Índice de Capítulo

    [Do lado de fora da fortaleza, momentos antes].

    Cada vez mais soldados caíam diante da violência e força bruta do feral. A batalha acontecia de frente para um grande portão, a saída da fortaleza. De alguma forma, pressionaram o feral até lá, mas isso é o máximo que conseguiam fazer.

    A formação de batalha não era o suficiente para contê-lo. Marcus, o guerreiro ruivo, notou o balanço das garras daquele monstro que jogou vários soldados para o ar como bonecos de pano, e logo ele seria o próximo. Puxou um companheiro da formação, usando-o como um escudo humano.

    O homem foi despedaçado. Os soldados estavam ocupados demais lidando com a monstruosidade para prestarem atenção nos detalhes.

    Maldição, isso não vai funcionar! Nenhum homem aqui além de mim e Edgard é um pujante, não temos magos, e nossos arqueiros estão todos mortos! 

    Marcus se afastou da formação, ignorando seus aliados sendo mortos e correndo na direção do prédio principal. Alguns corpos jaziam jogados pela escada, mas o ruivo ignorou.

    Não vejo nenhum sinal do desgraçado do Edgard, aquela coisa soltou fogo para todos os lados e até mesmo o prédio está ruindo! Logo aqueles desgraçados da Pena Azul vão chegar!

    Marcus apoiou as mãos na porta dupla e a empurrou, arregalando os olhos com o que vira.

    A sala estava em silêncio, exceto pelo som suave do fogo crepitando.

    Pequenas chamas cobriam o chão e o teto. Alguns armários estavam derrubados no chão, com bolsas de couro cheias de moedas de ouro escapando delas.

    Corpos de guardas mortos estavam espalhados por todo o alojamento. Marcus engoliu o seco, apreensivo, e pouco a pouco começou a encher sua bolsa.

    Parece que outros idiotas tiveram a minha ideia primeiro. Eles se mataram no processo? Que patético!

    — Não devia pegar muitas moedas, idiotas como você não sabem como gastar tanto dinheiro — disse uma voz impregnada de sarcasmo.

    Marcus se virou com um sobressalto, o corpo enrijecido pela surpresa. Mas logo sua expressão mudou, um sorriso debochado substituindo o medo inicial.

    — Hehe, sua escrava maldita… Devia ter continuado escondida.

    Com os braços cruzados, Aurora estava em um canto da sala, metade do corpo ofuscado por sombras furiosas criadas pelas chamas.

    — E quem em sã consciência se esconderia de um covarde como você?

    O tom casual foi uma afronta clara, e Marcus reagiu como esperado. Ele estreitou os olhos e apontou um dedo acusador em sua direção, sua expressão trazendo uma mistura de malícia e raiva.

    — Parece que a lição da última vez não acabou com esse seu maldito orgulho… Mas não se preocupe, vou terminar o que comecei e tirar o sorrisinho desse seu rosto pálido!

    Aurora ergueu uma sobrancelha.

    — Vai usar seu bando para me caçar como da última vez?

    Marcus soltou uma risada curta e amarga enquanto se aproximava de uma das camas quebradas espalhadas pela sala.

    — Você esqueceu que… — ele agarrou a cama com uma mão, erguendo-a como se fosse um brinquedo. — Eu também sou um pujante!

    Com um grito gutural, ele lançou o objeto em direção à garota. Aurora se moveu com a graça de um felino, desviando do impacto por uma margem tão estreita que o vento deslocado pela cama balançou seus cabelos. O móvel se espatifou contra a parede, destruído em fragmentos de madeira.

    — É só isso? — zombou Aurora, com uma risada contida. — Você é mesmo um pujante?

    Marcus rangeu os dentes e começou a arremessar tudo o que conseguia encontrar: mesas, cadeiras, armários. Aurora dançava entre os destroços, seu corpo um borrão ágil no caos. Mas seus movimentos, embora graciosos, começaram a perder velocidade. Sua respiração ficou mais rápida, o suor escorrendo por sua tênue armadura de couro.

    Marcus percebeu. Com um sorriso de predador, ele avançou com a espada em punho, cortando o ar em um arco violento. Aurora mal teve tempo de se esquivar; a lâmina passou de raspão, abrindo um pequeno corte em seu ombro. Ela recuou, ofegante, os olhos avaliando o cenário frenético.

    Ele não deu trégua. Outro golpe, e outro. Aurora desviava como podia, cada vez mais pressionada, até que enxergou sua chance. Quando Marcus levantou a espada para um golpe de cima para baixo, ela mergulhou para frente, dentro do espaço de alcance dele. Usando o peso do corpo, acertou um chute certeiro na perna de apoio do oponente. Ele caiu de joelhos com um grunhido, expondo suas costas para a polariana.

