Índice de Capítulo

    No salão amplo da guilda, Aspen e Lunna estavam envoltos por uma mistura de sensações: o calor acolhedor do sol que adentrava pelas janelas, os cochichos ansiosos e o aroma reconfortante de esperança pairando no ar. 

    Ergueram a vista, ficando maravilhados com o teto quadricular, pintado em branco e azul. Era o coração pulsante da guilda. As bandeiras com o símbolo da pena azul tremulavam.

    No centro do hall de entrada da guilda, um palanque de madeira elevava-se majestoso, um altar improvisado. Dois homens se destacavam naquele palco. 

    De estatura robusta, cabelos desgrenhados e escuros como a noite, estava um guerreiro que personificava a força ofensiva da guilda. Seus olhos verdes varriam a multidão com um ar de vigilância. Hadrian, com uma espada na cintura, representava o braço direito da líder da guilda.

    No outro canto, Agnis, o curandeiro sábio, irradiava sabedoria. Seus cabelos castanhos presos em um rabo de cavalo, e seus olhos benevolentes observavam as pessoas com pena.

    E então, vindo de um corredor em passos calmos, estava Calista. Conhecida como a líder da guilda, sua beleza cativante e postura firme trouxe um ar gracioso ao ambiente. De cabelos azuis como o céu noturno que fluíam em cascata sobre seus ombros, os olhos turquesa fitavam os murmúrios das pessoas em silêncio.

    Todos os três usavam sobretudos azuis, com uma ombreira de prata contendo o símbolo da guilda, dentre outras peças de armadura de acordo com seus estilos.

    Ao redor do palco, os empreendedores e donos dos principais comércios da cidade estavam presentes, e entre eles, Randolf. Todos tinham grande respeito por aquele trio.

    Em sua marcha majestosa, seus pés tiveram um encontro imprevisto, e Calista tropeçou, caindo de cara no chão, as mãos estendidas para frente em choque. Agnis colocou os dedos entre os olhos, abaixando a cabeça e soltando um suspiro. As testemunhas, perplexas, não sabiam se aplaudiam ou se escondiam de vergonha alheia.

    A mulher se levantou, limpou a poeira da capa, arrumou os cabelos e sorriu para aquele grupo de pessoas. — Ca-ham, me chamo Calista! — A voz ecoou por todo o prédio, uma voz forte e amigável. — Hoje nos encontramos aqui, reunidos sob o estandarte da Guilda “Pena Azul”, não apenas como indivíduos, mas como uma comunidade unida por um propósito maior: ajudarmos uns aos outros!

    A entrada de Calista deixou uma impressão marcante, superando todas as expectativas daqueles presentes. Seus corações se abriram, não apenas para simpatizar com ela, mas para se sentir à vontade em sua presença.

    — Sei o quanto a escravidão pode ser uma ferida na alma que muitos julgam irreparáveis, uma prisão que aprisiona não apenas os corpos, mas também os espíritos dos oprimidos. Mas eu vos digo que a verdadeira liberdade reside dentro de cada um de nós, esperando apenas ser despertada pela chama da determinação e da coragem!

    A cada palavra que escapava dos lábios de Calista, suas mãos dançavam no ar, uma expressando dor e simpatia. Sua voz tocou os corações daqueles presentes. Contudo, o eco emocional não ressoava em todos os cantos da sala.

    — Não existem garantias de que não seremos transformados em escravos aqui também! O que você quer de nós!? — indagou um indivíduo em meio as pessoas.

    O homem sentiu o olhar intenso de Hadrian e se encolheu.

    Calista sorriu e sentou na ponta do palco. Afrouxou o sobretudo em seu ombro e puxou a gola da roupa, mostrando uma parte considerável de seu pescoço e ombro. Lá, estava um tipo de tatuagem, correntes cheias de espinhos entrelaçadas umas nas outras, com uma cor desbotada.

    Murmúrios surgiram na plateia.

    — Já fui escrava como vocês, e esse é só um dentre vários motivos que a guilda “Pena Azul” tem para responsabilizar por cada pessoa aqui. — Ajeitou as roupas e levou a mão até o peito. — Conduziremos perguntas sobre suas habilidades, faremos identificações e vamos designar empregos para vocês aqui na cidade! Precisamos de mão de obra, então essa é uma ótima oportunidade, para Ariasken e para vocês! Vamos começar? — Calista levou o seu olhar para Agnis, que tomou a frente da situação.

