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    A fogueira havia se acendido de novo. Dessa vez, não era apenas para aquecer o corpo ou algo do tipo, mas sim para esquentar carne.

    Após minha barriga roncar, Karina correu contra o vento e trouxe um grande animal. Era necessário? Não, obviamente. Porém, ela quis mesmo assim.

    Um grande javali, que ela trouxe com apenas uma mão. Após dissecar, colocou entre as hastes metálicas que ela criou e deixou a fera assar.

    O pobrezinho do animal já estava sendo cozinhado há bastante tempo, e, mesmo sem qualquer tempero, isso era muito mais luxuoso do que qualquer comida dada na prisão.

    Karina arrancou uma das coxas do javali, comendo igual a uma selvagem. Cada mordida arrancava um pedaço da alma do animal, se é que já não tinha sido arrancada.

    Estava com receio de comer aquilo, mesmo parecendo visualmente melhor do que aquele lixo. 

    — Coma, mamãe! — Estendeu o seu pedaço para mim. Sorriu, enquanto mastigava o pedaço que já continha em sua boca. — Tá bom pra burro!

    Acabei rindo de forma desajeitada da sua cara. Ela estava toda suja de tanto comer dessa forma mais bárbara. Não parecia ser tão prejudicial, apenas cômico.

    Todavia, eu ainda precisava ensinar alguns modos para ela.

    Dei uma mordida no pedaço que Karina havia estendido, colocando a mão sobre a boca assim que comecei a mastigar.

    Estava meio amargo… mas estranhamente bom. Sentia falta do gosto da carne. Só a textura já era o suficiente para meu paladar.

    Mas como eu sentia falta disso! Queria gritar de felicidade.

    — Você temperou? — disse, enquanto mastigava. — Está um pouco salgada também.

    Hehe! É tão perceptível assim? Não vou deixar minha mamãe comer algo sem tempero, é ruim — respondeu, enquanto comeu mais um pedaço da coxa. 

    Ela já estava fazendo muito por mim… sou sortuda por isso? Eu mereço isso? Apenas não conseguia parar de pensar nessas coisas.

    Estava sem ninguém até… algumas horas atrás. 

    — Você tem que parar de se rebaixar assim, mamãe — disse Karina, enquanto chegava mais perto.

    Que?

    Era como se ela tivesse lido meus pensamentos.

    — Deixei muito evidente o que estava pensando? — perguntei, receosa de sua resposta.

    — Seus sentimentos são fáceis de perceber. Você é muito expressiva, sabia? Aqui, toma. — Ela tirou a outra coxa do javali e entregou em minha mão.

    Ah, que se dane mesmo! 

    Comecei a comer, enxugando todas as minhas mágoas. Tinha que deixar o passado para trás, porém eu não queria esquecer seu rosto.

    Eu quero lhe ver mais uma vez, e espero que esse sentimento seja mútuo, se assim você estiver viva.

    — Já sabe o que vai fazer? — perguntou Karina, enquanto se limpava com a blusa.

    Estranhamente, tínhamos um estilo parecido de camisas. Essa que ela usava era algo bem parecido com uma que já usei por bastante tempo, porém, essa é mais escura.

    Quando levantou a camisa para limpar a boca, os seus músculos da barriga se deixaram à mostra. Tudo que pude sentir foi inveja ao olhar toda aquela definição no abdômen.

    — Você… — Hesitei. — Se for para pensar em algum objetivo, talvez seja encontrar ela.

    — Ela quem? — Karina virou a cabeça, confusa.

    — Aquela que vai receber o outro par desse anel. — Levei minha mão para perto da boca, beijando a joia levemente. — Só não sei como iniciar essa procura.

    — Talvez… Chamabrava, a capital? Sei que eles têm uma pessoa com benção de rastreamento por lá.

    — Capital? Onde fica o castelo da família real? 

    — É. Na mosca, hein, mamãe.

    — Sou uma fugitiva, não? Eles com certeza irão mandar alguém atrás de mim. — Parei para pensar. — A última coisa que eu iria fazer é viajar até a capital… Quero evitar ao máximo os holofotes, então viajaremos para as cidades fronteiras.

    — Tipo… Aguaforte? 

    — Ugh… Eles tem péssimo gosto pra nome — resmunguei.

    Mesmo que eu tenha estudado o mapa de Hektar há uns cinco anos, continuava fresco em minha memória algumas informações importantes.