    Aurora pisou em sua nuca, derrubando-o no chão com violência.

    A lâmina gélida cravou-se na parte de trás da coxa, expulsando o sangue para fora, rasgando os nervos e os tendões. Aproveitando dos gritos de terror do homem, ela chutou a espada de sua mão, jogando-a longe.

    Aurora não parecia afetada pelos gritos. Na verdade, seu rosto permaneceu impassível, quase entediado.

    — Vamos fazer um jogo. Eu pergunto, você responde. E talvez eu poupe sua vida miserável.

    Marcus, com a face contorcida de dor, tentou resistir.

    — Hehe, sua vadia, acha mesmo que eu vou… cooperar? — Marcus virou o rosto, encarando Aurora com um sorriso que escondia sua dor.

    Com um movimento lento, ela torceu a adaga. O ferimento ficou maior. O sangue jorrou, e Marcus urrou de agonia.

    — Eu… eu falo! Pelo amor dos deuses, eu falo!

    Marcus podia ver a indiferença nos olhos daquela mulher.

    — Me conte sobre o batedor que capturaram. O que descobriram?

    — Merda, mas como você…

    — Não se distraia — alertou, colocando um pouco mais de pressão na adaga.

    Marcus prendeu a respiração, buscando aguentar a dor. Começou a arfar, tentando recuperar o fôlego suficiente para responder.

    — Um grupo de desbravadores… uma guilda… da Cidadela de Ariasken… Eles estão vindo. Hoje. Estão investigando William por tráfico e posse ilegal de escravos. Só eu e Edgard sabemos disso…

    Por isso aquele gordo estava com tanta pressa. Vou precisar fazer algum dinheiro, e ter integrantes de uma guilda me devendo um favor não é ruim.

    Os olhos de Aurora se estreitaram, absorvendo a informação. Ela retirou a adaga da perna de Marcus, limpando-a casualmente no manto dele.

    — Muito bem, Marcus. Você se saiu bem — disse ela, dando alguns tapinhas nas costas dele.

    Ele levantou o olhar, a esperança brilhando em meio à dor.

    — Isso significa que… você vai me poupar?

    A polariana agarrou seus cabelos e o encarou nos olhos. A face de Aurora se inundou de nojo.


    — Eu não disse que mataria você — disse ele, a voz firme, surgindo um sorriso mostrando os dentes sujos de sangue. — Mas sim que te daria uma surra, não lembra?

    Edgard contorceu o rosto pelo amargor que crescia em seu interior. — Você…! — As palavras mal conseguiam encontrar seu caminho para fora da garganta, tão densa era a raiva que o consumia. — Tentei tirar a sua vida! Arranquei algo precioso de você e até feri uma daquelas crianças! Se você tem honra, seja homem e termine com isso!

    O sorriso sumiu, o lutador sacudiu a cabeça, negando. — Você já não é mais uma ameaça, recuperei meu cordão de volta e vou salvar aqueles pivetes.  — Ele desviou o olhar do guerreiro, virando de costas e abanando as mãos, despreocupado. — Se você vive, se morre, não é problema meu, espero que se torne alguém decente um dia.

    — As conquistas de toda a minha vida… — Edgard parou, cuspindo sangue — Forjadas com minhas próprias mãos… — Apoiou uma mão trêmula no joelho, erguendo-se enquanto a Aura voltava a circular por todo o seu corpo, o pavio de uma vela que queimaria até o fim. — Serão em vão, culpa de uma aberração como você? Não me faça rir!

    Surpreso, Hazan se virou, os olhos do pujante faiscando em um azul profundo, sangue escorrendo de seus ferimentos. 

    — Se eu cair, você cairá comigo!

    A surpresa tomou conta do lutador quando Edgard avançou, agarrando-o pelo pescoço e arremessando-o pelo salão. O jovem cambaleou, chocando-se contra a parede, a cabeça estalando contra a superfície dura. 

    Lutou para se levantar, e as mãos encontraram apoio em uma estante de madeira. Encurralado, encostou as costas na janela, sentindo o calor do vidro quente percorrer através da camisa. A garganta ainda estava fechada, o que tornava difícil a necessidade de respirar aquele ar contaminado pela fumaça.

    Edgard andou em direção à espada no chão, que retornou ao seu brilho azul ao ser empunhada. Uma promessa que premeditava a morte. 

    A visão se tornou um borrão incompreensível, e Edgard investiu, a espada cortando o ar. O ataque parecia uma estocada. 