    Ao se erguer, Calista cometeu o mesmo erro, tropeçando na própria perna, mas desta vez, levando consigo Agnis em uma queda desajeitada. O impacto fez com que ambos encontrassem o chão, causando uma onda de surpresa entre os espectadores.

    Uma risada solitária rompeu o silêncio, seguida por outras e outras, até que o ambiente se encheu de um humor leve e contagiante. Agnis, ainda um tanto irritado, foi o primeiro a levantar, estendendo a mão para ajudar sua líder. Calista, agora um pouco envergonhada, saiu do centro do palco com um sorriso sem graça, cedendo espaço para o curandeiro falar.

    O tempo se arrastou, e cerca de quarenta indivíduos passaram pelo processo de entrevista. Eles encontraram seu destino nos diversos estabelecimentos de Ariasken, desde mercearias a alfaiatarias, passando por padarias e tavernas.

    Ariasken tinha uma alta demanda por trabalhadores, evidente na lista crescente de vagas ocupadas. A guilda, outrora repleta, agora via seus corredores esvaziados à medida que as entrevistas prosseguiam, deixando apenas alguns poucos candidatos para serem considerados.

     — As crianças da pousada de Randolf. — Agnis apontou para Aspen e Lunna. — Vocês dois têm alguma habilidade?

    Aspen engoliu seco e tomou a frente. — E-eu sei ler e escrever bem, sei um pouco de teoria da magia e mercearia também…

    Agnis ergueu uma sobrancelha. — Tudo isso sendo tão jovem? Parece que mesmos mestiços não podem ser subestimados.

    A palavra “mestiço” causou um embrulho no estômago do garoto, que abaixou a cabeça e cerrou os punhos. Percebendo a postura de seu irmão, Lunna levou o seu olhar para o curandeiro. — Senhor Agnis, a gente não precisa de um lugar para ficar e nem emprego! Nós só queremos voltar para nossa casa! O orfanato “Abraço de Unitas!”

    — Sinto muito, mas isso não será possível. Recebi muitas reclamações sobre as condições precárias das crianças que vivem lá, e que a dona não está em condições de gerir qualquer propriedade. Vocês irão continuar morando na pousada de Randolf por enquanto.

    — Mas a gente não quer! — Aspen e Lunna disseram ao mesmo tempo. 

    — Isso é para o bem de vocês, crianças. Será temporário, é claro, mas é necessário — Agnis gesticulou as mãos, buscando apaziguar o nervosismo dos irmãos.

    — Queremos voltar agora! Nossa mãe precisa de nós! — Aspen protestou.

    — Chega — proclamou Hadrian, descendo do palco e se aproximando dos irmãos. — Há outras pessoas precisando de ajuda, e vocês não estão compreendendo a gravidade da situação. Vou levá-los de volta até o estabelecimento de Randolf, amanhã Agnis irá conversar com vocês.

    O curandeiro pareceu surpreso com a intervenção repentina de seu companheiro. Hadrian estendeu a mão na direção dos irmãos.

    Aspen já estava amedrontado desde cedo, e aquela mão estendida reviveu as memórias obscuras da fortaleza: a mão áspera de Edgard aberta em sua direção.

    Lunna cerrou os dentes, irritada, e estava prestes a reagir, quando alguém o fez primeiro.

    Uma mão enfaixada passou entre o meio dos irmãos, agarrando o punho do guerreiro.

    — Se eles querem voltar pra casa, então eles vão voltar pra casa. Eu levo eles.

    Notando a presença de Hazan, os irmãos buscaram proteção, se escondendo atrás de suas costas.

    — Você é o garoto que derrotou o feral. — Hadrian o encarou de cima a baixo, notando as ataduras por todo o corpo. — Deveria estar se recuperando.

    A diferença de altura entre os dois era gritante.

    — Eu sei o que é melhor pra mim.

    — Você deveria considerar a gratidão para com aqueles que não só preservaram sua vida, mas também a dessas crianças. — Hadrian retrucou. Sua face não expressava um pingo de emoção.

