e limpa, com poucos móveis. Era quase vazia, exceto por uma grande mesa com cadeiras suficientes para todos se sentarem.

    Mas Ethan não foi corajoso o suficiente para tomar assento sem perguntar. Pois, sentado do outro lado, estava um velho que parecia um camponês qualquer de uma vila no interior.

    Instintivamente, ele soube. Aquele era o Rei Sagrado, o governante atual de Arvilius.

    “O que eu deveria dizer… ou devo apenas ficar quieto?”

    Ethan engoliu em seco novamente. Ou melhor, tentou, mas sua boca estava tão seca quanto um deserto, e não havia nada para engolir. Movendo apenas os olhos, ele observou o resto do grupo. Todos ali, até mesmo o ferreiro Vulcanus, que sempre parecia relaxado, estavam visivelmente nervosos.

    Por outro lado, o Rei Sagrado parecia completamente à vontade. Na verdade, era difícil dizer. Ele estava completamente imóvel, como um objeto em uma pintura de natureza morta, observando-os com olhos desprovidos de emoção.

    Sentada um pouco afastada dele, havia uma mulher que aparentava estar na casa dos trinta.

    “Quem é essa?”, Ethan pensou, nem mesmo conseguindo formar a frase em sua mente de maneira fluida. Isso porque a mulher ao lado do Rei Sagrado tinha uma presença ainda mais aterrorizante. Seus traços eram marcantes, apesar de não usar maquiagem, e seu olhar era tão poderoso que Ethan jamais o esqueceria pelo resto de sua vida.

    Claro, aquele olhar não estava fixo nele. Estava em Airen Farreira. Tanto o velho quanto a mulher tinham olhos apenas para o jovem herói.

    Por um tempo, nenhuma única palavra foi dita. O silêncio se estendeu por um longo momento. Ninguém ousava abrir a boca, nem Jarin, nem Giovanni, nem Keenan Reyes, nem Ethan. Nem mesmo Vulcanus, ou sua guia, Anya Marta. Gotas de suor começaram a se formar em suas testas devido à enorme pressão, enquanto lutavam com todas as forças para manter a mente intacta.

    Era por causa da intimidação de sua energia? Não necessariamente.

    Era por causa das posições exaltadas do Rei Sagrado e daquela que podia se sentar ao lado de tal homem. E pela autoridade que vinha com isso.

    Foi então que Ethan percebeu algo: Airen Farreira era o único ali que parecia composto. Como se declarasse que apenas ele poderia suportar o poder e o status dos que estavam diante deles. E era esse senso de valor próprio que o distinguia, não sua esgrima, conexões ou origem.

    — Ouvi dizer que desejava me ver — Airen disse.

    Nem o Rei Sagrado nem a mulher responderam.

    — Tem algo a dizer?

    Mais uma vez, o silêncio.

    — Nesse caso, eu gostaria de falar primeiro. É sobre a Guilda Wise e Gael Wise.

    Airen falou sem hesitação. Não havia nada de desajeitado ou falho em suas palavras. Suas frases eram fluidas e organizadas, como se estivesse completamente preparado; seus pontos eram concisos e claros, detalhados o suficiente para que até Jarin, que certamente teria muito a dizer sobre Gael, não tivesse mais nada a acrescentar.

    Um tempo considerável se passou. Com a voz apaixonada de Airen, o espaço vazio foi logo preenchido por suas convicções justas. As pessoas se sentiram estranhamente em paz e foram capazes de ouvi-lo com muito mais tranquilidade do que antes.

    Mas quando o jovem herói terminou, e quando o Rei Sagrado finalmente abriu a boca pela primeira vez, todos não puderam evitar sentir-se nervosos novamente.

    — Eu já estava ciente de que a Guilda Wise e Gael Wise estavam cometendo atos ilícitos — disse Sua Santidade.

    Airen o encarou de volta, sem palavras.

    — Mas é claro. Por mais meticuloso que seja, nem mesmo aquele astuto meio-elfo poderia escapar dos olhos de Arvilius. Pode-se conseguir escapar uma vez, mas quando a mesma atrocidade é cometida repetidamente, mais cedo ou mais tarde, será pego. Ainda assim… — O Rei Sagrado ergueu a mão, uma mão surpreendentemente calejada para um rosto tão envelhecido, e apontou para Airen. — Não esperava que ele fosse humilhado por uma criança como você.

    — Se já sabia, por que não fez nada a respeito? — Airen perguntou.

    — Para manter a paz em toda a terra.

    — Será que isso é realmente manter a paz? Deixar que eles lavem o cérebro de elfos inocentes e os vendam para aristocratas humanos perversos apenas para expandir a influência da guilda?

    — Você sabe quanto dinheiro a Guilda Wise doa todos os anos?

    Airen permaneceu em silêncio.

    — Você não seria capaz de compreender nem se eu lhe dissesse os números exatos. Porque é uma quantia astronômica, muito além do que o senso comum poderia conceber. Vou explicar de um jeito que possa entender melhor. — O Rei Sagrado pigarreou e fechou os olhos, como se estivesse organizando seus pensamentos.

    Mas ele não teve a chance de explicar, pois Airen Farreira já estava um passo à frente, e falou antes que o Rei Sagrado pudesse começar.

    — Não desejo ouvir isso.

    Os olhos do Rei Sagrado se arregalaram.

    — Qualquer que seja o motivo, qualquer que seja a justificativa que tenha, ela não pode justificar o sacrifício dos elfos — Airen declarou com firmeza.

    Todos na sala pareceram atordoados. Ethan mal conseguiu conter um grito. Até mesmo Jarin, que era a mais revoltada com essa questão, empalideceu de choque.