    Apesar de ser um golpe previsível, o lutador não estava nas melhores condições. Reagiu confiando em seus instintos, se jogando para o lado e agachando, mas não rápido o suficiente para evitar ser atingido. A lâmina cortou seu ombro, trazendo uma ferida profunda.

    O sangue escorreu, Hazan deslizou por baixo dos braços de Edgard, surpreendendo-o com um chute frontal que o fez recuar em direção à janela de vidro.

    Hazan cerrou o punho, desferindo um golpe certeiro no rosto do guerreiro, fazendo-o soltar a espada e impactar contra a janela, cujo vidro se quebrou. Mas Edgard, astuto, agarrou o pulso de Hazan, puxando-o junto consigo.

    Os dois homens travaram uma batalha desesperada, uma luta de vontades entre forças opostas. Edgard tentava arrastar Hazan para fora da janela, enquanto o jovem resistia, feroz.

    — Achou mesmo que podia se dar ao luxo de me poupar? Essa ingenuidade vai te matar! Ou você mata, ou você é morto, entalhe isso na cabeça! — Edgard esboçou um sorriso sinistro. — Você vai morrer, aqueles pivetes que se sacrificou para proteger vão ser devorados pelo fogo e nada disso vai importar… Você escolheu isso quando teve piedade!

    Com os dentes cerrados, Hazan fazia um esforço imensurável. Seu olhar brilhava em um alaranjado ainda mais intenso, as veias de seus braços, pescoço e têmporas saltavam furiosamente.

    — Você… fala… pra caralho! — rugiu ele, desvencilhando-se do pujante e superando a disputa de força. Cerrou o punho machucado, girando o eixo da cintura, transferindo o peso e a potência do ombro para o punho, desferindo o seu melhor golpe.

    [Direto de esquerda!]

    O guerreiro de olhos azuis atravessou a janela, caindo em direção às chamas que rugiam famintas. Hazan observou a queda do homem, notando um sorriso em seus lábios. Um sorriso pleno, quase sereno, mesmo diante da iminência da morte. Edgard não cumpriu a própria promessa. Não havia levado Hazan consigo, e fracassara em uma batalha cujo desfecho parecia certo.

    — Eu… eu o matei… — sussurrou, a voz abafada pelo crepitar das chamas ao redor. — Eu fiz isso…

    Golpeou o próprio rosto, trazendo a lucidez em meio ao caos interior.

    — Foco, Hazan! As crianças! Preciso encontrá-las e sair daqui!

    Ergueu a perna para dar um passo, mas seus músculos cederam e despencou no chão.

    Agora não…

    O corte em carne viva no ombro não parava de arder, quebrou lugares dentro do próprio corpo que nem era capaz de imaginar, e os músculos gritavam por descanso.

    — Eu… me… recuso!

    Cada fibra de seu ser clamava para que desistisse, reconhecesse a própria fragilidade e permanecesse no chão. Músculos, nervos, feridas abertas, eles não paravam de reclamar

    Mas a mente de Hazan pensava o contrário. Decidido a cumprir a promessa feita, arrancou do âmago de seu peito a coragem necessária para persistir, mesmo diante de tanto sofrimento.

    Apoiou os cotovelos no chão, depois os joelhos, arqueou a coluna, aos poucos ficando de pé. Se guiou pelas paredes e achou a saída, descendo a escadaria em espiral.

    No corredor da onde tinha se prolongado o embate contra Edgard, Hazan juntou o ar dos pulmões e gritou. — Aspen! Lunna! Onde vocês estão!?

    A fumaça cerrada quase o sufocava, mas continuou avançando. Foi quando o chão cedeu sob seus pés, rachando-se e desmoronando em direção ao andar inferior.

    Aterrorizado, Hazan recuou, os olhos se arregalando ao ver Aspen e Lunna em situações desesperadoras.

    Aspen estava cercado pelo fogo, uma viga de madeira prestes a desabar sobre ele. E Lunna segurava na borda de um buraco no chão que ameaçava engoli-la, seus dedos vermelhos e inchados.

    Correu em direção às escadas, mas um degrau cedeu sob seu peso, prendendo o pé. Hazan apoiou as mãos na madeira quente e se levantou, voltando a correr.

    No andar inferior, o cenário era o mesmo: fogo devorador e fumaça sufocante. A torre estava desmoronando aos pedaços. Entre os dois perigos, ele precisava escolher.

    As madeiras rangiam, o fogo gritava, e o tempo estagnou no momento em que Hazan notou um simples fato: ele precisava escolher.

    Então, uma viga cedeu, prestes a esmagar o meio-elfo. O garoto fechou os olhos, uma expressão sofrida, esperando o fim que não o alcançou.

