Será que fiz a escolha certa deixando Lunna com ele? Por Unitas, melhor eu focar em outra coisa…

    Eram os pensamentos de Aspen de frente para a porta. Enfiou a chave de prata na fechadura e a girou ansioso, o suor escorrendo pela bochecha.

    Consegui!

    O quarto à frente era aberto pela frágil luz, revelando móveis gastados e tapeçarias desbotadas que adornavam as paredes. Uma lareira apagada ficava no centro, cercada por uma poltrona empoeirada e uma mesa coberta de pergaminhos e livros empilhados.

    Numa das prateleiras de uma estante, envoltas por faixas de tecido, Aspen percebeu algo que atraiu sua atenção. Eram braçadeiras alvas como a própria neve, enfeitadas com detalhes delicados que passavam uma sensação misteriosa. Ao lado das braçadeiras, repousavam ombreiras negras e um par de adagas. 

    São os pertences da Aurora!

    À medida que o meio-elfo explorava, sua vista capturou o brilho de frascos em uma prateleira no fundo do quarto. Ao se aproximar, enxergou várias poções de cor azulada. Era a esperança que buscava para aliviar o mal-estar de sua irmã.

    Essas poções valem dezenas de moedas de prata, isso com certeza vai ajudar!

    A esperança foi interrompida quando avistou Edgard, o guerreiro, que repousava no meio do quarto em uma cadeira. O guerreiro de cabelos desgrenhados e com uma cicatriz de corte no meio do rosto dormia e roncava baixinho, os pés apoiados sobre a mesa enquanto as mãos estavam cruzadas atrás de sua cabeça. Sua espada estava embainhada nas costas.

    Aspen hesitou por um momento, ponderando sobre como contornar o obstáculo sem despertar o homem adormecido.

    Devo chamar o Hazan? Não… Não posso deixar ele fazer tudo sozinho!

    Engoliu o seco e deu um passo à frente. O piso de madeira rangeu, e Aspen parou de andar, assustado, olhando o guerreiro. Ele continuava roncando. Criando um pouco mais de confiança, voltou a se aproximar, finalmente podendo ver as poções de perto.

    Tá muito alto! Talvez se eu ficar na ponta dos pés…

    Suas mãos lutaram para alcançar o frasco, tanto que acabaram esbarrando no recipiente, cujo caiu em direção ao chão.

    Aspen agarrou o frasco antes de tocar o piso.

    Ufa… Quase virei história para contar.

    Andou na direção da porta sem fazer muito barulho. Então, virou de costas, olhando os pertences da Aurora. Voltou e andou até eles, observando-os de perto. Colocou a poção no chão, e atraído pelo mistério, tirou a adaga da bainha. Viu o reflexo de seu rosto na lâmina azulada.

    Tão pesada e fria… O que eu faço? Aurora salvou minha vida uma vez, não posso simplesmente deixar essas coisas aqui…

    Olhou de relance para Edgard, e ele ainda parecia estar dormindo.

     Melhor eu avisar o Hazan!

    Guardou a adaga de volta na estante e pegou a poção.

    — Indo para algum lugar?

    Aspen parou. A voz grossa de Edgard o fez tremer e suar frio. O garoto virou de frente, notando o olhar penetrante sobre ele. O guerreiro ficou de pé.

    Ele é enorme…! E essa pressão, eu não consigo gritar…! 

    Sentindo falta de ar e as mãos tremendo, o garoto não sabia o que fazer. Um pujante avançado estava muito além de suas capacidades, qualquer movimento e seria morto na mesma hora. Foi a primeira vez que sentiu a morte tão próxima.

    Preciso fugir!

    De maneira involuntária, lembrou dos momentos em que Hazan encarou todos os problemas de frente. De início, sentiu que aquilo tudo era desnecessário, que o rapaz só estava sendo intrometido. Mas Hazan assumiu a responsabilidade de suas palavras e ações, fazendo o que deveria ser feito. Seus feitos de coragem tornaram aquela ideia patética.

    Isso é vergonhoso… Sou um péssimo irmão!

    Lágrimas escorreram, e o garoto cerrou os dentes. Jogou a poção na direção daquele homem, cerrou a mão envolta da espada e atacou, mesmo que estivesse dominado pelo medo.

    Edgard evitou a poção com facilidade, agarrou o pulso do garoto que segurava a espada e atingiu um tapa em seu queixo, deixando-o desacordado.

