Capítulo 66: Meu Corpo Não Responde
Já fazem três dias desde que a Santa pôs os pés no acampamento.
Naquela primeira manhã, Samira havia chegado ao acampamento apenas com seu guarda, Pedro. Aqueles com ferimentos leves, assim que viram sua presença, imploraram imediatamente por sua cura.
Me senti muito desconfortável vendo essa cena, não sei o porquê. Eram como animais… seu comportamento era como o do mais bestial animal.
Imploravam de joelho por uma mísera e pequena atenção da Santa Samira.
Eu… não queria me envolver com isso desde o começo. Mas não tive escolhas.
Quero fugir e viver feliz.
Em seu primeiro dia no acampamento, a Santa ajudou aqueles que tiveram feridas pequenas, como cortes e algumas fraturas leves.
Seu jeito gracioso encantou homens e mulheres. Uma pessoa amada por todos, mesmo que escondesse seu rosto debaixo daquele véu.
Se não fosse por Pedro, seu assistente, ela já estaria a sete palmos no chão de tanta gente em cima dela. Confesso que contei algumas piadas sobre isso para Gaia.
Um dia tranquilo, pelo menos para mim.
Ester havia se mantido ansiosa o dia inteiro, pensando se a Santa, com sua benção, poderia curar Jorge.
Ela ficou falando comigo sobre isso o dia inteiro.
Até a noite chegar.
Aquela Santa chegou no quarto de Jorge, e pelas palavras de Ester: “Não posso curar feridas desse tamanho”. Foi um grande choque para ela. Consigo dizer apenas pelo jeito que me contou.
Foi doloroso de escutar.
Alguns rumores rondaram o acampamento naquela noite. E um deles me chamou a atenção. A Santa que tanto conhecíamos tinha um poder fraco, mas letal para sua vida.
Poder curar pessoas pode parecer algo bom, mas não para ela. Dar parte do seu tempo de vida para curar uma ferida leve, arranhão superficial, entre outros, não vale a pena.
Eu admirava sua coragem, e muito.
Gaia continuou a olhar com desdém para a Santa. Mas, nesse ponto, assumi só ser birra da sua parte.
Naquela noite, Gaia me abraçou até dormir como nunca antes. Dormi mal, claro. Ficou difícil respirar por uma boa parte, e quando fui solta de seus braços, o sol já estava aparecendo no céu.
No segundo dia, a Santa comandou uma equipe de busca na cidade perdida. Foi junto dessa ordem que ela decretou a falência de Erica. Um ponto perdido no mapa, que deveria ser tirado.
Uma grande cavalaria de busca foi imposta, passaram-se desde a manhã até a noite procurando corpos ou qualquer resquício de pessoas na cidade.
Segundo relatos, nada foi encontrado. Nem o Herói, nem corpos de pessoas, nem resquícios de monstros. Uma situação totalmente contrária à que eles esperavam.
As buscas não foram paradas nem por um segundo.
Aquele dia foi um tormento para os familiares.
Acordei de um sonho bom.
Não tive nenhum pesadelo ou alguém me batendo como das outras vezes. Só… coelhos. Um encontro à noite com vários coelhinhos em volta.
Lembro-me ainda da sensação do gramado quando trisquei. O piquenique foi maravilhoso; mesmo que fosse apenas minha imaginação.
Gaia estava ao meu lado, dormindo como uma pedra. Mesmo naquela pequena cama, ela se encolhia para deixar espaço pra mim. Achei fofo de sua parte.
Passei a mão em seus cabelos, tão fofos quanto pelos de animais. Um cheiro de lavanda.
— Ei… Acorda — sussurrei, enquanto dava um beijo em sua bochecha.
Não funcionou.
Tentei mais uma vez.
Novamente, não funcionou.
Sem esperanças, tentei me levantar da cama. Afinal, com aquele sino tocando, indicava a hora do café da manhã.
Mas, antes que concluísse minha ação, Gaia me puxou para perto.
— Bom dia — falou.
— B-bom dia — respondi, tentando retirar meu rosto de perto dela.
Após isso, voltou a dormir instantaneamente.
Foi muito anticlimático da parte dela, confesso que esperei algo mais. Contudo, essa boboca não parecia entender muito bem o clima que estava criando.
Terminei de vestir a parte de cima da roupa e me levantei.
— Humpf. Idiota — murmurei.
Saí da cabana, dando de cara com um dia pacífico comparado aos outros. Todos aqueles com feridas leves já haviam se recuperado, enquanto os mais graves já estavam melhorando conforme medidas médicas.
