Pearl havia se levantado da cama, descido as escadas e sentado à mesa com Yuki e Mila. Estava com uma cara de poucos amigos. Bem, já era de se esperar que ela estranhasse o que havia visto. Por mais que fosse alguém que questionava tudo ao seu redor, não questionou o fato de a mãe esconder esses poderes por tanto tempo. Mas o que mais indignava Pearl era o fato de a mãe ficar em casa, não sair, não ser livre como o pai dela. Ela se perguntava se isso sempre foi uma escolha da mãe ou não.

    — Eu realmente amo pães! — exclamou Yuki, mordendo um pedaço com entusiasmo.

    — Você fala isso toda vez — retrucou Pearl, revirando os olhos.

    — Porque eu amo de verdade, poxa.

    — Vocês duas são barulhentas demais — provocou Mila calmamente, antes de rir, enquanto passava manteiga em um pedaço de pão. — Inclusive, amanhã tem estudo. Nada de folga só porque seus irmãos saíram; eles voltarão em breve.

    — Mas mãe, já sabemos ler e escrever! Os livros daqui são chatos! — reclamou Yuki, apoiando o queixo nas mãos.

    — Verdade, só tem coisas de construção do papai. Quem quer aprender sobre isso?

    — Ei, construir casas não é chato!

    — É sim! — insistiu Pearl, emburrada.

    — Tá. — Yuki cortou a discussão, encerrando o assunto.

    Depois de levar os pratos à pia, Mila observou as filhas por um momento antes de perguntar:
    — Hoje você vai atrás da Nya, Pearl?
    — Vou… é, acho que sim.

    — Por que não chama ela para dormir aqui?

    — Tem que pedir para a mamãe — respondeu Pearl.
    — Pode chamar — disse Mila, sorrindo.

    Pearl se levantou apressada, pegando o casaco que estava pendurado na cadeira.
    — Vou lá agora. — Antes que alguém respondesse, ela saiu, batendo a porta.

    Não era tudo sobre a mãe que incomodava Pearl; existia uma coisa pior que a deixava com uma pulga atrás da orelha: a incapacidade de ter ajudado Yuki naquele momento. Ela insistia nesse pensamento sem perceber que estava ficando obcecada com a situação, perguntando-se: “E se a Yuki morresse?”, “O que eu poderia ter feito?”. Sentia-se culpada por apenas olhar, como se fosse uma espectadora do possível fim da irmã. O peso dessa sensação a fazia acreditar que havia se escondido, que não tinha sido corajosa o suficiente.

    O vento forte das montanhas esfriava seus pensamentos enquanto atingia seu rosto. Ela olhou para frente e respirou fundo, o ar gelado enchendo seus pulmões, trazendo uma sensação de clareza momentânea. Com o brilho do sol refletindo na neve.

    É porque os meninos não estão aqui, ou esse lugar sempre foi tão vazio?


    Eu quero muito ir lá embaixo…

    Quero ver o que tem naquele alçapão…

    Se o que estiver lá me der mais força, como uma espada, um livro, ou algo que me torne mais útil para minha mãe, eu ficaria feliz.

    É claro que tem algo embaixo, se os livros do meu pai estiverem certos sobre o que é um alçapão.

    Mas eu devo ir agora? Eu poderia pedir ajuda à Nya… Mas é muito perigoso, tinha lobos lá ontem…

    Os flocos de neve caíam preguiçosamente enquanto Pearl se movia até a sombra da casa de Luck. A quietude da montanha parecia amplificar cada batida de seu coração. As árvores ao redor, carregadas com camadas brancas de neve, pareciam observá-la em silêncio, cúmplices de sua hesitação, como se o próprio mundo estivesse ciente de sua decisão.

    Minha mãe vai se estressar comigo… Mas não é tão distante da barreira. E também, o que poderia acontecer?

    Sei que consigo ir e voltar tranquilamente.

    Mesmo que não tenha nada lá embaixo, não será uma viagem perdida, ou… será?

    Ela respirou fundo, confiante, ajustando o casaco. O tecido era grosso e oferecia um breve consolo contra o frio cortante, enquanto ela apertava os punhos para conservar o calor.
    — Eu quero provar que sou mais útil — murmurou para si mesma.