    Senti a presença da dragoniana e desse bastardo, mas com o caos que está lá fora, eles não podem ter chegado aqui sozinhos. Isso significa…

    Um sorriso adornou seus lábios. Ele esfregou a barba, agarrou os cabelos de Aspen com uma mão e a espada da criança com a outra.

    Acho que vou me divertir bastante.


    Um sorriso sádico contornava seus lábios, Edgard avançou em passadas rápidas que o levaram à proximidade de Hazan em um piscar de olhos. Seu punho cortou o ar, mirando o rosto do adversário pardo, que escapou apenas para ser atingido em cheio no estômago por outro golpe.

    Bam!

    Cambaleando com sangue na garganta, o rosto de Hazan foi empurrado contra o armário, que cedeu em um estampido ensurdecedor, reduzido a escombros.

    Os sentidos do jovem rodopiavam em meio à tontura, mas o homem não deu trégua. Com vigor, agarrou o jovem pelo pescoço, encarando-o com uma sobrancelha arqueada em desafio.

    — Já acabou? Que decepcionante. Achei que vocês, tahtorianos, eram mais do que isso — falou o espadachim, a voz desanimada.

    As palavras do agressor soavam distantes, perdidas em meio à sua própria luta interna contra a inconsciência.

    Sangue escorria pela testa, colorindo sua visão com tons de vermelho. Aos poucos, a visão embaçada começou a clarear, e seu foco retornou para Lunna. Abraçando seu irmão inconsciente, a vista estava crispada e cheia de lágrimas.

    Não posso desmaiar… Agora não…

    Hazan ergueu a mão, ainda trêmula, e agarrou o pulso de Edgard. Um brilho determinado reluziu em seus olhos, se impondo diante da adversidade que o cercava. Exibindo um sorriso desdenhoso, Edgard respondeu à ação do lutador, jogando novamente a sua cabeça contra os restos do armário.

    Bam! Crack!


    A escuridão da madrugada envolveu Aspen com um peso desconfortável. O garoto se remexia no chão, o rosto franzido, gotas de suor deslizando pela testa. No sonho, o cheiro da velha sopa de carne que sua mãe fazia estava presente, mas com um odor diferente, esquisito. As paredes do orfanato estavam menores, sufocantes.

    Aspen olhou ao redor, os olhos vacilando entre rostos familiares. Sua mãe estava ali, com as mãos estendidas, mas a ternura esperada em seu toque nunca veio. Com o rosto distorcido, só os lábios se moveram.

    — Você a deixou morrer, Aspen. — O tom calmo e habitual dos sermões foram substituídos por uma voz severa.

    Atrás dela, os irmãos surgiram, suas expressões trazendo sombras de julgamento. Risadas nervosas ecoaram, mas não eram mais deles. As vozes se distorceram, transformando-se em algo grotesco, animalesco. Rachaduras se espalharam por suas peles, que agora assumiam tons cinzentos e escamosos. Garras irromperam de suas mãos.

    — Por que não obedeceu à mamãe? É por sua causa que ela morreu!

    Aspen tentou recuar, mas estava preso. Suas pernas não obedeciam. As sombras avançaram, engolindo-o. Um grito preso em sua garganta finalmente explodiu – e ele despertou.

    A respiração veio curta e descompassada. Os olhos varreram o quarto, pousando no canto da cela. Ainda tremendo, sentou e observou sua irmã. Felizmente, ela estava bem.

    Olhou ao redor, e assim como o pesadelo que insistia em se repetir toda noite, um enigma se revelava diante de sua face atormentada: Hazan, em pé no chão árido da prisão, desferindo socos e chutes no vazio, como se estivesse lutando com alguém invisível. 

    — Um pesadelo de novo? — indagou o lutador, mantendo a concentração na sequência de golpes.

    Aspen adiou uma pergunta por dois longos dias, e usou aquele momento como uma oportunidade para trocar de assunto e sanar sua dúvida.

    — Afinal, o que é isso que tem feito com tanta intensidade? — perguntou, esfregando a vista.

    O rapaz parou os golpes e alongou os músculos, o suor escorrendo pelo corpo. — É um treino. Estou me preparando — respondeu, de forma concisa e sombria.

    — Treino? Acredita que derrotará os guardas fazendo isso?

    Ele fez que não.

    — Meu alvo é o cara que decepou a cabeça daquele monstro com uma espada, caso a gente se encontre. Como era mesmo o nome dele? Hã…

    — Edgard… Um pujante avançado, para seu conhecimento — completou Aspen.