    Quando os abriu, viu Hazan, com ferimentos visíveis, sustentando a viga em seu ombro ferido. Um sorriso trêmulo adornava o rosto do rapaz, enquanto ele redirecionava a viga na direção de Lunna. 

    — Pega isso! — gritou, usando todo o ar dos pulmões.

    Por um milagre ou pela fé nas palavras de Hazan, Lunna foi capaz de ouvir. Agarrou-se à viga, subindo e apoiando a barriga no suporte, aguentando a dor das queimaduras em seus dedos e estômago.

    Hazan a puxou para fora do buraco, aliviado ao vê-la a salvo. Os irmãos entreolharam, lágrimas escorrendo, e abraçaram o rapaz ao mesmo tempo.

    — Ei, vão com calma, moleques — murmurou o lutador, aliviado por um instante. — Não temos tempo pra isso, vamos dar o fora daqui!

    Eles concordaram, e continuaram descendo os andares com a cautela. A exaustão arrastava os músculos de Hazan para a escuridão do sono. Teimoso, ele focou suas energias na dor, ajudando-o a manter as pálpebras abertas.

    A dor pode ser um excelente combustível se usada da maneira certa. Agarrou-se a ela como um náufrago se agarra a um pedaço de madeira à deriva. 

    Sinto que posso desmaiar a qualquer momento…

    Finalmente, alcançaram o primeiro andar, onde tudo começou. Um cheiro acre de morte, provindo de cadáveres queimados, envolvia o ar misturados à fumaça que ocultava tudo em um manto de aflição. Camas e armários jaziam em ruínas, amontoados de destroços que obstruíam o caminho até a porta dupla.

    Fragmentos do teto desabavam em cascata sobre o alojamento. Eram as lágrimas da torre que expressavam a dor de sua destruição. Hazan vasculhou o ambiente em busca de uma rota de fuga alternativa, mas a fumaça turvou a visão, transformando as tentativas em uma luta contra o tempo.

    Entulhos estão bloqueando as laterais da porta, mas continua sendo nossa melhor opção!

    — Se afastem, eu cuido disso. 

    Hazan tomou a frente, agarrando a batente da porta e puxando com todas as suas forças. No começo, não parecia que tantos destroços podiam ser movidos de lugar, mas conforme as veias dos braços saltavam, a diferença foi feita. Os entulhos cederam sob a pressão, abrindo uma passagem estreita.

    — Passem logo! Estou logo atrás de vocês! — ordenou, a voz rouca representando o esforço que fazia.

    Eles se esgueiraram pela abertura, lançando olhares ansiosos na direção de Hazan, mas já não havia mais forças em seu corpo exaurido. Um sorriso triste curvou seus lábios ao perceber o medo nos olhos dos irmãos.

    — Sinto muito por não poder cumprir minha parte do acordo… Encontrem Aurora. Ela é maluca, mas vai ajudá-los! 

    — N-não! Não vamos embora sem você! — Lunna estendeu a mão em um gesto de desespero.

    Foi então que o inesperado aconteceu.

    Antes que a porta pudesse se fechar, mãos pálidas impediram o processo, e Aurora surgiu. Seus cabelos bagunçados e úmidos, com alguns fios presos à bochecha, que estava manchada de sangue e fuligem. 

    Aurora continuou forçando uma abertura, os dentes cerrados, usando metade do próprio corpo para impedir o fechamento da porta. 

    Hazan sequer pensou duas vezes. Viu uma oportunidade, e avançou em direção à abertura, ultrapassando a milagrosa saída. Assim que passou, ouviu um grito abafado de dor. Viu Aurora afastar-se da porta com dificuldade, mas estava cansado demais para prestar atenção.

    Hazan se curvou, mãos apoiadas nos joelhos, ofegante e exausto. Aspen e Lunna, preocupados e indecisos, queriam oferecer apoio, mas hesitaram.

    O fogo que se espalhou pelas laterais destruiu qualquer apoio que mantinha a as portas de pé. Elas cederam.

    Em um baque alto, as portas impactaram contra o chão, liberando o ar quente de dentro da sala com brasas que voaram.

    — Não sou maluca — proferiu a polariana, ofegante. — E você assumiu a responsabilidade por esses dois, não eu.

    Erguendo o olhar, Hazan avistou Aurora, com os braços e ombros vermelhos, feridos pelas queimaduras. 

    — Você não faz sentido… — comentou o pardo, franzindo o cenho.

    — Não fiz isso de graça. Temos uma urgência maior para lidar — ela interrompeu, virando de costas.

