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    A fera se regenerou por completo em um piscar de olhos. Um feito impossível para um ser humano até então, o que significava que ele não era nada, nada humano.

    Minha mão havia ficado presa na mesma placa metálica da qual Karina usou para me prender à árvore. Movimentei com um pouco de esforço, tirando meu braço de dentro do metal.


    [Fera, quinto nível.]

    Que?

    Esse tipo de mensagem nunca havia aparecido antes.


    [A Condessa da Sabedoria utiliza seu poder.]

    Pela primeira vez em muito tempo, a benção havia sido ativada involuntariamente. Mas o que? Por que? O que lhe deu gatilho?


    [O ponto fraco da fera é a sobrecarga.]

    Sobrecarga? Como eu posso confiar nisso?

    Que se dane! Só posso acreditar nisso agora.

    O monstro avançou em Karina, que desviou no mesmo instante. Cabeceou uma das árvores e fez um dos galhos cair em sua cabeça, não o afetando em nada.

    Coçou sua nuca, como se apenas tivesse sentido um arranhão, e olhou para Karina, com raiva. 

    Karina olhou diretamente para meus olhos, enquanto tentava falar algo, mas o monstro não a deixava respirar por um segundo. Hesitava, ou melhor, só não conseguia dizer nada para a ajudar.

    — … Ataque sem parar, filha! — gritei no calor do momento. Uma força surgiu dentro de mim, deixando com que as palavras saíssem da minha boca. Porém, eu não sabia se Karina havia escutado…

    Ela acenou com a cabeça, como se tivesse entendido o que eu queria falar. Iniciou mais uma arrancada, saltando entre as árvores que tinha perto. 

    Acabou se prendendo pelas pernas em uma árvore, balançando enquanto olhava para o monstro. Saltou logo após. Naquele momento, foi como se o tempo tivesse desacelerado.

    Todo o salto de Karina para as costas do monstro foi visto de forma mais lenta pelos meus olhos, e quando ela pousou, o tempo voltou a rodar.

    Sua mão virou uma foice, da qual ela prendeu na pele do monstro em sua primeira oportunidade. Com a outra mão, criou uma espécie de lâmina metálica circular, da qual foi presa a dois suportes.

    — Só atacar sem parar, né? — A roda começou a girar. — Vamos ver o quanto você aguenta.

    Fincou a lâmina no monstro, lâmina essa que girava mais rápido do que meus olhos puderam acompanhar.

    Um líquido verde saía desse monstro, o que confirmava de vez a minha teoria de não ser uma benção. O sangue dos Viajantes.

    Karina se banhava com aquele líquido, enquanto em seu rosto mantinha-se um sorriso assustador.

    Sua risada maligna ecoava ainda mais do que seu sorriso feliz. O monstro se debatia, tentando tirar Karina de suas costas, mas, por conta da outra mão que mantinha ela fincada, as tentativas foram falhas.

    Bateu na árvore, bateu na montanha de terra, mas nada adiantava. Karina ainda continuava presa às suas costas, o serrando cada vez mais.

    Os grunhidos de dor só começaram após um tempo sendo cortado sem parar. Era como se ele finalmente pudesse sentir dor.

    Fumaça saía de seu corpo, e Karina só afundava cada vez mais sua lâmina girante. O monstro grunhiu mais uma vez, assustando alguns pássaros próximos e fazendo-os voar para longe.

    O monstro colocou sua mão na terra, puxando um grande bloco. Ele olhava para os lados, tentando encontrar algo, até que… seus olhos se encontraram com os meus.

    Estava em uma parte escondida, e ele apenas havia me visto por um relance, então por que prestar atenção em mim? 

    Jogou o bloco de terra em minha direção.

    Uma alta velocidade.

    Karina olhou para mim. Ela estava de boca aberta, como se estivesse gritando por sua vida. 

    O som havia sumido, e eu tinha ficado apenas com o sentido visual naquele instante. Talvez, pelo choque, isso tenha acontecido.

    Mas não importava, eu tinha que fazer algo.

    Não conseguia.

    Estou sendo um fardo imenso…

    Fechei meus olhos, estendendo a mão para frente, esperando que o pior acontecesse. Escutei um som aéreo por um breve momento. Não consegui respirar por alguns segundos.

    Abri meus olhos e… o bloco de terra não havia me atingido. Karina me encarava surpresa, e o monstro parecia em choque por seu ataque ter sido desfeito.