    — Não dependo de vocês pra nada — Hazan respondeu, desafiando a autoridade do guerreiro.

    — Que seja, solte meu pulso. 

    — E se eu não quiser?

    Uma tensão se instalou. Agnis observou a cena com olhos cautelosos.

    Esse idiota, o que ele tá fazendo aqui? Além disso, de todas as pessoas, provocar logo o Hadrian? Preciso intervir!

    O curandeiro estava prestes a se mover, quando a mão de Calista o impediu. Ela o encarou, balançando a cabeça negativamente. — Vamos observar como Hadrian lida com essa situação.

    — Vou contar até três. Se não largar o meu pulso até lá, sua mão estará caída no chão. Um… Dois… Três.

    Swin!

     A lâmina voou em direção ao pescoço, e não ao pulso. 

    Medo. A resposta natural a qualquer pessoa comum que esteja sob ameaça de morte iminente. O medo expressado nas expressões e na tremedeira do corpo, isso é o que Hadrian buscava. Instigar respeito através do medo. Fazer com que Hazan fosse submetido aos próprios instintos.

    Estudos mostram que o medo ativa regiões específicas do cérebro, como a amígdala, desencadeando respostas automáticas de luta, fuga ou congelamento.

    Essa sobrecarga emocional pode interferir na precisão dos nossos reflexos, prejudicando nossa capacidade de reagir rapidamente a estímulos externos. 

    Assim, mesmo com reflexos afiados, o medo pode nos tornar vulneráveis ​​a situações que exigem uma resposta rápida e precisa, obscurecendo nossa habilidade de usufruir plenamente de nossos recursos biológicos.

    Não foi o caso de Hazan.

    A regulação emocional envolve áreas do cérebro como o córtex pré-frontal, permitindo-nos reinterpretar e reavaliar ameaças percebidas. A atenção plena, por exemplo, pode modular a resposta do sistema nervoso autônomo, reduzindo a atividade da amígdala e promovendo um estado de calma e clareza mental.

    Ou seja, o estado de foco profundo faz com que uma situação que seria interpretada como uma urgência fatal para o nosso cérebro, passa a ser visto como um problema comum que pode ser solucionado.

    Desde a espada sendo sacada até o caminho que a lâmina fez, parando a centímetros de seu pescoço, Hazan enxergou tudo através da visão periférica, pois não parou de encarar Hadrian.

    Esse garoto sequer piscou. Interessante.

    — Por que não esquivou?

    — Disse que cortaria o meu pulso. — Inclinou a cabeça para o lado, sorrindo de forma debochada. — E não o meu pescoço.

    Hadrian guardou a espada na bainha, e Hazan soltou seu pulso. Os dois continuaram a se encarar.

    Um silêncio se instalou. Um sorriso improvável surgiu no rosto carrancudo de Hadrian. — Faça o que quiser, então. — Virou de costas, voltando a caminhar para o palco. — Mas se qualquer coisa acontecer com elas durante o caminho, porque não quis esperar… — O encarou por cima do ombro, emitindo um brilho perigoso no olhar. — Vai se responsabilizar por isso, entendeu?

    — Isso não é novidade pra mim. — Encarou Agnis e Calista. — O problema tá resolvido, então a gente não tem mais motivo pra ficar aqui.

    Hazan envolveu Aspen e Lunna abaixo de seus braços, levando-os para a saída. 

    Os três líderes se encararam, e dentre eles, Agnis era o que estava mais surpreso.

    Esse garoto… O excesso de vitalidade em seu corpo sumiu, e parece que a maioria dos seus ferimentos mais graves se recuperaram. Ele estava ferido ainda essa manhã, como isso é possível?

    Do lado de fora da guilda, a noite começou a cair. Silhuetas das luas cheias no céu tomaram forma.

    As ruas agora pareciam desertas em comparação com a agitação que havia reinado ali poucas horas antes.

    Os três soldados, superados por Hazan anteriormente, passaram correndo, acenando para uma família acompanhada por duas crianças.

    O lutador parou de abraçar os irmãos, sentou na escadaria e apontou para as luas. — Isso é normal pra vocês?