    Espero que você não o provoque que nem da última vez…

    — Isso mesmo, Eduardo. — Franziu as sobrancelhas e deu alguns socos em um oponente imaginário. — Vou acabar com ele!

    Uma veia pulsou na bochecha do meio-elfo, desconfiado de que o erro fosse proposital. 

    — É “Edgard”, e por que está tão confiante?

    Um sorriso confiante curvou os lábios de Hazan. Estendeu o punho cerrado na direção do garoto.

    — Por que eu não estaria? Estou trabalhando duro. Além disso, já enfrentei aquele sujeito dezenas de vezes.

    Dezenas de vezes? Pelos deuses… Não me diga que ele é maluco?

    — Eu só os vi lutar uma vez… — comentou, num tom de deboche, desviando o olhar.

    — Bom, tecnicamente, sim. — Hazan sorriu, levando o indicador até o meio da testa. — Mas aqui dentro, lutei dezenas, não, centenas de vezes contra ele.

    Aspen coçou a cabeça, buscando compreender o raciocínio peculiar do rapaz.

    — E quantas vezes venceu?

    Dando de ombros, a resposta veio, desoladora: — Nenhuma.

    Desapontado, Aspen fez uma careta.

    Um verdadeiro lunático!

    — Mas estou quase lá. — Sentou no chão, cruzando as pernas em pose de meditação. — Agora vá dormir e não me atrapalhe, estou pensando em como vou surrar o Eduardo da próxima vez.

    — Ugh, tá! — bufou o garoto, revirando os olhos.

    Aspen envolveu os braços ao redor das pernas, escondendo metade do rosto nas dobras dos membros. — Hazan…?

    — Diz aí.

    Parou por um momento, ponderando se deveria dizer aquilo. Reuniu um pouco de coragem e abriu a boca:

    — Se, por acaso, tiver que escolher entre salvar a mim e a minha irmã, por favor, salve el-

    Hazan sequer o encarou. — Não diga mais nada. Vou proteger os dois.

    — Tá…


    Edgard caminhou na direção de Lunna, uma aura arrogante pairando ao seu redor. Apoiou a mão no ombro e estalou o pescoço. — Foi mais fácil do que eu esperava, uma pena. — Sua mão estendida em direção à garota fez com que ela se encolhesse de medo.

    Um súbito puxão violento em seu capuz de malha o lançou em direção à mesa do escritório. Suas costas atingiram a superfície dura, derrubando as garrafas de vinho no chão.

    Aturdido, fitou o tapete de urso que bloqueou sua visão de repente, servindo como uma distração para o impacto violento que atingiria seu rosto logo em seguida.

    Bam!

    Perdeu o equilíbrio devido à força do soco, rolando sobre a mesa e batendo com as costas no solo.

    Edgard retirou o tapete, levantou e limpou o sangue que escorria de seu nariz, olhando à frente. Arregalou a vista ao ver o pardo de pé, servindo como um muro de proteção para Aspen e Lunna. Respiração ofegante, sangue escorrendo de sua testa, mas os punhos estavam cerrados e próximos ao rosto, prontos para lutar.

    — Resistente, hein? Essa postura é de Tahtoa, sua terra natal? — provocou ele.

    Hazan passou a língua entre os dentes, virou o rosto e cuspiu uma mistura de sangue e saliva. — Fala pra caralho… Só cai dentro de uma vez, seu merda!

    — Certo, vamos ver quanto tempo você aguenta agora! — anunciou Edgard, avançando com uma sequência rápida e pesada de socos.

    Edgard lançou o braço em um soco reto, buscando atingir o alvo com precisão letal. Hazan movimentou a cabeça e contra atacou com um chute certeiro no flanco exposto do pujante. Não surtiu muito efeito.

    O espadachim prosseguiu, outro soco na direção de sua têmpora. O lutador agachou, reflexos afiados, o punho passando por seus cabelos, e os músculos da coxa contraídos para o que viria a seguir: um uppercut que encontrou o queixo do guerreiro.

    Bam!

    A cabeça do agressor foi arremessada para trás, e por um breve instante, o jovem o enxergou cambaleando, torcendo para que aquele golpe o derrubasse. 