Jorge era um deles.
Parecia ter reagido bem ao tratamento, o que aliviou ainda mais o coração de Ester. Acabei indo procurar ela, afinal, queria ver se seu estado mental havia melhorado.
Chegando mais perto de sua barraca, levantei o lençol.
Acabei engolindo seco com a cena que vi. Foi vergonhoso.
— Desculpe! — gritei, saindo lentamente da cabana.
Apenas quando gritei, Ester percebeu minha presença, parando quase de imediato seu carinho ao rosto de Jorge.
Por que eu agi assim? Já vi eles se beijarem outras vezes… é normal. É normal.
— Espera! — disse Ester. — Você pode ficar, Seven.
— Pra ver isso? Eu acho que não é legal da minha parte.
— Você é realmente uma graça — disse Jorge. — Ester vive me falando de você… Tô até começando a ficar com ciúmes.
— Ownt… Vem cá, amor. — Ester deu outro beijo.
— É… vim pra checar se ela estava bem. Mas agora percebo o quão melhor ela está. — Me aproximei. — Como está a perna, Jorge?
— Bem… doendo, como sempre. — Sentou-se na cama. — Aquelas ervas ajudaram bastante na cicatrização. O risco dessa belezura aqui piorar é bem baixo.
— Acha que vai ser o suficiente para voltar a comandar?
Ele se assustou imediatamente com a pergunta, virando-se para Ester.
— Contou pra ela? — disse Jorge.
— Contei, óbvio. Fiquei encurralada com a pergunta da namorada dela — respondeu Ester. — Desculpa, amor. — Ela abraçou as costas dele, apoiando sua cabeça.
Jorge suspirou.
— Tudo bem, não é nada tão grave. — Jorge acariciou sua cabeça.
Tossi.
— Ainda estou aqui, viu?
Ester sorriu.
Conversamos por mais algum tempo. Jorge tinha também um certo amor por livros, o que acabou facilitando a conversa quando contei sobre uma saga que li.
Pelo visto, o autor não era tão legal assim, o que me deixou muito decepcionada. Prometi que nunca mais leria nada dele.
Mas, em troca, acabei recebendo outra recomendação de livros; um de mitologia.
Tinha uma sinopse bastante interessante pelo que Jorge me contou, o que me chamou bastante atenção.
Agora que sabia de tudo, Jorge me contou algumas aventuras que teve com Ester. Desde rodar todo o continente só de carroça até prender um grande esquema de corrupção acontecendo em cidades do oeste.
A conversa durou bastante tempo, até ser interrompida por um guarda que entrou na tenda.
Reconhecia ele.
Era o mesmo que dias atrás me deixou uma carta…
Carta.
Carta?
Carta!
Aquela carta da Santa!
Meu Deus, eu me esqueci totalmente dela!
E agora!?
— Seven — vociferou o guarda —, a Santa lhe chama.
Jorge e Ester me olharam preocupados. Tinha alguns lados meus que eles não conheciam também; não era só eles que escondiam algumas coisas.
Ter esse chamado tão direto foi chocante.
Levaria uma bronca? Eu não li a carta que ela tinha mandado. Uma carta que era importante.
— Ah… Onde ela estaria agora?
— Me siga. — Seu modo direto não me agradava.
Era como se ele não tivesse respeito por quem estivesse em sua frente.
Fui até ele, dando uma última olhada para Jorge e Ester; que continuavam com o mesmo olhar.
Deixei um sorriso como resposta, uma forma de dizer: está tudo bem.
O guarda cerrou seus punhos, evidenciando sua raiva. Mas não demonstrou nada além desse ato e de sua escolha de palavras.
Ele me guiou lentamente até o centro, onde se encontrava a grande fogueira. Logo após, deixou o local para o lado.
Sentando-se em um dos troncos posicionados, se encontrava a Santa Samira e, ao seu lado, Pedro. Ele não estava com uma cara tão boa assim.
Eu definitivamente iria tomar uma bronca.
— Seven, você por acaso leu a carta? — perguntou Pedro.
— Hmm… talvez? — respondi.
— Então você sabe o porquê de estarmos fazendo isso. Não temos escolha.
Pedro falava com temor. Algo que quase passou despercebido. Era algo sério. Algo sério para um cara como ele estar com medo.
Samira continuava imóvel, deixando apenas seu assistente falar por ela. Mesmo que não mostrasse, ainda era possível perceber seu olhar por debaixo daquele véu.
— Não… espera! Assim você está me assustando — Dei alguns passos para trás.
O que estava acontecendo? Era apenas uma bronca, né?