    — As luas? — indagou o elfo, notando a curiosidade nos olhos do rapaz. — Sim, elas sempre estiveram lá. É uma trindade lunar, afinal.

    — Trindade lunar? — perguntou, franzindo o cenho.

    — Essas luas protegem a estabilidade do nosso planeta, guiando as pessoas para construir um mundo melhor… — O tom de Aspen saiu como se estivesse falando o óbvio.

    — Hazan, sei que já disse isso, mas você esqueceu realmente de tudo? — Lunna indagou o rapaz, seus olhos transmitindo genuína curiosidade.

    O jovem desviou o olhar, colocando a mão atrás da nuca. — Às vezes tenho sonhos que me fazem lembrar de algumas coisas, como as receitas de comida que vocês experimentaram.

    — E são receitas maravilhosas! Espero continuar experimentando elas!

    — Eu discordo, a comida da nossa mãe é muito melhor! — De braços cruzados, Aspen foi o único a continuar de pé.

    — A comida da mãe, é mesmo… — Lunna abaixou a cabeça, cerrando os punhos. — É verdade o que você disse lá trás? Sobre nos levar para casa? — Seu tom saiu trêmulo, quase choroso.

    — E por que eu mentiria?

    — Mesmo que a gente queira ir agora mesmo? É literalmente do outro lado da cidade… — provocou, esperando que ele mudasse de ideia.

    — Poderia ser do outro lado do país, e eu ainda os levaria até lá — retrucou, ainda teimoso.

    — Não temos nenhum dinheiro ou bens materiais, Hazan… — Lunna insistiu.

    — Eu não preciso disso vindo de vocês.

    Como uma resposta a frase de Hazan, Lunna o agarrou, abraçando-o forte, lágrimas deslizando de seu rosto. — O-Obrigada…! De… De v-verdade!

    Com as sobrancelhas arqueadas e os braços estendidos em surpresa, Hazan hesitou antes de retribuir o gesto de afeto. Uma de suas mãos pousou gentilmente na cabeça da garota, acariciando-a com um cafuné reconfortante até que os soluços de Lunna se acalmassem.

    — Então, estamos prontos pra partir? O caminho é longo e será melhor apertar o passo. — Hazan se afastou com cuidado, levantando e sacudindo a poeira das calças.

    — “Apertar o passo”? — Aspen franziu a testa, confuso.

    — Significa andar mais rápido — Hazan explicou, estendendo a mão para Lunna. — Vamos lá, não fique aí parada.

    Após secar as lágrimas, Lunna aceitou a ajuda do rapaz. Descendo a escadaria, notaram uma carruagem de madeira se aproximando, puxada por um cavalo. Quando parou diante deles, o cocheiro, um homem magro com um bigode elegante, acenou.

    Os olhares se encontraram, e a porta da carruagem se abriu, revelando uma figura inesperada. — O que estão esperando? Entrem logo — disse Aurora.

    — E para onde estamos indo? — Hazan indagou.

    — Para onde você acha? A casa desses dois.


    Duas crianças montavam nas costas de Hazan, enquanto ele descansava na relva, entregue à rendição. Os pequenos bagunçavam seus cabelos e vasculhavam seus bolsos em busca de algum tesouro, encontrando pequenos pacotes de biscoitos. Satisfeitas com sua descoberta, as crianças retornaram para Aspen e Lunna, compartilhando os biscoitos com os irmãos em um gesto cheio de afeto.

    — Ei, seus travessos, onde arranjaram isso? — questionou Lunna.

    — O Hazinho nos deu! — respondeu Zara, uma garotinha de pele morena e cachos rebeldes.

    — Disse que podíamos comer, hehe! — complementou Rashid, um garoto muito parecido com sua irmã.

    Os irmãos trocaram sorrisos e abraços. Próximo a eles, uma mulher em uma cadeira de rodas capturava a atenção com sua presença marcante. A cadeira era feita de madeira escura.

    Seus olhos, em vermelho profundo, lembravam os de Aurora, embora emitissem uma serenidade distinta. Os cabelos ondulados estavam presos em um coque prático.

    A pele, marcada por rugas sutis, não escondia a idade, mas a transformava em algo quase nobre, com uma beleza que não precisava mais provar nada a ninguém.