    Dezenas de homens não foram suficientes para conter a fera maldita. Em meio a um mar de corpos, o feral permanecia de pé, implacável, suas escamas pretas manchadas de sangue, as presas salientes em um rosnado silencioso. Lanças e flechas cravavam suas costas, as garras segurando o cadáver de um guarda, mas não havia sido em vão.

    Embora não foram capazes de derrotá-lo, era evidente que a criatura estava em um estado lastimável, pois um de seus olhos estava ferido e inútil.

    — Então, qual o grande plano? — indagou Hazan.

    — Sirva como uma isca decente, e eu acabo com o desgraçado — respondeu Aurora sem hesitar.

    — Isso é uma loucura, ele está ferido! — protestou Aspen, preocupado.

    Hazan fez um gesto tranquilizador com a mão, esticou a coluna e andou até o lado de Aurora. — Beleza… Eu cuido disso.

    As intenções de Aurora sempre foram ambíguas. Confiar nela em uma situação de perigo não parecia sensato, dadas as ameaças anteriores. No entanto, ela salvou sua vida mais de uma vez, contrariando as expectativas. Encarando seus olhos frios, Hazan vislumbrou uma centelha de humanidade, algo em que ele se apegou.

    Ela poderia usá-lo como distração e abandonar as crianças para fugir. Mas acreditava que isso não aconteceria.

    Esticou os músculos, os tendões estalaram e sangue escorreu sobre as feridas que já estavam fechadas.

    Não sei por quanto tempo vou aguentar acordado. Essa fera é maior e mais forte. Preciso acreditar que está ferida o suficiente para ser imobilizada. Eu consigo, porra, vamos lá!

    Respirou fundo, flexionou os joelhos e correu na direção do feral.

    — Ei, monstro do caralho! — gritou, chamando sua atenção. 

    O feral virou-se, um rosnado hostil, as garras afiadas cortando o ar em direção à cabeça de Hazan.

    Agora!

    Hazan agachou e rolou pelo chão, desaparecendo da vista da criatura através de seu ponto cego. O feral, não esperando que aquele mero humano fosse capaz de contorná-lo, foi surpreendido quando o lutador surgiu por trás, prendendo os braços musculosos atrás das costas.

    — Aurora! — gritou.

    Correndo na direção do feral, os olhos de Aurora brilharam em um azul intenso, e ela abriu um espaço entre a boca, deixando ar frio escapar. — Nem precisa pedir.

    Saltou num super pulo, e em vários metros acima do chão, o cabo de uma arma surgiu da palma da mão da braçadeira, no centro de um círculo mágico azul. De lá, retirou uma lâmina totalmente composta de gelo, degolando o pescoço do feral num movimento fluido.

    Aurora pousou no chão, e a cabeça do feral rolou para longe de seu corpo, que desabou inerte, causando um estrondo.

    Aspen e Lunna observavam apreensivos à distância. Hazan virou-se para elas, um sorriso vitorioso estampado no rosto, erguendo o polegar em sinal de triunfo, apenas para cair logo em seguida.

    É isso… Cheguei ao meu limite. Porra… Se ao menos tivesse acabado com aquela luta mais cedo… 

    Tudo o que via eram os rostos preocupados dos irmãos e o olhar indiferente da garota de cabelos brancos.

    As dores começaram a desaparecer, substituídas por uma sensação de alívio que se infiltrava em seus membros exaustos.

    Não posso desmaiar… Foco na dor… Foco… na…

    Dor. O combustível que o manteve de pé até aquele momento não existia mais, sobrando um relaxamento muscular que se provou prazeroso. A estrutura da torre desabava ao seu redor, trazendo sons abafados juntos ao estalar das madeiras e o crepitar das chamas.

    Em míseros segundos, Hazan não sentiu mais nada.


    O corredor à sua frente era familiar e estranho ao mesmo tempo. As portas de madeira, que normalmente ficavam nas laterais, foram substituídas por um espelho que se estendia até o final. Lâmpadas vermelhas, fracas e oscilantes, piscavam no ritmo de sua respiração agitada.

    Com o coração disparando, Hazan concentrava cada fibra de sua determinação em uma corrida desesperada em direção ao que vislumbrava ao longe. A porta dupla de madeira, com suas maçanetas reluzentes, exibia em letras rubras o aviso de “emergência”.

    Ele rogava em silêncio enquanto seus passos ecoavam no corredor vazio.

    Estou chegando, aguente firme, por favor! Estou chegando, tia!

    Uma onda de náusea revirava seu estômago, e um peso inexplicável aprisionava sua mente. Seguir em frente significava aumentar a intensidade daqueles sintomas.