— Ajoelhe-se! — bradou Pedro.
Suas palavras foram como ordens.
Meu corpo instintivamente seguiu o que Pedro tinha falado, ajoelhando-me naquele mesmo instante. Perdi o controle de meus membros.
Aterrorizante.
Não gostava nem um pouco daquilo. A sensação de não conseguir se mexer era agoniante.
Uma multidão de pessoas foi se formando para ver o espetáculo… Sentia o constrangimento, a vergonha e dentre outros sentimentos que me deixavam confusa.
Pedro pegou um pergaminho e logo o abriu. Tinha um selo de coroa, quase como um decreto real que tinha visto em livros.
— Seven Fortune, anteriormente ligada à igreja de Lótus, está sendo desvinculada de seu cargo como Herói.
Ouvia murmúrios vindo da plateia.
Murmúrios que não eram nada legais.
“Ela era um Herói?”
“Quer dizer então que não fez nada para ajudar a cidade? Eu só a vi naquela barraca!”
“Vergonha…”
Eu não gostava.
Não gostava mesmo.
Eu quero fugir, mas meu corpo não responde. Quero chorar, mas meus olhos não se importam com meu coração.
— Dadas as acusações de: falsificar seus dados para se tornar um Herói, divulgar informações confidenciais e conspirar contra a igreja, o réu não terá direito a nenhum julgamento; sendo condenado imediatamente para a prisão perpétua.
“Meu Deus! Ela é um monstro!”
“Não olhe, filha. Isso vai ser ruim para os seus olhos…”
“Será que foi ela a destruidora da cidade?”
Mais murmúrios.
Eu… senti meu mundo desabar naquele momento.
“Não fiz nada disso!” Queria gritar.
Mas minha boca não abria.
Eu não fiz nada e nem mesmo queria me envolver com isso. Por que essas coisas só acontecem comigo?
Não enxergava Gaia.
Foi… um alívio, de certa forma. Não queria que ela me visse nesse estado deplorável.
Será que ela acreditaria em mim se eu dissesse que sou inocente?
Não…
Não sei.
Os guardas se aproximavam lentamente de mim, apontando suas lanças.
Queria descontar minha raiva e frustração, destruindo tudo que estivesse à minha frente. Mas por quê? Não ia levar a nada.
Eu só iria me tornar um monstro, um monstro que eles estariam esperando eu me tornar.
Pedro me olhava com pena, como se ele não quisesse fazer isso. Até que, em certo ponto, desviou seus olhos.
Santa, por outro lado, demonstrava um sorriso quase imperceptível em sua cara.
Assim que notei, minha frustração só aumentou cada vez mais. Na minha cabeça, ela tinha sido a culpada por tudo; pelo menos naquele momento.
Eu estou cansada.
Sentia as correntes sendo colocadas em meu corpo. Correntes essas que não eram feitas de ferro, impedindo qualquer tentativa de escape minha.
Aprisionaram meu pescoço com uma grande coleira e meu braço em minhas costas. Estavam me tratando como um animal.
Um dos guardas chegou mais perto do centro, carregando consigo o que parecia ser um grande saco.
Ele jogou ao chão, deixando cair o que estava dentro dele.
Meu rosto empalideceu assim que vi.
Um braço de boneca, mas não de qualquer uma. Eu reconhecia aquele braço.
Era de Gaia.
Um misto muito maior de emoções tinha começado a rodar em minha mente.
Sentia dificuldade de respirar, pensando que o corpo de Gaia poderia estar dentro daquele saco. Um corpo que não se mexia.
Mas ela não tá morta, né?
Né?
A ordem havia sido retirada e eu consegui mover meu corpo novamente.
A primeira coisa que fiz foi correr para o saco, em meio a toda aquela comoção. Os guardas logo tentaram me impedir e tiveram sucesso.
Presa por correntes e ameaçada por armas. Tudo que pude fazer naquele momento foi… chorar.
As lágrimas desciam para a neve sem parar.
Eu não conseguia gritar, mesmo que conseguisse agora. Meu corpo só me impedia.
Apenas chorar.
Apenas pude chorar.
Consegui chegar perto, mas não o suficiente para olhar dentro daquele saco. Eu… não aguentei aquele silêncio.
Soluços e mais soluços.
Apenas uma grande multidão me vaiando incessantemente.
E, dentre eles, Ester, que me olhava com desdém.
Meu mundo tinha acabado.
Havia sido amaldiçoada? Por que?
Por favor… se for para não ter ela aqui, me leve também.

Nos vemos no próximo volume!
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