    O terreno do orfanato se estendia vasto, com uma sinuosa estrada de tijolos de pedra conduzindo os visitantes à entrada. Ao redor, jardins cuidados floresciam com uma profusão de cores, enquanto um solitário balanço, adornado com fitas coloridas, balançava ao sabor da brisa noturna.

    Hazan se levantou, cabelos despenteados e rosto sujo, aproximando-se de Aurora, que ostentava um sutil sorriso.

    — Você parece contente — comentou o rapaz, tirando terra dos cabelos e do rosto.

    — Deve ser sua imaginação.

    Splash! 

    Esferas de água pequenas acertaram a cabeça dos dois, deixando-os encharcados. 

    A face da polaris escureceu, cruzando os braços, enquanto a de Hazan se iluminou. 

    — Deixa eu adivinhar, agora você tá pensando em como odeia todo mundo, certo? — provocou o jovem, alisando o cabelo para trás.

    — Especialmente você — Aurora retrucou, contorcendo os lábios e cruzando os braços.

    — Liara, o que eu já disse sobre o uso de magia sem a minha permissão? — disse uma voz feminina, um pouco rouca, mas de tonalidade forte e imponente.

    Hazan observou a mulher à sua frente. Sua atenção estava voltada para uma garota, um pouco mais velha, como Aspen e Lunna, de cabelos castanhos e uma cicatriz de queimadura na bochecha.

    — Hehe, d-desculpe, eu estava aguando as plantas… — explicou a garota, coçando a bochecha.

    A mulher acenou, e voltou sua atenção para Hazan e Aurora.

    Apesar de sua condição física, exibia uma postura firme e elegante.

    Vestia uma blusa escura de algodão, adornada com detalhes sutis de renda que adicionavam uma delicadeza feminina à sua aparência.

    Na parte inferior, uma calça escura feita de um tecido flexível que permitia fácil movimento. 

    Hazan não sabia nada sobre ela, mas sua presença inspirava respeito e uma sensação familiar.

    — Então foram vocês que salvaram minhas crianças — ela começou, estendendo a mão para eles. — Me chamo Cassandra, e agradeço por isso. Embora eu não possa retribuir da maneira que merecem por ter trago eles em segurança para casa, estão convidados para passar alguns dias em nosso orfanato caso não tenham um lugar para ficar.

    Hazan retribuiu a gentileza. — Pelo visto eles falaram bastante de nós, mas não fizemos nada de mais.

    — Não, eu faço questão de retribuí-los.

    — Foi ele quem mais ajudou — disse Aurora, colocando a mão no ombro de Hazan. — Eu tenho assuntos pendentes para resolver, se me der licença. — Aurora acenou com a cabeça, virou de costas e caminhou em direção à saída do orfanato.

    — Aurora, o orfanato estará sempre de portas abertas para recebê-la.

    Aurora respondeu com um aceno de mão sem olhar para trás.

    — Hazinho, vem comigo, eu quero te mostrar o meu quarto! — Lunna se apressou, puxando o rapaz pelo pulso em direção à entrada do orfanato.

    — Ei, eu prometi a ele que ensinaria sobre a geografia local com os meus livros primeiro! — Aspen se aproximou, puxando Hazan pelo braço livre.

    Cassandra sorriu ao observar a felicidade dos irmãos enquanto adentravam o orfanato. — Crianças, o jantar já está pronto! Comam antes de se divertirem!

    Liara se aproximou de Cassandra, conduzindo-a em direção ao orfanato.

    Adentrando o recinto, Hazan não pôde evitar observar o estado melancólico do local. Construído com madeira e argila, as paredes exibiam pequenos desgastes, o teto apresentava algumas rachaduras, assim como o chão. Mesmo diante dessas condições, tudo estava limpo e bem cuidado.

    Ao chegarem na sala de jantar, avistaram uma grande mesa circular de madeira que ocupava o centro do espaço, com um pano bordado em detalhes azuis que lembravam flores. Um jarro de flores frescas estava no meio da mesa, trazendo um toque acolhedor.

    Uma panela de aço exalava um aroma tentador, o cabo de uma concha sobressaindo dela. Tigelas de madeira e colheres estavam dispostas ao lado de cada assento, e uma jarra de água fresca completava a composição.

