Capítulo 20 - Corruptor.
O ranger pesado da porta ecoou pela escuridão quando Hazan e Aurora a empurraram.
O ar ali dentro era espesso, carregado com a poeira do tempo e algo mais… uma energia pulsante que vibrava no fundo dos ossos.
A câmara principal se revelava como uma arena esquecida pelo tempo. Os muros altos, enegrecidos pelo passar das eras, eram adornados com símbolos arcanos que serpenteavam pelas rachaduras.
Hazan rodou o ombro, ainda sentindo a ardência da última queda. Seus olhos percorreram o salão, absorvendo cada detalhe.
— Isso grita “problema” — murmurou, os passos ecoando na imensidão vazia.
Aurora sentiu algo vibrar intensamente contra seu corpo. A princípio, pensou ser apenas uma reação à aura sufocante do local, mas logo percebeu: a Pupila dos Deuses, guardada em seu bolso, estava tremendo de maneira descontrolada, como se estivesse prestes a explodir.
Com uma expressão sombria, puxou a lente relíquia do bolso e a observou com atenção.
As pequenas rachaduras que já marcavam sua superfície agora se expandiam velozmente, espalhando-se cada vez mais rápido.
— Isso não é bom… — sussurrou, a voz tensa.
Hazan olhou para o artefato, franzindo o cenho.
— Merda, o que tá acontecendo com essa coisa?
Antes que Aurora pudesse responder, a Pupila dos Deuses emitiu um último e intenso clarão antes de se partir em sua mão. Os fragmentos caíram no chão, emitindo um tilintar abafado. O silêncio que se seguiu foi sufocante.
Aurora encarou os cacos reluzentes em sua palma, o choque estampado no rosto.
— O ambiente aqui… está tão saturado de corrupção que a lente simplesmente não suportou — murmurou.
Foi então que o chão tremeu. Um estrondo reverberou pelas paredes, e o brilho das manalitas intensificou-se como se estivessem cheias de mana. O ar ganhou mais peso.
O chão ao redor da arena começou a quebrar, revelando um abismo escuro onde as pedras caíam sem fazer barulho de impacto. O piso irregular, formado por pedras ancestrais, rangia sob os passos cuidadosos de Aurora. Fendas no solo pulsavam com um brilho azulado, um batimento lento e constante, como se a masmorra estivesse viva.
As manalitas estavam mais brilhantes do que nunca.
Aurora se movia como uma sombra, adagas prontas, olhos varrendo cada detalhe do ambiente. Cada sombra poderia ser uma armadilha, cada sopro de vento, um prenúncio.
Hazan acompanhava ao lado, ombros tensos, punhos cerrados. A intuição gritava em sua mente, e a ausência de inimigos era pior do que a própria luta.
— Isso tá errado. — A voz saiu baixa, um grunhido desconfiado.
Aurora não desviou o olhar. Sua postura era impecável, o corpo relaxado na tensão calculada de quem sempre espera o pior.
— Ele está aqui. Nos observando.
O som cortou o silêncio — um deslocamento rápido de ar, algo se movendo no vazio. Hazan mal teve tempo de reagir antes que o corruptor saltasse da escuridão.
Sua pelagem cinza-prateada refletia o ambiente ao redor, tornando-o um fantasma esfomeado, surgindo do nada. Os olhos vermelhos brilhavam não apenas com fome, mas com uma vontade irracional de matar.
Um borrão, velocidade irreal. Hazan girou sobre os calcanhares e se preparou para esquivar.
A abocanhada foi tão forte, que mesmo evitando o ataque, sentiu um zunido agudo do lado esquerdo do ouvido. Seu corpo deslizou para trás, o tênis derrapando pelo chão.
Aurora deslizou os dedos sobre suas braçadeiras alvas. Rolou para o lado e atirou uma adaga de gelo, criada no instante. A lâmina voou rápida, certeira, mas atravessou o vazio. O monstro desapareceu antes de ser atingido.
— Tsc! Um lobo do tipo espectral. Ele pode se fundir com o ambiente. — A irritação na voz de Aurora era evidente. — Não ataque no impulso!
Hazan trincou os dentes. O peito subia e descia, inflado pela respiração pesada.
— Eu não pretendo ficar parado.
O corruptor ressurgiu num piscar de olhos. Atrás dele.
O instinto gritou antes mesmo que pudesse pensar. Hazan girou, um direto disparado com força bruta.
O punho encontrou o vazio. A coisa já não estava mais ali. Uma sombra se dissolveu no ar.
Confiando mais uma vez em seu instinto, Hazan tensionou seu ombro, pois tinha certeza do que estava por vir.
As presas se cravaram fundo, rasgando carne e músculo sem piedade. O gosto ferroso do sangue espalhou-se na boca do corruptor quando ele mordeu o ombro do rapaz.
Mas o lutador não se importou.
O monstro puxou, tentando arrancar um pedaço dele — mas Hazan cravou os pés no chão. O braço ferido não recuou. Em vez disso, se moveu para dentro.