    As mãos estendidas quase tocaram as maçanetas da porta quando o corredor pareceu se esticar, alongando de forma cruel a distância entre eles. Um grito frustrado escapou dos lábios de Hazan enquanto redobrava seus esforços, mantendo seu curso mesmo diante da adversidade.

    O estalo que ressoou pelo corredor revelou-se um presságio sinistro. Os espelhos das laterais do corredor começaram a trincar, liberando uma um sangue rubro, parecido com vinho, que serpenteava pelas fissuras, pressionando o vidro.

    O estrondo da quebra foi ensurdecedor.

    Uma maré de corpos, tingidos de vermelho, irrompeu dos espelhos, uma massa repugnante de carne e ossos distorcidos que clamava por justiça com vozes amalgamadas em um coro dissonante.

    — Culpa sua! Assassino! Monstro! Você acabou com as nossas vidas! Nos tornamos escravos por sua culpa! — os espectros acusavam, seus olhos vazios ardendo em ódio.

    Hazan cerrou os dentes, ignorando as palavras acusatórias, forçando seu caminho à frente. Um ato de resistência contra o dilúvio de condenações que o envolvia. Alcançou a porta, e suas esperanças foram renovadas.

    Com um chute impetuoso, forçou a porta à sua frente, apenas para descobrir que não existia mais nenhuma “sala de emergência”, e sim um abismo de escuridão infinita.

    Assim, ele desabou.

    Avistou a porta da emergência aberta, e a maré vermelha que o perseguia em atravessou a entrada, mãos negras que buscavam alcançá-lo. Entre os rostos deformados, Hazan reconheceu todas as faces, faces do passado que o assombravam.

    — Calem a boca! — gritou ao ponto de sua garganta falhar. — Vocês escolheram o mesmo caminho que eu, não podem me culpar por isso! A culpa é de vocês por serem tão fracos! Me ouviram!?

    Os espectros avançaram, envolvendo Hazan, rasgando seu corpo, gritando ao ponto em que seu interior se tornou puro caos.

    Tudo parou.

    Ao abrir os olhos, se viu diante de uma porta enorme. Já não era o rapaz atormentado, mas sim um garoto de feições simples e olhos cheios de inocência. Ficou nas pontas dos pés, alcançou a maçaneta e adentrou na sala.

    O quarto estava mergulhado em luzes aconchegantes do fim da tarde, as paredes brancas eram tão limpas que elas fizeram com excelência o seu papel de tornar aquele quarto agradável. Diante dele, deitada na cama, uma mulher, seu rosto marcado por rabiscos pretos, repousava em uma cama frágil, sustentada apenas pelo frágil laço de um soro intravenoso.

    Ao lado da cama, um retrato chamou sua atenção. Era Hazan, em sua juventude, abraçado à mulher de traços distorcidos, ambos sorrindo sob os raios dourados do sol de verão.

    — Hazinho? — Sua voz estava tão encantadora e amorosa quanto se lembrava.

    Ele engoliu em seco e se aproximou da cama, a respiração ficando mais superficial a cada passo. — Mãe… eu sinto muito. Eu fui um idiota, eu… eu não devia ter…

    — Shh, está tudo bem, meu amor — ela murmurou, estendendo a mão para ele. — Não se preocupe com isso.

    Encarou a mão estendida e sentiu a cabeça ferver ao cogitar a ideia de segurá-la. Cerrou os punhos e desviou o olhar. — Isso… Isso não é real…

    — Não importa, você é meu bem mais precioso… Vai crescer e se tornar um homem muito gentil — disse ela, convicta e calma.

    Hazan começou a encarar o chão. 

    Um silêncio pairou no ar. Conforme o quarto começava a se deteriorar, o retrato em cima da mesa começou a rachar e perder cor.

    Estava repetindo os mesmos erros. Tomado por um impulso inexplicável, se apressou e segurou na mão dela. Seu toque era quente e macio.

    — Nunca é cedo para ser gentil. — A voz deformou numa mistura de grave e agudos. — Porque nunca se sabe quando poderá ser tarde demais, não é?

    A pele daquela mulher estava pálida, áspera e gélida.

    Hazan se afastou, caindo de costas no chão, encarando o rosto distorcido enquanto tentava lembrar do rosto de sua mãe. Aquele fantasma se desfez em cinzas, contorcendo e se transformando em imagens distorcidas de seu próprio rosto infantil, cada um olhando para ele com olhos acusadores.

    Se arrastou até bater as costas contra a parede. Assustado e ofegante, olhou ao redor, notando o seu cordão jogado no chão.

    Estendeu a mão trêmula para alcançá-lo, mas antes que pudesse tocá-lo, o objeto se contorceu e se transformou em uma serpente negra, cujos olhos brilhavam com uma malícia sombria.