    À medida que todos se acomodavam à mesa, Zara e Rashid era os únicos a exibirem sorrisos ansiosos. Liara chegou acompanhada de Cassandra, empurrando com delicadeza a cadeira de rodas da mulher até o lugar à mesa. E então, a mulher juntou ambas as mãos e começou a falar:

    — Ó Poderosa Unitas, Mãe Celestial, reunimo-nos mais uma vez nesta noite, expressando nossa eterna gratidão por proteger Aspen e Lunna durante sua ausência. Estamos todos felizes com o retorno de seus filhos ao lar, e por nos agraciar com esta mesa farta. Pedimos suas bênçãos sobre cada um de nós aqui presente, e especialmente sobre Hazan e Aurora, os jovens que desviaram de seus caminhos para socorrer seus filhos. Agradecemos.

    Um gesto solene, Cassandra retirou a tampa da panela, deixando o delicioso aroma do ensopado envolver a sala. Serviu generosas porções para todas as crianças, que começaram a comer animadas. Cassandra estendeu a tigela para Hazan, mas ele ergueu a mão.

    — Tem sopa demais aí, estou satisfeito com meia tigela.

    Aspen e Lunna se entreolharam, os olhos arregalados, e Aspen foi o primeiro a falar. — Quem é você? Meia tigela? Você comeu feito um esfomeado mais ce…

    Um olhar rápido de Hazan foi o suficiente para silenciar Aspen. No entanto, Cassandra insistiu, enchendo ainda mais a tigela de Hazan.

    — Você salvou a vida dos meus filhos. O mínimo que posso fazer é garantir que esteja bem alimentado. Coma, meu jovem. O vigor vem da boa alimentação.

    Relutante, aceitou a gentileza de Cassandra. Mergulhou a colher na sopa, levando-a à boca. Seus olhos se arregalaram em surpresa ao sentir o sabor harmonioso dos legumes, o tempero robusto da carne e o caldo encorpado que conferia leveza ao prato.

    — Isso é incrível! — elogiou, enchendo a boca sem parar.

    — Irmã Lunna, foi ele mesmo que os salvou de um pujante? — perguntou Zara, lançando um olhar desconfiado para Hazan.

    Lunna respondeu com um largo sorriso. — Claro que sim! Eu vi com meus próprios olhos, ele fez assim! — Fez gestos exagerados com os braços. — E depois assim! O pujante nem sabia o que o atingiu, foi sensacional!

    — É verdade que ele não usa Aura nem Mana? — Rashid questionou, ainda cético em relação às palavras de sua irmã.

    — O próprio Agnis, da “Pena Azul” confirmou pessoalmente! É incrível, não é?

    O silêncio pairou sobre a mesa, restando apenas o mastigar incansável de Hazan. Rashid e Zara olharam para o lutador, que estendia sua tigela vazia para Cassandra sempre que terminava de comer. Em seguida, voltaram seus olhares para Aspen e Lunna, com expressões duvidosas.

    — Ele é realmente incrível, seus pivetes! Se não fosse por ele e pela Srta. Aurora, acho que não teríamos sobrevivido lá fora… 

    Zara e Rashid exibiram um largo sorriso. — Está tudo bem, irmãzona, acreditamos que a Srta. Aurora foi incrível!

    — E-eu t-também a-acredito que o H-Hazan t-tenha s-sido… — acrescentou Liara, timidamente.

    — Por que a gente não fala de outra coisa? — Aspen indagou. — Sobreviver lá fora nem foi tão ruim assim…

    — Ficamos mais de duas quinzenas fora de casa, Aspen, é claro que foi ruim! Passamos fome, sede, dormir era quase impossível, e ainda fomos escravizados! — Lunna contestou, a voz chorosa, as lágrimas voltando a cair.

    — Por que você sempre tem que ser tão dramática sobre tudo? Finalmente estamos em casa, não precisa se fazer de coitada pra ter a atenção de todo mundo!

    Aspen bateu ambas as mãos na mesa, se levantando e subindo uma escadaria que rangeu a cada passo. — Perdi a fome!