Antes que o corruptor percebesse, os dedos daquele homem já haviam se fechado em torno de sua língua áspera e quente.
O monstro rosnou, debatendo-se. Aurora arregalou os olhos.
Ele não vai…
Mas Hazan já tinha decidido.
Seus dedos afundaram com força brutal na carne sensível. O rugido da criatura sacudiu o ar. Ela tentou recuar, mas Hazan segurou firme. Não havia escapatória.
— Sai… de cima… de mim!
Com um rugido próprio, explodiu em ação. Cada músculo do seu corpo se tensionou ao máximo enquanto girava o quadril e arremessava a fera por cima do ombro.
SCRASH!
O chão tremeu quando o corruptor bateu contra a pedra. O ar vibrou com o choque, poeira e sombras se espalhando ao redor. A criatura se contorceu, atordoada, um rosnado de puro ódio ecoando de sua garganta.
Aurora aproveitou a oportunidade e saltou, lançando adagas de gelo no estômago exposto do lobo.
Mas o corruptor já não estava lá. Como um espectro, moveu-se para longe, deixando apenas o gosto amargo da falha.
Hazan endireitou-se, sangue escorrendo pelo braço, os olhos fixos na fera cambaleante.
Ele cuspiu no chão, sacudindo o braço ensanguentado.
— Tsc… ruim de briga.
O corruptor se ergueu, olhos brilhando em fúria assassina.
— Você precisa parar de atacar dessa forma! — Aurora gritou, preparando outra leva de lâminas de gelo ao seu redor. — Preste atenção nos padrões dele e espere eu criar uma abertura!
Ele sequer ouvia. A voz de Aurora não passava de meros zumbidos.
Seu braço ainda queimava, mas não podia parar. Passou a mão nos ferimentos e flexionou os dedos, sentindo o próprio sangue quente escorrendo.
— Ele é rápido, tem uma habilidade irritante, e uma mordida quase fatal. — Mal conseguiu conter um sorriso de canto. — Hehe, estamos sendo caçados.
A criatura andava formando um círculo, ansiando um momento de fraqueza.
Num instante, o monstro se lançou para frente novamente. Desta vez, Aurora antecipou, criando um muro de gelo bem na frente da fera.
CRACK!
O corruptor atravessou a parede, mas perdeu o equilíbrio quando suas patas tocaram o chão escorregadio. Hazan enxergou uma oportunidade. Seu punho acertou a lateral da criatura, forçando-a para trás, mas não o suficiente. O lobo desapareceu na escuridão novamente.
Eles estavam descoordenados.
Aurora estreitou os olhos, sentindo a frustração fervilhar dentro dela. Não bastava habilidade. Se não lutassem juntos, não teriam chance.
O corruptor reapareceu, suas garras cortando o ar, mas Aurora já não estava lá. De um salto preciso, aterrissou ao lado de Hazan.
— A próxima vez que ele aparecer, eu vou prendê-lo. Você finaliza. — Sua voz era cortante, sem espaço para discussão.
Hazan franziu o cenho. — Eu vou fazer as coisas do meu jeito. — Seu tom veio decidido.
O silêncio caiu sobre eles novamente. A escuridão ao redor parecia se contrair, como se a masmorra contivesse a respiração. Então, veio o ataque.
O corruptor emergiu das sombras, mais rápido do que antes. E Hazan avançou contra ele. Evitou duas abocanhadas que passaram rente ao seu pescoço, e buscou trocar golpes de igual para igual com a fera. A diferença de altura, peso e alcance não o favorecia nem um pouco.
Preciso forçá-lo a desaparecer nas sombras, e prever seu próximo movimento! Com um ataque certeiro, tenho certeza que posso acabar com isso.
Aurora observou a luta de longe com os dentes cerrados.
Ele não entende que isso é inútil?! Estamos falando de um corruptor! Não adianta tentar rivalizar com um monstro assim!
O espectro recuou num salto curto, músculos tensionados como molas prestes a disparar. Então explodiu para frente — garras prontas para rasgar o peito de Hazan.
O mundo desacelerou por um instante.
Hazan girou rente ao ataque, o ar sibilando ao seu redor. O punho se fechou, os nós dos dedos se contraindo em um golpe preciso.
[Direto de esquerda!]
O impacto foi brutal. A fera girou no ar, quase sendo arremessada para fora da arena.
Aurora assistiu, o coração martelando. Ele estava superando expectativas. Mas do que adiantava se agia como um monstro indomável, sem coordenação, sem controle? Era como se estivesse tentando tomar à força o território de outra criatura selvagem.
E a luta não parava.
Hazan acumulava cortes e hematomas cada vez que o combate se estendia. Aurora fazia o possível para cobri-lo: barreiras surgindo no último instante, adagas de gelo disparadas em aberturas momentâneas, mas a falta de sincronia entre os dois era evidente.
E ela estava cansando.