    Indo contra suas expectativas, Edgard se recuperou antes mesmo que tivesse a chance de descansar, dando um passo atrás para recobrar o equilíbrio e retornando ainda mais sedento por sangue. Um sorriso traiçoeiro pairava em seu rosto.

    Dessa vez, o rapaz não enxergou oportunidades para contra-atacar, deixando-o sem alternativas a não ser evitar os golpes letais.

    Ele está mais rápido, se um desses me acertar, eu tô fodido!

    O foco voltado para a própria sobrevivência não permitiu que enxergasse além. Suas costas encostaram na mesa do escritório, e não havia escapatória para as laterais. O golpe de Edgard não parou.

    Crack!

    Hazan apoiou a mão sobre o objeto e saltou para trás no último segundo. A mão do guerreiro ficou presa entre os destroços da mesa que agora estava destruída. Diante da rara oportunidade, o jovem pegou o escudo de madeira na lateral da mesa quebrada e o bateu contra o homem, destruindo-o no processo.

    Bam! Crack!

    Edgard recuou, atordoado, e o pardo avançou. Apoiou o pé na cadeira e saltou com uma joelhada brutal, mas não esperava que o guerreiro fosse capaz de se defender a tempo com sua mão robusta. Edgard encarou o rapaz, os globos oculares brilhando em um azul incandescente e o punho cerrado.

    Hazan ergueu as sobrancelhas ao enxergar o vulto do ataque na direção de seu estômago.

    BAM!

    Edgard rotacionou o punho e o corpo, jogando Hazan do lado oposto à janela. O estrondo da impactante colisão ecoou por todos os cantos daquele andar. Arremessado sem piedade até o final da sala, seu corpo destruiu e atravessou a parede de madeira e argila, colidindo contra a outra parede do corredor, agora fora do escritório. 

    Escoriações sangrentas marcaram suas costas. Dores agudas pulsavam no âmago de seu estômago e peitoral. Pouco a pouco, essa sensação se espalhou pelo corpo, trazendo náusea e obscurecendo sua visão, subindo pela garganta.

    Courgh!

    Sangue escapou de sua boca. Tentou respirar, mas foi em vão.

    Seu estômago parecia pesar a cada pulsação dolorosa. Concentrou-se na dor, em cada sensação, de onde vinha, o quanto doía e o quanto queria que parasse. Seu corpo queria tremer, mas resistiu.

    Edgard empinou o nariz. — No fim, histórias são apenas histórias, e a fama da sua raça não passa de exageros.

    Eu não vi esse golpe vindo… Minha técnica é melhor que a dele, mas ele me supera no resto… Preciso diminuir essa diferença.

    Hazan relaxou os punhos, demonstrou um sorriso confiante e encarou Edgard com um brilho no olhar. — Não está esquecendo de nada?

    Confuso, Edgard parou, arregalou os olhos e verificou os bolsos da calça. O cordão não estava lá.

    Esse garoto… Ele fez de novo. O que é essa estranha fixação com esse cordão?

    Com um sorriso debochado, ele exibiu o cordão em sua posse. Apoiou as mãos nos joelhos e ficou de pé. Limpou o sangue da boca e recolocou o cordão em seu pescoço.

    — Agora sim… Preparado, Eduardo? — Estalou o pescoço, sorrindo. — Pronto pra surra da sua vida?

    — Eduardo…? Há! Há! Seu maldito analfabeto! Vamos, me surpreenda, garoto! — Edgard abriu os braços, aceitando a provocação de Hazan.

    Já analisei seu estilo de luta, é hora de pôr aquilo em prática.

    Hazan aproximou os punhos do rosto, protegendo cabeça e têmporas, os cotovelos colados nos flancos. Encolhendo a postura, adotou uma forma defensiva, base firme no chão, olhos fixos em Edgard. Mantendo-se em movimento no mesmo lugar, estava se preparando para dar o melhor de si.

    Não sei o que aconteceu com Aspen, e Lunna está sendo obrigada a ver toda essa violência… Preciso acabar com isso agora. Vou dar tudo de mim!

    Hazan avançou com passadas firmes, encurtando a distância. Girou a cintura, transferindo o peso para o ombro e, por fim, para o braço esquerdo.

    Vamos começar com um cruzado!

    Edgard estava confiante em enfrentar os ataques de frente, pois nenhum deles havia causado um dano considerável.

    [Cruzado de Esquerda!]

    Até aquele momento.