    Sem mais hesitar, Pearl começou a descer de Yeni, movendo-se rapidamente em direção à região onde havia escondido o alçapão.

    Eu tenho que ser tão poderosa quanto a minha mãe e tão forte quanto o meu pai.

    Se eu não consigo ficar uns cem metros longe da barreira, como vou ser útil?

    Ela descia por um terreno que era relativamente fácil de descer, mas prometia ser uma longa jornada na subida. Desviou de algumas árvores retorcidas pelo vento, pedras sob a neve e arbustos que se erguiam ao longo do caminho.

    Até que finalmente chegou à barreira, não era invisível, nem totalmente visível; parecia uma leve distorção no ar, como uma miragem.

    — É agora, a minha decisão. Eu… — disse Pearl, hesitando por um instante. Ela passou a mão pela barreira, observando-a do outro lado, distorcida e turva. — Sempre acho isso incrível.

    Respirou fundo e atravessou completamente, sentindo um leve arrepio ao fazê-lo.

    Eu consigo. Tá vendo só? Não é tão difícil…

    Ela continuou descendo até a floresta, adentrando aquele ambiente onde as árvores se fechavam, dificultando a passagem da luz.

    Ela procurou bastante pelo lugar onde havia escondido até que encontrou novamente o alçapão.

    Pearl nunca foi de desobedecer os pais, mas se tivesse um motivo bom, se fosse um bom motivo para ela, sempre cogitou. Os motivos se intensificaram: uma vez, quando era pequena, saiu de casa correndo sem as roupas de frio porque seu irmão Luca saiu de casa — ele não podia sair pois estava doente. Outra vez, mais grandinha, pulou da escada para impedir que seu irmão Lótus caísse — mesmo que seus pais tivessem pedido para que nunca pulassem da escada. E da última vez, pulou na frente de um alce agressivo, machucando-se moderadamente, para impedir que atingisse Yuki — mesmo que Kael tivesse dito que nunca era para pular na frente de um animal.

    Ela tirou o casaco e ajoelhou-se, colocou as mãos no alçapão e puxou-o, mas, como da última vez, ele não se moveu. Não subiu, muito menos se moveu para o lado, apesar do cabo onde ela segurava parecer bem velho.

    — Droga… — murmurou, frustrada.

    Por que ninguém achou isso antes? Ela estava desconfiada, mas não hesitou.

    Com paciência, Pearl limpou o alçapão, removendo as folhas e galhos que havia colocado antes. Foi então que notou algo curioso: várias inscrições entalhadas na superfície.

    Escrituras? Será que isso tem a ver com magia? Com encantamento?

    Ela inclinou a cabeça, analisando os símbolos e refletindo. Seus dedos traçaram as linhas das inscrições, sentindo uma leve vibração, como se o alçapão respondesse ao toque. Não entendia nada, mas deduziu.

    Então, para abrir, eu deveria usar…

    Pearl se concentrou, fechando os olhos e tentando canalizar sua energia nas mãos. Com esforço, colocou a teoria em prática, pressionando a mão no alçapão com força.

    O alçapão se ergueu suavemente, como se fosse uma folha sendo levantada pelo vento.

    Foi fácil demais, isso é estranho.

    Ao olhar para dentro, ela sentiu algo ainda pior. Tudo estava em um breu absoluto. Pearl inclinou-se um pouco, tentando enxergar o que havia dentro, mas não conseguiu ver nada além da escuridão densa que preenchia o espaço abaixo.

    Pearl olhou ao redor, procurando algo que pudesse usar.
    — Será que eu consigo fazer alguma coisa para iluminar? — murmurou, enquanto procurava, mas não encontrou nada útil.

    — Uma magia, talvez… Tá, vamos fazer o que a Nya ensinou… Imaginar, certo? Imaginar algo que acenda… uma pederneira? Uma tocha? Não, uma tocha é muito grande. Já sei, uma vela! É quase como uma tocha, mas o fogo é menor, mais fácil de criar.