    E o centro, local mais seguro do continente, tinha um déficit imenso de torres. Porém, como eu vou lhe encontrar nessa vastidão de mundo? É um desafio quase… impossível.

    Comi mais um pedaço da carne, que agora parecia totalmente normal para meu paladar. 

    — É. — Mastiguei a carne, enquanto olhava diretamente para Karina. — Pode ser ela. Só quero um lugar longe o suficiente para não ser pega pela segunda vez.

    — Hummm… Temos opções até demais para isso então. Uma delas é sair do centro, indo para algum lugar muito mais distante. Talvez… o oeste? Você vai à culinária de lá.

    — São bons em carne? 

    — Peixe. Tem até uma coisa nova lá que eles chamam de… shushi. É uma especiaria muito famosa entre os nobres.

    Karina fez uma faca, cortando mais pedaços do javali. Em poucos segundos, um prato metálico surgiu em sua mão, no qual ela colocou a carne.

    Estendeu o braço, me oferecendo o prato dessa vez.

    — Interessante. Melhor que Erica? 

    Assim que toquei no nome dessa cidade, péssimas lembranças surgiram em minha mente. Todo aquele tempo pensando sobre tudo que aconteceu não foi o suficiente para alinhar minhas ideias.

    O que diabos aconteceu com Erica nesse meio tempo?

    — Fala daquela cidade que foi queimada? — respondeu Karina. Aceitei o prato que ela estava oferecendo, colocando-o em meu colo.

    — Ah… então foi nisso que deu. — A carne que estava indo em direção à minha boca havia parado no momento em que recebi essa informação.

    — O oeste emergiu como mercado peixeiro logo após isso.

    — Acho que não deveria ter tocado nesse assunto, fica meio sem saída agora. 

    — Tá tudo bem, termine de comer e sairemos para o oeste, se a mamãe assim desejar — disse Karina, levantando rapidamente da posição em que estava.

    — Seria incrível se fôssemos até o oeste, estou muito curiosa para ver o que iremos encontrar lá.

    Tinha uma estranha sensação me incomodando.

    Como uma voz dizendo “fique aqui”.

    Ou, algumas horas, a voz dizia “ela está aqui”.

    Porém, eu não sabia o quanto podia confiar em minha intuição. Vamos apenas chegar a algum local seguro, é mais certo essa ideia.

    Demorou um certo tempo até que eu finalizasse meu almoço. Quando terminei, transformei todo o ferro que ali estava em um cubo compactado.

    — Essa é uma ótima forma, viu — disse Karina, colocando a mochila em suas costas. — Porém, tenho outros propósitos para esse metal.

    — O que?

    Sua mochila estava mais murcha, como se muita coisa tivesse sido jogada fora instantes atrás. Karina pegou todo o ferro e criou uma base metálica em suas costas.

    Era como se…

    — Um segundo, segure firme — falou Karina, agachada ao meu lado. Ela chegou mais perto, colocando-me no suporte.

    — Ei! Está fazendo o que? — gritei em desespero.

    Pensei que ia cair no primeiro momento, mas com o metal que sobrou, ela me ajudou a estabilizar em suas costas. 

    Amarrei corretamente as cordas ao redor de meus ombros, certificando-me de que não ficasse tão apertada e nem tão folgada.

    Essa era uma ótima ideia, tendo em vista que estava impossibilitada de fazer qualquer coisa envolvendo as pernas. 

    Mas… era extremamente humilhante. Não gostava dessa ideia, por mais útil que essa possa ser. Incomodar Karina com meu peso deve ser tão vergonhoso! E se ela reclamar?

    Fiquei aliviada após um tempo.

    — Não está pesado? — perguntei, quase chorando de vergonha.

    — Tá não! Meus músculos são fortes o suficiente para aguentar você, mamãe. — Karina fez alguns agachamentos, como se preparasse a perna para uma grande caminhada.

    Com o mapa de Hektar na mão, ela lambeu a ponta de seus dedos e apontou para o céu. Talvez uma técnica milenar…?

    Karina começou a correr a favor do vento. Seus passos acelerados eram incompreensíveis para mim.

    Acho que nunca vi alguém correr tanto quanto ela.

    Tudo passava muito rápido pela minha visão, eram apenas vultos de árvores. Estava com muito medo daquilo.

    Me segurei em qualquer coisa, querendo impedir que caísse do suporte.


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