    Um cruzado é um golpe lateral, baseado na potência e técnica. Quanto melhor o domínio das técnicas básicas do boxe, mais potentes são os golpes. O impacto preciso no fígado causou uma dor como nunca naquela luta.

    Isso dói!

    Edgard recuou, pondo a mão na área afetada, e Hazan ganhou mais confiança para continuar. Quando Edgard recuou um passo, Hazan antecipou, ficando próximo novamente, desferindo outro cruzado devastador.

    Que rápido! Ele está planejando acertar o meu flanco oposto!

    Edgard abaixou o punho livre, protegendo as costelas com o cotovelo.

    [Cruzado de Direita!]

    O ataque atingiu a têmpora, e a contundência turvou sua vista.

    Um tapete terminou de tapar sua visão, e quando ele o arrancou, Hazan havia desaparecido. O espadachim olhou em volta, encontrando Lunna encarando-o assustada. Mas não era por causa dele. Uma sombra enorme escureceu parte do escritório. Edgard virou-se, os dentes cerrados, colocando as mãos na frente do rosto para se defender.

    SCRASH!

    Pedaços de madeira, vidro e vinho voaram quando Hazan balançou o armário contra o guarda-costas. Edgard desabou no chão.

    Largou o armário, ofegante, e o encarou. O homem estava apagado.

    Funcionou… Peek-a-boo nunca falha! Obrigado, Mike Tyson!

    Hazan correu até os irmãos, ajoelhando-se perto deles.

    — Como estão vocês? Estão bem, não estão?

    Piscando várias vezes, ainda confusa, Lunna encontrou os olhos alaranjados de Hazan. Olhos repletos de preocupação. — S-Sim, estamos bem, n-não se preocupe…

    Aspen forçou a vista. — A-ai… Minha boca está doendo, que coisa…

    Um sorriso iluminou os lábios dos dois assim que o meio-elfo recobrou a consciência. — Eu sabia que você era durão, moleque!

    Lunna o abraçou ainda mais forte. — Meu orelhudo…! Não me assuste assim, poxa!

    — Deixe de ser tão grudenta, estou bem! — retrucou o elfo, tentando se afastar de sua irmã enquanto fazia uma careta. Não teve sucesso; a garota era particularmente teimosa.

    Obrigado a aceitar o carinho, ele observou Hazan, recordando-se de uma informação crucial. — Ah! O Edgard! Ele…!

    Olhou para o canto, onde o guerreiro estava inconsciente. — Você venceu ele… — murmurou, impressionado.

    — Dei meu jeito — respondeu, dando de ombros. — Precisamos sair daqui, não é nada seguro.

    Lunna voltou a tossir.

    — Encontrei poções no quarto ao lado, podemos curar Lunna com elas!

    — Essa é a notícia que eu precisava! — disse animado, ficando de pé.

    Ele estendeu a mão para ambos os irmãos. Eles se entreolharam, sorriram e seguraram a mão dele, levantando-se.

    Quando estavam prestes a sair, Lunna soltou um grito assustado.

    Entre os escombros, Edgard apoiou a mão no joelho e se ergueu, limpando a sujeira das roupas. — Parece que eu te subestimei.

    Hazan soltou um suspiro.

    Desgraçado duro na queda.

    Encarando-o por cima dos ombros, Hazan estava longe de ter descansado o suficiente.

    Não havia mais resquícios de arrogância na expressão do pujante. Apenas um olhar penetrante e brilhante na cor azul.

    — Fui reduzido a um estado lamentável, caindo várias vezes nos seus truques. Seria vergonhoso se eu não te mostrasse algo a altura da sua persistência, portanto, observe… — Desembainhou a espada, arregalando os olhos. — Isso é… Indução de Aura.

    O ar vibrou.

    Aspen se colocou na frente de Lunna, e eles cerraram os dentes ao tentarem, de alguma forma, resistir ao peso que estava sob seus ombros. 

    Brilhos estranhos, energias latentes, envolveram a lâmina da espada por completo, formando uma camada espessa de perigo. Uma Aura azul envolveu toda a extensão da lâmina, aumentando um pouco de seu alcance.

    Num piscar de olhos, Edgard desapareceu, emergindo diante de Hazan com a lâmina erguida sobre sua cabeça.

    As crianças estão atrás de mim, não posso esquivar!

    De costas, Hazan girou com a rapidez que seus instintos permitiram. Apesar da confiança em sua resistência, a mera emanação daquela energia o fez vacilar.

    Se aquela lâmina o atingisse, poderia ser seu fim.