    Mas, mais do que qualquer outra coisa, a mulher sentada ao lado do Rei Sagrado, que até então não havia feito uma única expressão, finalmente abriu um sorriso. Seus ombros tremiam de leve enquanto ria, e seus brincos e colar tilintaram em resposta, tornando o silêncio no restante da sala ainda mais opressor.

    — Sim, eu sei — Airen continuou. — Não preciso da explicação de Vossa Santidade para saber o quanto a Guilda Wise tem financiado esta nação. Eles distribuem comida para os necessitados durante a fome, oferecem bolsas de estudo para órfãos e camponeses que anseiam por conhecimento e constroem bibliotecas. Ultimamente, ouvi dizer que até fornecem armas e armaduras a baixo custo para ajudar o povo a se defender contra demônios e diabos.

    — Então você sabe — o Rei Sagrado disse com um leve aceno, agora com um sorriso discreto no rosto, curioso para ver aonde Airen chegaria.

    Por fim, ele perguntou:

    — Muito bem, então. Diga-me o que pensa. Os mercadores da Wise são pilares importantes da sociedade, cujo financiamento impede que a nação desmorone. Você já entende isso, sem que eu precise explicar. Então como pode argumentar que Gael Wise deve ser punido?

    — Os recursos que você obtém ao silenciar as vítimas entre os elfos não possuem valor algum — disse Airen. — Sacrificar algo precioso apenas para obter lucro não é diferente de fazer um pacto com o diabo.

    — Essa é a sua visão. Mas nem todos neste mundo pensam como você. Há inúmeras pessoas que estão dispostas a tirar a vida de um semelhante apenas por um pedaço de pão. A humanidade, este mundo, também inclui todas essas pessoas. Está dizendo que todas elas também estão dispostas a fazer pactos com o diabo, que suas vidas não têm valor?

    — Está tirando conclusões precipitadas. Não foi isso que eu quis dizer.

    — Então esqueça seu idealismo e me diga. Em um mundo repleto de caos, qual solução você propõe?

    Whoosh.

    Uma sutil luz prateada emanou do corpo do Rei Sagrado. Era algo diferente de qualquer coisa anterior, energia em sua forma mais pura, pressionando Airen com uma força esmagadora, suficiente para fazer qualquer um recuar sem perceber.

    — Ungh. — Mas Airen não recuou. Ele firmou o centro de seu corpo e reuniu toda a aura dentro de si para suportar a pressão. Então deu um passo à frente, dois passos… e proferiu uma resposta tão desconcertante quanto absurda.

    — Eu não sei.

    Para a confusão do Rei Sagrado, ele continuou:

    — Já refleti muito sobre isso, mas não consigo chegar a uma resposta… Então eu lhe imploro, Vossa Santidade. Por favor, use sua sabedoria para ordenar todo esse caos e desordem.

    — Está zombando de mim?

    — Não estou. No entanto… — Airen apenas estava sendo honesto, admitindo que era completamente inexperiente demais para encontrar uma solução.

    Após respirar fundo, ele começou a compartilhar sua própria história.

    De certa forma, o incidente da Guilda Wise não era muito diferente do dilema que enfrentava desde que iniciou sua jornada quatro anos atrás. Suas experiências nas Montanhas Alhaad. A história que aprendera com a tribo Drukali. Tudo o que viu, ouviu e sentiu durante suas viagens… nenhuma dessas situações teve uma resposta clara. Apenas eventos angustiantes que o forçaram a abrir mão de algo para poder avançar.

    Ele já esteve preso nessa sensação de impotência. Apenas dois anos atrás, afundara em agonia diante de uma muralha gigantesca de corrupção que se ergueu em seu caminho, uma muralha grande demais para ele derrubar sozinho. Era evidente que não havia como resolver sozinho um problema que envolvia o futuro de um continente inteiro.

    — O Conde Lloyd me disse uma vez… Se é um sonho que não pode ser realizado com o esforço de um momento, com o esforço de um indivíduo, ou mesmo com o esforço de uma geração… então não devo me angustiar só porque não é alcançável no presente. E não devo me obcecar com isso, nem tentar forçá-lo.

    A sala permaneceu em silêncio.

    — Eu escolho viver por essas palavras. Não forçarei nada. Não tenho a experiência nem o conhecimento para oferecer uma solução para um problema tão imenso. Tudo o que posso dizer são minhas crenças idealistas, que a paz e a prosperidade construídas sobre sacrifícios indesejados inevitavelmente ruirão um dia. E embora seja ousado da minha parte… atrevo-me a pedir a ajuda de Vossa Santidade, ou de alguém muito mais sábio do que eu. Espero que isso não lhe cause indignação.

    — Isso é… — o Rei Sagrado começou a dizer.

    — Em vez disso, pretendo fazer tudo o que puder, dentro das minhas capacidades — Airen o interrompeu.

    Foi uma grosseria inacreditável interromper o Rei Sagrado, mas ninguém apontou isso. Eles apenas o encaravam, hipnotizados pela energia dourada resplandecente que emanava de seu corpo.

    Vmmmm!

    E, envolto na força de sua própria aura, o herói declarou:

    — Vencerei o Festival dos Guerreiros.

    “Céus!”

    — Provarei minhas habilidades ao mundo, para que todos nesta terra possam encontrar esperança em seus corações e superar seus medos. Farei tudo o que puder. Porque isso… é a melhor, e a única ação, que posso tomar agora — Airen concluiu, com o rosto repleto de determinação.

    Um pequeno gesto, um grande impacto.

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