    Um arrepio percorreu o pescoço de Hazan quando a serpente se aproximou dele, deslizando pelo chão de mármore frio com uma graça mortal. Ele tentou levantar, mas seu corpo estava totalmente paralisado.

    A serpente enrolou em torno de seu corpo, se tornando cada vez maior, apertando cada vez mais forte, cortando a respiração com uma força calculada. Não estava com pressa de acabar com sua vida.

    Lutava para respirar e tirá-la de seu pescoço. Os olhos lacrimejaram, e as unhas perderam lascas conforme mais ele se esforçava.

    Eu mereço isso…

    Diante dessa conclusão, aceitou o que o destino lhe reservou. Os braços caíram e a vista fechou, mas seu pescoço continuou a ser esmagado.

    Crack!


    Despertou em sobressalto, cambaleando para o lado e encontrando seu rosto em contato brusco com o piso de madeira. 

    A última lembrança antes de cair desacordado era uma agonia excruciante que perfurava seu corpo, e só de relembrar, arrepios percorriam sua espinha. Estendeu as mãos pelo chão de madeira, tentando se erguer, e não foi surpreendido ao sentir ondas de dores voltando. 

    Esfregou o pescoço e observou ao redor. A luz do sol filtrava-se pela janela adornada com uma cortina branca, movendo-se suavemente com a brisa. Um quarto simples, de madeira, com poucos móveis: uma mesa decorada com um espelho e um jarro de flores ao seu lado, e uma cama logo atrás. Aquele espaço podia ser pequeno, mas trazia uma sensação de conforto.

    Então, observou seus antebraços envoltos em grossas bandagens. Passou a mão pela testa, tentando enxugar o suor, apenas para perceber um pano envolvendo sua cabeça.

    Desfez o nó, examinando o pano que, em teoria, deveria ser branco, agora manchado com várias tonalidades de sangue. Ao olhar para o chão, notou um balde de madeira ao seu lado. Jogou o pano sujo no balde e sentou na ponta da cama.

    Apertou o punho envolta do cordão. O coração, antes pulsando forte, se acalmou em batidas regulares.

    Ainda bem que você tá de volta.

    Puxando a camisa de seda marrom para cima, viu as faixas ensanguentadas protegendo o torso. Girou o ombro onde Edgard o havia cortado, observando as camadas de proteção que o envolviam.

    Se não tô enganado, isso aqui estava bem feio.

    Negou com a cabeça e jogou o corpo para trás, aconchegando-se no colchão macio. As lembranças da fortaleza surgiram, especialmente sua luta emocionante contra Edgard. 

    Um sorriso involuntário surgiu em seus lábios e, percebendo isso, sentou na ponta da cama, curvando as sobrancelhas num arco indignado.

    Estou sorrindo…? Eu o matei. Ele está morto, pelas minhas mãos.

    Ficou de pé e adotou uma postura ofensiva, punhos próximos ao rosto, pernas firmes. Entrou em um estado de concentração, flexionou os joelhos, cotovelos apontando para baixo, músculos contraídos.

    Não era isso que eu queria fazer. Não planejei como resolver a situação, apenas… reagi. Naquea hora, matar parecia a solução mais natural.

    As palavras de Edgard antes de morrer ainda ecoavam na sua mente.

    Se eu não fosse tão fraco, nada disso teria acontecido. Preciso ficar mais forte.

    Lançou o primeiro golpe, e seu corpo protestou em resposta. A fraqueza retornou, a tontura obscureceu sua visão, e os músculos queimaram. Mas não parou.

    Forte o suficiente pra sobreviver nessa porcaria de mundo e recuperar minhas memórias. Esse deve ser o meu objetivo.

    Adaptou suas sequências de golpes, alternou entre esquivas e defesas, até lançar seu último ataque, acompanhado por gotas de suor que salpicavam o ar. Mal percebeu o sangue escorrendo de seu nariz, manchando o chão, nem o tempo passado.

    O esforço fez seu corpo aquecer. Soltou um suspiro ofegante, relaxou os braços e andou até a janela.

    Abriu as cortinas e, ainda ofuscado pela luz, soltou seu comentário mais sincero:

    — Onde caralhos eu tô!? — A voz ecoou pelas ruas, algumas pessoas o encarando lá de baixo.

    Uma rua ladrilhada de paralelepípedos, casas feitas de madeira e pedra, estabelecimentos estranhos, estavam espalhadas pelas ruas, suas fachadas adornadas por bandeiras pretas com o símbolo da fagulha de uma chama.