    Por um momento, o tempo pareceu desacelerar. A espada descia em direção à sua cabeça, a Aura reverberava pelo ar, e a adrenalina fluía através de suas veias.

    Hazan absorveu cada sensação.

    Ting!

    No instante em que Hazan interceptou a lâmina com as palmas das mãos pela parte plana da espada, o metal ressoou num som grave, fazendo o solo tremer e as paredes de madeira estremecerem. Uma onda de vento agitou seus cabelos, enquanto as veias de seus braços saltavam em resposta à imensa força que empregava.

    A sensação da Aura contra sua pele era avassaladora, uma fricção contínua que agredia suas mãos, penetrando a pele, nervos e músculos, causando uma dor aguda. Conforme ele persistia, tudo começava a doer.

    As mãos latejavam, a cabeça pulsava e o peito ardia. A agonia se tornou desorientadora, afetando seu discernimento. Por um breve momento, considerou a tentação de ouvir seu corpo, implorando para que desistisse e se entregasse ao chão. 

    Em contrapartida, havia inúmeras razões para resistir. Mas lutar contra a dor tornava-se cada vez mais desafiador.

    Ele bloqueou meu ataque! Meu ataque com Aura!

    Edgard intensificou a pressão da Aura, enviando ondas de dor latejante e aguda que se espalharam por todo o corpo do rapaz. Hazan estava gradativamente perdendo a batalha de força, seus braços cedendo sob a pressão constante.

    Aura roçava a ponta de seu nariz, a lâmina da espada a meros centímetros de dividir seu rosto ao meio.

    Um círculo mágico azulado aparecendo bem entre os dois, um espinho de gelo emergiu, atingindo o cabo da espada de Edgard de baixo para cima, abrindo a postura do guerreiro. 

    Hazan sentiu uma mão se apoiando em seu ombro, e pulando por cima dele, estava Aurora, que em um giro violento, atingiu o estômago de Edgard que o fez derrapar.

    Ela estava vestida com as roupas que roubou de algum guarda, e logo encarou o rapaz, transmitindo um ar de superioridade. 

    — Eu não disse para tomar cuidado com as costas? 

    Perplexo, Hazan não se deixou abalar, balançou a cabeça e retomou o foco.

    — Você aqui? E ao invés de me matar, salva minha vida?

    — Não seja tolo — retrucou, dando de ombros. — Estamos quites agora.

    — Vocês continuam rastejando até mim como malditos ratos… — A expressão do guerreiro, acompanhada pelo seu tom de voz, estavam impregnados de um ódio avassalador

    Aurora pisou com o pé dominante no piso, buscando relaxar a dor na articulação.

    Usei toda a minha força nesse chute, e foi o mesmo que atingir uma parede. 

    Hazan encarou os irmãos, ambos encolhidos e assustados.

    Preciso atrair esse cara para outro lugar, não dá para lutar numa destruída desse jeito, muito menos com esses dois aqui.

    O lutador encarou Aurora, que o fitou de volta. Voltou a olhar para os irmãos com um gesto sutil da cabeça, e entendendo o sinal, ela acenou.

    Um gesto desafiador, o indicador chamando o guerreiro, ele provocou: — Qual é, Eduardo! Traz seu traseiro até aqui para que eu possa chutá-lo de uma vez, tô cansado de prolongar essa luta! — declarou ele, fazendo uma careta com a língua, antes de correr em direção ao corredor.

    Era evidente para o pujante que aquilo se tratava de uma provocação, mas ele aceitou o desafio com um sorriso sombrio, perseguindo o jovem em um avanço estrondoso.

    — A-Aurora… — A voz de Lunna estava rouca. — Você voltou por nós?

    A polariana aproximou-se da parede do escritório, apoiando a palma da mão. As paredes, já fragilizadas pela luta brutal entre Hazan e Edgard, estavam praticamente cedendo. Aurora pressionou a palma contra a parede, desencadeando um empurrão.

    A estrutura desmoronou, revelando o cômodo ao lado. Aurora ignorou Lunna, adentrando a sala e recuperando seus pertences. Vestiu as braçadeiras, observando o símbolo de floco de neve piscando em azul na costa da mão. Colocou as adagas no cinto, apanhou duas poções das estantes e retornou ao escritório de William.

    — Voltei por mim mesma — respondeu a polariana. Sem encarar os irmãos nos olhos, jogou as poções para eles. — Bebam, e fiquem aqui! Se perseguirem aquele idiota, só serão um estorvo.