    [Domínio do Ar foi ativado.]

    Havia esquecido de minhas bençãos. Me sentia impotente, e o principal fator desse sentimento eram elas. Não conseguia fazer nada, não conseguia ajudar nada com esse corpo.

    Mais uma vez, minha vida havia sido salva por elas, e não por meu esforço.

    — Seu desgraçado. Você tentou matar a mamãe! — vociferou Karina, criando a mesma serra em sua outra mão. As duas começaram a girar em um ritmo muito rápido, tremendo os braços de Karina como efeito colateral.

    Ela fincou as duas, saindo ainda mais sangue verde do Viajante. O monstro estava enfraquecendo.

    De forma lenta, a fera caía ao chão. Sua regeneração parecia não ser mais rápida do que os ferimentos causados por Karina.

    Até que seus grunhidos pararam. Parecia ter morrido, os seus gritos haviam parado. Porém… Karina não parava suas serras.

    — Hahaha! Morra, desgraçado! — gritava Karina, totalmente alucinada. De suas costas, braços se alongavam e faziam novas serras, que logo iniciavam seu trabalho no cadáver. Eu precisava impedir ela.

    — Karina! Pare, isso já é o suficiente! — gritei.

    Minha voz parecia não ter chegado a seus ouvidos, então continuei gritando a mesma coisa sem parar. Até que, alguns momentos depois, ela escutou.

    Talvez ela tenha saciado a sua vontade assassina ou apenas me escutou, mas, independente da sua resposta, ela havia olhado para mim.

    Logo seu corpo foi voltando ao normal, saindo das costas do monstro morto logo após. Ela tirou o ferro que me prendia, me levando de volta para baixo.

    Ela estava suja e fedendo, era inegável.

    Se Karina fazia isso com um monstro que parecia um humano, imagine em um humano… Devo temê-la?

    Ela sorriu para mim, como se estivesse aliviada por eu estar bem.

    Não… não devo ter medo dela.

    — Você tá com um fedor insuportável — apontei.

    Ela estalou a língua, desviando o olhar.

    — Você não tá nem feliz por eu ter ganhado? — Fez beicinho.

    — … Claro que eu tô. — Coloquei a mão em seu rosto sujo. — Mas você vai ter que tomar um banho mesmo assim.

    Tirei minha mão daquela meleca que estava em seu rosto.

    — E a torre? Não vamos explorar ela? — disse Karina, limpando seu rosto com sua mão suja, espalhando ainda mais a gosma por seu rosto.

    — Torre? Você ainda tá pensando nisso? — perguntei, rindo de sua situação comprometedora.

    — É… fiquei muito curiosa pra ver lá com a mamãe.

    Eu queria responder que não, queria muito mesmo. Mas não conseguia dizer não para aquele rosto.

    — Talvez amanhã? 

    Seus olhos brilharam.

    — Trato feito!

    Trato feito? Talvez eu me arrependa dessa decisão.


    A noite havia chegado, e Karina tinha se banhado em um rio próximo. Se aproximava em meio às sombras com mais um animal em sua mão.

    — O que é isso? — perguntei.

    Em sua outra mão, estava uma toalha da qual enxugava seu corpo molhado. 

    —  Javali, ué. Pensou que era algo diferente? — respondeu com sarcasmo, rindo da minha cara.

    Tsc!

    A fogueira já estava acesa, e minhas pernas se encontravam cobertas por um lençol naquele momento. Estava sentindo frio pela primeira vez em muito tempo.

    Se abaixou, colocando o animal para assar.

    — Que cansaço! Aquele viajante só deu problema.

    Mordi o lábio, hesitando em perguntar algo que estava me incomodando.

    — Pode falar, mamãe — disse Karina.

    Me assustei, pulando levemente.

    — Parece que eu não consigo esconder nada mesmo, né? — disse, arrumando meu cabelo do rosto. Olhei para a paisagem em que nos encontrávamos. — Como você sabia que era um Viajante?

    — Não sabia.

    Meu cérebro parou.

    Levei um tempo para processar essa informação.

    — Então, você só atacou por…

    — Atacar, óbvio. Poderiam ser vários ladrões ou um só, quem sabe — falou Karina. Começou a assoviar logo após, como se quisesse mudar de assunto rapidamente.


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