    Lunna voltou a enxugar as próprias lágrimas, e Cassandra estendeu a mão para a dragoniana, fazendo um carinho em seus cabelos. 

    Mantendo a tranquilidade, Hazan terminou de comer sua sexta tigela de sopa. Limpou a boca e se levantou. — Eu resolvo.

    De frente para a porta do quarto, deu duas batidas. — Aspen? Tá aí?

    — Me deixa em paz.

    — Você vai abrir essa porta ou eu preciso fazer que nem na fortaleza?

    — Hunf, você não teria coragem!

    Bam!

    Um forte empurrão fez a fechadura da porta quase ceder.

    — E-espera, eu abro, eu tô abrindo!

    O quarto dos irmãos mais velhos era comum e desgastado como o resto dos cômodos.

    Uma estante de carvalho maciço, envelhecida pelo uso, dominava um canto sombreado do quarto, suas prateleiras repletas de livros. No topo da estante, um lampião de bronze lutava para espalhar uma luz fraca, lançando sombras dançantes sobre os livros.

    Do lado oposto da estante, um beliche robusto, talhado em madeira escura.

    Hazan percorreu com o olhar os títulos dos livros, lendo títulos que contavam narrativas fantásticas que ecoavam as lendas e os mitos do reino, além de tratados geográficos que delineavam os limites conhecidos da terra.

    No meio dessa coleção, um livro revestido em bronze reluzente capturou sua atenção. Ele o retirou com cuidado da prateleira, lendo o título gravado na capa.

    — “Teoria Aplicada da Mana”…

    — Esse é o m-meu t-tesouro pessoal… — Aspen interveio, percebendo o interesse de Hazan.

    — Mana… É aquilo que Edgard usou contra mim? — questionou Hazan, seus olhos buscando uma resposta nos de Aspen.

    — O quê? Não! Aquilo foi Aura! São correntes de energia muito distintas! — respondeu Aspen, com convicção, pegando o livro amado da mão de Hazan e colocando de volta na prateleira.

    Um silêncio se instalou enquanto Hazan continuou a encará-lo.

    — O-olha, e-eu… Só fiquei irritado, aquele jeito dela acaba trazendo preocupações para todo mundo, e eu não quero ouvir sermão!

    — Tudo bem, Aspen.

    Aspen encontrou o olhar reconfortante de Hazan, que colocou ambas as mãos em seus ombros. — Não precisa mais fingir. Você está em casa agora, e ninguém aqui vai te fazer mal. — Hazan sorriu, transmitindo confiança. — Você está seguro..

    A visão do elfo se tornou embaçada, uma sensação úmida percorrendo pelos olhos. Cerrou os dentes, abaixando a cabeça, as lágrimas escorrendo. — E-eu não queria preocupar n-ninguém…

    — Eu sei, mas você fez o que precisava ser feito. Você é forte, se anime! — Hazan apertou os ombros do elfo, dando alguns tapas e endireitando a postura do garoto.

    Pela primeira vez, Aspen se permitiu avançar, abraçando o rapaz.

    — Olha só, a fechadura da porta está torta! — A voz animada de Lunna ecoou, quebrando o momento de emoção.

    Ao ouvir a voz da irmã, Aspen empurrou Hazan para longe, virando-se de costas e secando as lágrimas com as costas das mãos. — F-fui eu! — admitiu, sua voz ainda embargada. — Algum problema com isso?

    Lunna sorriu ao se aproximar do irmão. — Se foi você, então está tudo bem! Afinal, sei que vai consertar, assim como sempre fez com tudo o que quebrava aqui em casa! Você é tipo o nosso faz-tudo!

    Aspen retribuiu o sorriso, abraçando a irmã com força. — Desculpe por antes, tudo o que passamos foi realmente difícil…

    — Também não devia ter sido tão dramática, me desculpe…

    Depois de alguns momentos abraçados, os dois se afastaram com uma careta. — Eca, nunca nos abraçamos por tanto tempo, é estranho! — reclamou Lunna.

    — Concordo, quase não estava aguentando o cheiro do seu cabelo sujo! — Aspen brincou.

    — Ei, não fale assim!

    Em uma reconciliação familiar, os dois irmãos continuaram a trocar brincadeiras, aliviando a tensão do momento anterior.

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