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    Sangue.

    O meu mundo sempre foi pintado do mais puro sangue. Desde o nascimento até o dia em que teria de partir.

    Esse sempre foi o princípio. O meu destino está atrelado a um líquido viscoso que corre em minhas veias.

    Um líquido nojento que mostra o lado ruim da humanidade. O escarlate que me move e gira as engrenagens.

    Não me encontrava num abismo profundo de memórias ou de prazeres. Me encontrava no mais puro mar de sangue, navegando por um barco que não podia parar, e nem ia tão cedo.

    Acompanhada de apenas um remo e força de vontade. Como poderia viver nessa situação? Quero dizer, se ainda estivesse viva.

    Não me lembro de nada. 

    O meu nome, que deveria estar gravado em minha alma, não se encontrava no local. Esqueci quem era e quem deveria ser no futuro. 

    Era uma casca vazia.

    Uma pele descartada da cobra que passeava livremente pelo mundo.

    — Por quanto tempo terei de ficar assim? — questionei, olhando para o infinito mar sangrento. — É difícil tentar entender o motivo de estar nessa situação.

    Passaram-se meses desde que acordei. Talvez anos? Ah… Quem sabe? O tempo não importava muito.

    Estava presa naquele local. Acorrentada ao nada.

    Sem ao menos entender o motivo de minhas injúrias e o amargor que no peito cresce.

    Horrível.

    Era o que pensava.

    Me sentía imponente. Não conseguiria fazer nada, ainda mais sem um maldito braço. O braço esquerdo, por sinal! Como cacetes eu havia perdido ele?

    Já havia tentado forçar minha mente de diversas formas. Desde me afogar no mar para reviver uma experiência traumática até mesmo bater com a cabeça no barco até desmaiar.

    É…

    Confesso que ambas doeram muito! Mas o que poderia fazer? O impossível não se tornaria possível tão fácil.

    Precisava de um empurrãozinho, sabe? E, pelo visto, não era eu quem teria de dar esse “empurrãozinho”.

    Queria ter poderes. Queria poder. Mas querer não é poder.

    Já dizia… Uh… Alguém por aí. Não vou lembrar o nome agora, mas essa frase me é familiar.

    Peguei o remo que acompanhava-me desde o começo. 

    — Você nunca me abandonou, né? Um ótimo amigo — disse, olhando para o pedaço de madeira velha. — Queria poder entender o motivo de você ter esse número talhado em seu cabo.

    “7.”

    Só isso.

    Tinha um sete na madeira, e isso me intrigava muito mais do que possa imaginar! Vai ver esse número é…

    Hmm…

    Não sei.

    Que tal meu número favorito? 

    É, é. Posso acreditar que seja meu número favorito.

    — E tá bem talhado. Vê se pode? É um absurdo esse número capenga ser meu favorito. 

    O dia iria se iniciar mais uma vez. Ou… talvez à noite? 

    Minha situação tava horrível, e essa era a prova disso.

    Vagando por um mar.

    Divagando por pensamentos.

    — Só que… hoje seria diferente — murmurei, colocando o braço por cima dos olhos.

    O motivo desse sentimento? Não sabia. Só tinha uma leve sensação de que aquele dia seria diferente.

    Queria acreditar.

    Não sentia isso há muito tempo! Era horrível ficar sentada num lugar esperando que algo acontecesse.

    Talvez…

    Já tive essa teoria, mas eu sinto que essa é a minha mente! Tipo… Pensa comigo: temos um mar de sangue e tô num barco com remo. Isso não seriam aquelas metáforas para o subconsciente?

    Meh!

    Assim eu acabo com tudo. Sou pessoa! Sou uma pessoa real. 

    Sentei-me no barco, olhando para todos os horizontes, implorando por algo diferente do sangue. Mas não tinha nada. Nunca tinha nada. Era só um mar, um barco, um remo e uma idiota. 

    Olhei para o líquido viscoso, meu reflexo aparecendo nele. Como poderia tudo isso estar conectado? Talvez meu cabelo?

    Peguei uma mecha, vendo o ruivo do meu couro capilar.

    Era bonito, confesso. Mas tinha algumas mechas brancas que me deixavam confusa. Muito confusa! Como elas haviam aparecido ali? Estava ficando velha?

    Não, não! Eu era nova. Pelo menos no reflexo eu pareço nova. Posso estar cheia de cicatrizes no rosto, mas essa pele é bem cuidada! Não tem uma ruga ou espinha… Hehehe… Vai ver eu sempre fui essa linda. 

    No total, havia contado por volta de cem cortes em todo o meu corpo. Como havia ganhado eles? Nem ideia. Mas estavam lá, marcando minha pele pela eternidade. Pelo menos até meu corpo apodrecer. 

    Sofri? Não posso me dar ao luxo de dizer que sim. Vai ver fui uma guerreira que lutou bravamente ou até mesmo uma general que passou por diversas coisas numa guerra. Só não queria aceitar uma realidade em que fosse uma torturada qualquer. 

    Me deitei mais uma vez, fechando os olhos, torcendo para que dormisse. Mesmo que, naquele lugar, dormir fosse impossível. A energia para sobreviver só aparecia em meu corpo a todo momento, e coisas como essa se tornavam nada mais do que desnecessárias. 

    — Você gosta da sua vida?

    Uma voz.

    Uma voz!

    Abri meus olhos, procurando de onde aquele som havia sido emitido. Poderia ser uma companhia, sabe? Não perderia essa chance por nada! No final, levei um susto enorme!

    Não vinha de longe e nem mesmo de um barco vizinho. A figura estava de pé no meu barco, olhando para mim. Vestia roupas formais e segurava um grande guarda-chuva. 

    De alguma forma, sentia que aquele era diferente. Me era estranho pensar que aquilo era um guarda-chuva. 

    Seus cabelos alaranjados e encaracolados eram a coisa mais marcante em sua aparência, até porque seu rosto era inalcançável. Quero dizer, havia apenas um olho mal desenhado que saía para fora de sua cara, como um holograma!

    Essa palavra é legal. Pouco me importa seu significado no momento…

    Me afastei no susto, indo até a borda do pequeno barco. Aquela merda era mesm–

    Nossa, ela não tem seios! Uma tábua, coitada.

    — O que cê anda comendo, hein!? — perguntei, olhando para seu… o que deveria ser seu rosto.

    — Alguns mundos. 

    Mundos…

    Não saberia dizer se era uma verdade ou apenas brincadeira. Mas, vindo de uma figura que parecia séria, poderia dizer que aquilo era a mais pura verdade.

    — Maneiro — murmurei, cerrando os punhos. O suor descia por meu rosto. — Você… comeu o meu? É por isso que só restou um mar de sangue?

    Ela colocou a mão no queixo, como se pensasse numa resposta muito bem planejada.

    — Quer descobrir?

    — Nem ferrando!

    — Medrosa.

    — Obrigada, sei que sou. — Estufei o peito, orgulhosa de meus atos.

    — Ugh… Eu vim pra versão certa? — resmungou. — Você é… Ah… Consigo ver, não existem memórias nesse corpo, acertei?

    Estalei os dedos, apontando para ela.

    — Bom palpite! Foi em cheio, talvez você devesse virar detetive — disse, enquanto dava uma piscadela. — Mas o que há com isso tudo? Veio me tirar desse lugar maldito?

    — Idiota. 

    Fechou o guarda-chuva, segurando-o pelo cabo e estendendo em minha direção. Pude ver aquele objeto apontando para mim.

    Logo, aquela ponta veio sob minha testa a mando dela.

    — Cuidado pra não morrer, viu? — continuou.


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