    Pearl fechou os olhos e se concentrou. Primeiro, imaginou uma pedrinha girando, depois, visualizou a mesma pedrinha girando tão rápido que acendeu e queimou. Ela apontou o dedo indicador para frente e imaginou a pedrinha derreter, sobrando apenas aquela bolinha de fogo girando sem parar, até que parou de visualizar a pedrinha girando.

    E, de repente, uma chama surgiu na ponta do seu dedo.

    — Foi um bom chute, agora eu sei como criar uma magia. Talvez eu tenha menos energia, ou talvez as magias prontas da Nya fossem só para ajudar. Eu não entendo muito bem.

    A chama iluminava o ambiente, e ela conseguiu enxergar uma escada de ferro logo à frente.

    Segurou com firmeza e começou a descer cuidadosamente. A descida não foi longa, e logo seus pés tocaram o chão frio.

    Olhou ao redor, percebendo o breu que dominava o único caminho à frente.
    — Isso é tudo muito estranho.

    Deu três passos para frente e logo pisou em uma placa de pressão de pedra, que fechou o caminho de volta com barras de ferro grossas. O barulho foi tão forte que assustou Pearl por um momento.
    — Tá ficando perigoso, tudo isso. Se bem que, se eu precisasse fugir, as barras não seriam um impedimento. — Ela tirou o pé da placa de pressão, que não percebeu ter pisado, pois era suave e não precisava de tanta pressão para ser ativada.

    Então, ela continuou andando, com apenas aquele dedinho iluminando um pouco o caminho à frente.

    Pearl se jogou no chão para trás, assustada; uma aranha tinha caído do teto.
    — Droga! — Pearl levantou-se e continuou a andar.

    Por mais que sua mente se mantivesse calma e em ordem, o corpo não respondia da mesma forma, já que ela tremia e estava suando frio. Sabia que estava trancada em um lugar sabe-se lá onde.

    Deu mais alguns passos naquele corredor e ativou outra placa. Desta vez, percebeu a placa a tempo. Ela rapidamente ouviu um barulho, e uma lança foi disparada contra ela, para atingir uma parte posterior de seu corpo — um pouco acima do quadril. Ela viu a lança a tempo e conseguiu pular, mas a lâmina rasgou levemente sua coxa, o suficiente para fazê-la sangrar e sentir uma dor enorme.

    O fogo no seu dedo apagou — a magia foi cancelada devido à falta de concentração de Pearl.

    Ela começou a apertar a própria perna , pressionando contra o sangue. Ela tremia, engolia a saliva, suava, sentia seu corpo quente e sua cabeça parecia estourar.

    Por que eu vim? Enquanto pensava, um muro enorme desceu atrás dela, trancando ainda mais o caminho. Por mais que não conseguisse ver nada, pelo barulho, conseguiu deduzir o que havia acontecido. Dessa vez, não tinha outra opção. Rasgou um pedaço da manga de sua roupa branca, que logo ficou totalmente manchada com aquele sangue vermelho-carmesim, e o enrolou em volta da panturrilha.

    Sem a magia, a escuridão parecia mais densa do que nunca; não conseguia enxergar um palmo à sua frente. Foi obrigada a parar um pouco e acender o fogo novamente. Quando viu uma caveira à sua frente, um corpo esquelético inteiro com o tronco atravessado por uma lâmina que saiu da parede, o susto fez seu coração disparar, e ela seguiu em frente, mancando, apressada para sair dali e esquecer tudo o que aconteceu.

    Eu entendo… As placas têm uma sensação diferente. Ela iluminava mais o chão do que a sua frente com a pequena chama no seu dedo.

    Eu consigo ver algo diferente, é a mesma sensação da casa da Nya, é como se tivesse uma presença menor.

    O corredor era estreito, sombrio, cheio de teias de aranha e insetos, enquanto ela desviava das placas que com certeza poderiam matá-la nas condições em que estava. Quanto mais perto chegou ao portal — uma passagem como uma porta que não tinha uma porta.

    Ao atravessá-lo, entrou em uma sala estranha, redonda.  No centro, algo chamou sua atenção: um anel brilhante com uma pérola azul e branca no meio, repousando sobre estacas de um material prateado e cintilante, que ela nunca havia visto antes.

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