    O aroma sedutor de flores frescas e pães assados pairava no ar, misturando-se com o perfume de ervas e especiarias exóticas que emanavam das barracas dos mercadores. Hazan enxergou várias pessoas caminhando pelas ruas, algumas vestidas muito bem, e outras usando vestimentas mais simples.

    Aquela rua parecia se estender sem ter fim, onde ao longe, ele podia ver o semblante de um enorme prédio. 

    De repente, o rangido da porta se abrindo capturou a atenção do jovem. Ele se virou para observar, avistando um homem de jaleco branco, pontuado por detalhes azuis. Seu cabelo castanho estava amarrado em um rabo de cavalo que caía sobre o ombro, enquanto seus olhos, também castanhos, exibiam visíveis olheiras.

    Atrás dele, estavam duas figuras que Hazan conhecia muito bem, olhando-o perplexas e em silêncio.

    Aspen estava vestindo uma camisa branca de mangas compridas e calças simples de tecido. Lunna compartilhava a mesma calça, mas sua parte superior era adornada por uma blusa distinta, presa por um largo cinto de couro, com mangas brancas ornadas por detalhes verdes, que combinavam com seus chifres e olhos.

    — HAZAAAAN! — Lunna correu na direção dele, sendo a primeira a chegar.

    Pressentindo o perigo, um arrepio percorreu o corpo de Hazan, e ele recuou, evitando o abraço desesperado da dragoniana, o que culminou num encontro patético com o chão. 

    Com um olhar desconfiado e, ao mesmo tempo, intimidador, Hazan dirigiu-se a Aspen, como se dissesse: “Não se aproxime!”.

    Aspen franziu as sobrancelhas, cruzou os braços e desviou o olhar. — Não espere que eu seja meloso assim!

    — Seu… bobão… — Lunna se ergueu do chão, a testa avermelhada, cerrando o punho e desferindo um soco desajeitado no meio das costas do rapaz. — Eu só tava preocupada!

    Hazan caiu como uma marionete desmontada, e Lunna cobriu a boca, surpresa com sua própria ação. 

    Observando Hazan caído, Agnis deu de ombros e colocou uma bolsa de couro em cima da cama. — Ele vai ficar bem. — Encarou Hazan, sentado no chão. — Sente-se aqui e tire a camisa.

    Hazan fez uma careta, erguendo uma das sobrancelhas enquanto se levantava do chão. — Tá me estranhando, rapaz?

    Uma veia pulsou na bochecha de Agnis, enquanto ele retrucava: — Vou trocar seus curativos.

    Com a ajuda de Lunna, Hazan dirigiu-se até a cama e tirou a camisa, expondo um corpo coberto por ataduras manchadas de sangue. Agnis cortou todas as faixas com uma tesoura, jogando-as em um balde próximo.

    Os irmãos observavam a cena com curiosidade e surpresa. Havia ferimentos demais.

    — Quanto tempo eu dormi?

    — Dois dias, e isso é pouco, considerando o estado em que você se encontrava — disse Agnis, passando os dedos habilidosos por cada ferimento, seu tom de voz misturando cansaço e ironia. Ele ajustou os óculos com um gesto calculado, como se estivesse prestes a anunciar uma tese. — Bem, vejamos… temos aqui múltiplas fraturas transversas e oblíquas nas escápulas e arcos costais, fraturas compostas nos rádios e ulna, além de um quadro generalizado de contusões subcutâneas e escoriações dérmicas extensas. Também não podemos ignorar a possibilidade de miosite secundária devido ao impacto.

    Ele deu uma pausa, observando os rostos confusos das crianças, e a falta de reação de Hazan. Ele suspirou profundamente.

    — Resumindo, você está todo quebrado.

    Hazan ergueu uma sobrancelha, a expressão neutra contrastando com seu tom casual.

    — Certo, mas eu posso treinar?

    Agnis franziu as sobrancelhas, balançando a cabeça em descrença. — Não. Foque em se manter vivo primeiro.

    Hazan estalou a língua.

    Agnis balançou a cabeça de novo, voltando a examinar o lutador. Havia notado algo estranho. A grande ferida que antes decorava o ombro de Hazan, queimada até a carne viva, agora era apenas uma queimadura de primeiro grau. Não só isso, o estado geral do rapaz parecia bem melhor em comparação com quando o encontrou pela primeira vez, desacordado ao lado do cadáver de um feral.

    Após alguns minutos trocando os curativos, Agnis segurou o pulso de Hazan, com o polegar pressionando uma veia. Seu polegar emitiu um brilho azulado, e após alguns segundos, o rosto do curandeiro empalideceu. Ele ergueu o olhar para Hazan. — Precisamos conversar. — Voltou-se para as duas crianças com uma expressão séria. — E a sós.

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