    — E-e o que você vai fazer? — perguntou Aspen, relutante.

    Aurora andou até a porta de saída. — Vou acertar as contas com um certo alguém.


    A intensa batalha continuou a desdobrar-se ao longo do corredor, os golpes afiados de Edgard, rápidos como relâmpagos, desconsiderando por completo as barreiras do ambiente e cortando tudo com extrema destreza. 

    O fogo já havia atingido as paredes e o chão, devorando aos poucos toda a estrutura da torre. O cheiro de fumaça invadia seu nariz.

    Hazan empregava os auge de seus reflexos para esquivar-se dos ataques, mas a maioria o encontrava, resultando em cortes superficiais.

    Pensei que esse corredor estreito limitaria sua movimentação, mas essa lâmina corta tudo como se fosse manteiga!

    SWIN! SWIN! SWIN!

    Linhas formadas por cortes precisos se espalharam pelas paredes, indicando que o alcance de Edgard era ainda maior. 

    Esse sujeito parou de brincar! Não era pra ele me capturar vivo!? Se eu não esquivar, vou acabar morto!

    Ao alcançar o final do corredor, deparou-se com uma escadaria de ferro em espiral e a subiu, fazendo ruídos de passos metálicos. 

    Ao se deparar com uma porta, sem tempo para verificar se estava aberta, ele a destroçou com um chute, abrindo caminho.

    Tosses expressaram a sua surpresa ao ser cumprimentado por um espetáculo de fumaça que lhe dava as boas-vindas. Tomado por fogo, estava um quarto espaçoso.

    Um telescópio majestoso, erguido em madeira e bronze, dominava o centro do espaço, sua lente fixa em uma pequena abertura no teto. A madeira, tão presente na construção, facilitava a voracidade das chamas, que devoravam estantes repletas de livros e lampiões, ao lado de janelas de vidro, criando uma luminosidade sombria que se entrelaçava com o crepitar das labaredas.

    A atenção de Hazan foi roubada por estantes repletas de garrafas de vinho, uma tentação em meio ao caos que se desenrolava. Uma ideia surgiu. Embora perigosa, representava sua única opção.

    Tá no inferno, abraça o capeta!

    Pegou e abriu uma das garrafas, dando um grande gole, acabando com toda a bebida de uma só vez. Seus sentidos ficaram anestesiados, a garganta formigando.

    Meu corpo inteiro dói, e ele pode entrar por aquela porta a qualquer momento… Preciso focar! Preciso… transformar esse lugar no meu ringue.

    Derrubou livros, quadros, qualquer coisa que alimentasse o fogo voraz. Garrafas de vinho foram abertas e seu conteúdo lançado às chamas. Queria tornar daquele lugar um lar para o fogo. 

    Não demorou para que Edgard, envolto em uma cortina de fumaça, ingressasse na sala. Seus olhos vasculharam o caos, absorvendo cada detalhe da desordem flamejante.

    Esse rapaz… Tenho certeza de que ele não estava se segurando da primeira vez que lutamos. Seus ataques tinham alguma técnica, mas não passava disso. Um físico inferior e um estilo de luta incapaz de superar essa disparidade. Mas agora, ele está totalmente diferente. Isso significa…

    Um sorriso se esboçou nos lábios de Edgard, surpreendendo até mesmo a si mesmo com a conclusão que alcançara.

    — Sua evolução nesse curto período é notável. Retiro o que disse sobre sua raça. — Guardou a espada na bainha e começou a bater palmas. — Se não fosse tão desobediente, seu futuro estaria garantido. Proteger o herdeiro de uma família nobre não é tão ruim quanto você pensa. — Sua voz adotou um tom ameaçador. — Se renda agora e eu esqueço o que aconteceu. Não é um acordo ruim, não acha?

    Silêncio ecoou na sala, provocando um sorriso sarcástico nos lábios de Hazan.

    — Pft… — Um riso escapou.

    Os olhos de Edgard se estreitaram, girando na direção do som, mas não encontraram o autor.

    — Até parece que você quer isso. Está torcendo para que eu recuse, não é? — A voz de Hazan flutuou pelo ar, desafiadora.

    Edgard conteve sua satisfação interior, limitando-se a um sorriso de canto. — E por que acha isso? Estou cumprindo um contrato, garoto.

    — Porque você é um completo maluco, um maluco que tem me comparado com coisas que eu sequer entendo. Tahtoriano? Deserto de Tahtoa? Eu não faço ideia do que está falando. — O sorriso de Hazan alargou-se. — Sabe o que isso significa? Que você tem apanhado pra um zé-ninguém!

    Uma faísca de surpresa brilhou nos olhos de Edgard por um momento.

    Ele está tentando me provocar de novo? Não, não parece que esse seja o caso…

    — Muito bem, não importa o buraco do qual saiu, você já escolheu o seu destino. É melhor não se arrepender!

    Tirou a espada das costas, Aura sendo imbuída na lâmina, e cada passo de Edgard premeditava a morte. 

    As técnicas do boxe, embora eficazes em combates desarmados, revelavam-se impotentes diante de uma espada longa manejada por um guerreiro experiente.

    O estilo “peek-a-boo”, usado anteriormente contra Edgard, era uma estratégia defensiva contra socos, enfrentar uma lâmina estava fora de questão. O alcance e a letalidade da espada estava em um nível diferente se comparada com os golpes típicos de um pugilista.

    Apesar do fogo crepitante e da névoa de fumaça, apesar dos obstáculos que jaziam dispersos pelo chão, Hazan escolhera aquele lugar como seu campo de batalha. Porque naquele momento, ele não era mais um boxeador.

    Empunhado a espada com a guarda alta, Edgard continuou caminhando pelo observatório.

    Ele usou o barulho e a fumaça para esconder a própria presença. Está cansado e ferido, já tentou acabar com a luta de uma vez só, e com certeza vai tentar de novo. Não existem objetos que ele possa usar como arma aqui, e usar socos contra o alcance da minha espada não faz sentido. Ele vai tentar um chute.

    Já estava acostumado com o estranho padrão de Hazan. Embora fosse a primeira vez que Edgard experimentava esse estilo de luta, sua experiência em batalhas conseguiu julgar as verdadeiras intenções do lutador.

    O suor escorria por dentro de sua armadura, o calor se fortalecendo a cada segundo.

    Voosh!

    Um objeto voou em sua direção, e o pujante o cortou com sua espada, se revelando um lampião que bloqueou sua visão por um momento.

    Os instintos do guerreiro reagiram.

    Do lado oposto, Hazan surgiu em meio a fumaça, o cordão serpentino e seus olhos ardentes brilhando em uma tonalidade laranja. Seu rosto permanecia imperturbável, concentrado no cenário diante de seus olhos. Ele fitou um soco e mudou a postura, elevando a perna em um chute alto, mirando a lateral da cabeça do guerreiro.

    Eu já sabia!

    Edgard usou o braço livre, impactando contra o chute e afastando Hazan. Recuperando o equilíbrio com maestria, ele flexionou os joelhos e girou a cintura para desferir um soco poderoso em seu rosto.

    Um golpe desesperado.

    Edgard moveu a cabeça para o lado, evitando o ataque e permanecendo confiante em sua iminente vitória.

    Está acabado, garoto.

    Ao tentar mexer o braço que segurava a espada, Edgard foi surpreendido ao perceber que estava preso. Em segundos, mal teve tempo de entender o que o atingiu.

    BAM! CRACK!

    Dentes e sangue voaram. No momento em que seu direto falhou, Hazan canalizou toda a potência para o cotovelo, dobrando-o durante a trajetória. Prendeu o braço de Edgard embaixo das axilas, resultando em um impacto devastador que não poderia ser evitado.

    Essa era a cotovelada do muay thai.

    Edgard capotou, colidindo contra o telescópio no centro da sala.

    Seu corpo inteiro estava formigando, começando a ficar dormente. Surpreendentemente consciente, imerso na lucidez dolorosa, contemplava seu próprio colapso físico. A fraqueza veio como sombras que se apoderaram de seu corpo.

    O lutador andou em sua direção. Ele parou diante do guerreiro, cujo estado era patético, encarando-o de cima.

    Um gemido rouco escapou. O líquido rubro deslizou pelos lábios entreabertos. — Nunca imaginei que meu fim seria selado aqui… Mas não vou lamentar. Acabe com isso — sussurrou Edgard.

    Sua postura, a voz, a expressão esculpida em sua fisionomia, tudo revelava um tipo de resignação e desapego peculiar àqueles que aceitam a derrota iminente. Edgard cerrou os olhos, entregando-se ao destino.

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