Não lutava diretamente, mas sem seu suporte, aquele idiota já teria tombado há tempos. A Nevasca drenava sua mana mais rápido do que se lembrava, e seu corpo protestava. As pernas pesavam. Os pulmões queimavam. Ela odiava sentir isso.
Porque ele estava na linha de frente. Ele estava lidando com o corruptor. Ele estava enfrentando o perigo real.
Então como o corpo dela ousava fraquejar?
Isso era inadmissível.
A tensão era sufocante. Um corruptor não era um monstro irracional. Ele sabia farejar fraqueza.
Assim que a criatura se abalou com um de seus ataques no rosto, Hazan preparou outro ataque.
Mas ele atingiu o vazio.
A criatura tinha sumido mais uma vez.
Ele esperou o ataque vir, os músculos se preparando para reagir.
Mas, dessa vez, ele não era o alvo.
Um arrepio percorreu sua espinha.
Uma sombra se ergueu atrás de Aurora.
Os dentes da fera estavam a um instante de rasgar carne e osso.
Mas antes que pudessem se cravar em Aurora, algo se moveu entre ela e a escuridão.
Hazan.
O corruptor afundou as presas no ombro, sangue quente jorrando e manchando sua roupa em segundos. Aurora só enxergava as costas do lutador.
Hazan nem gritou. Prendeu o lobo mais uma vez entre seus braços.
O monstro rosnou, cravando as garras nas costas de Hazan, tentando rasgá-lo em tiras — mas ele segurou firme. Trincou os dentes, os músculos tremendo em esforço bruto.
Era agora.
Aurora mergulhou para frente, a lâmina de gelo surgindo em sua mão. Esperava enterrar a lâmina no flanco exposto da fera, mas ela se debateu no momento exato. Sua adaga se cravou em um dos olhos.
O lobo soltou um uivo gutural e se dissolveu em sombras, escapando para longe, reaparecendo do outro lado da arena.
Aurora recuou, respirando fundo. O sangue ainda pulsava quente em suas veias, o coração martelando contra as costelas.
Lançou um olhar para Hazan, que flexionava os dedos ensanguentados, a expressão ilegível.
— Por que diabos você fez isso? — a irritação na voz dela não mascarava a preocupação que tentava esconder.
— Vou responder quando a gente completar essa missão — ele respondeu com um sorriso.
Aurora franziu o cenho.
Ele estava brincando?
Aquela calma absurda… O jeito que ele falava como se tivesse apenas bloqueado um chute, e não colocado o próprio corpo no caminho das presas de um monstro assassino…
— Você… — ela respirou fundo, engolindo um xingamento. — Você nem consegue se cuidar! Tá tão ansioso pra morrer!?
A resposta veio sem hesitação, com uma firmeza quase irritante:
— Você quer vencer?
O mundo ao redor parecia tremer em sombras distorcidas, mas seu olhar encontra Hazan — sujo, exausto, os músculos retesados pela dor e a pele marcada por cortes e hematomas.
— Você precisa confiar em mim — Aurora finalmente falou.
O pedido escapou de seus lábios como um segredo, uma súplica velada. Hazan não desvia os olhos. Há algo diferente ali, uma faísca de compreensão, um momento suspenso entre dúvida e certeza.
— Com uma condição. Você confia em mim também.
A hesitação de Aurora dura um segundo, um instante de conflito interno refletido na tensão de seus ombros. Mas então, lentamente, ela assente. Não há tempo para incertezas.
Pela primeira vez, eles estão do mesmo lado. Pela primeira vez, não estão sozinhos.
O corruptor soltou um rosnado gutural, os olhos rubros estreitando-se ao sentir a mudança no ar. Antes, havia hesitação, brechas fáceis de explorar. Não mais.
A criatura se moveu em um arco cauteloso, farejando uma abertura, mas não encontrava fraqueza na nova postura dos oponentes.
Aurora correu pela direita. O ar ao seu redor se condensou, e através de um círculo mágico surgindo na palma de suas mãos, espinhos de gelo emergiram do solo em um padrão calculado.
O sangue escorreu de seu nariz e boca na mesma hora.
[Conjuração de terceiro círculo: Armadilha Espinhosa!]
Hazan já estava posicionado no lado oposto, onde a criatura não era capaz de enxergar. Isso obrigou o monstro a se manter em constante movimento, sem espaço para ataques diretos.
A fera avançou, rápida demais para seu tamanho. Um olhar vermelho como sangue brilhou na penumbra, fixos em Hazan. Ele enxergou o ataque chegando um instante antes de acontecer.
O corpo reagiu antes da mente. Ele se agachou, e o golpe passou a centímetros de sua cabeça. Num giro fluido, o punho subiu em um arco perfeito e colidiu com o focinho da criatura.
O impacto foi brutal. Ossos estalaram sob o peso do golpe. O corruptor foi arremessado para trás, direto contra os espinhos de gelo de Aurora. Um rosnado de dor vibrou na garganta do monstro, ecoando pela arena.
Aurora já estava em movimento. A adaga em sua mão brilhou em luz gélida, o fio da lâmina cintilando com um brilho letal. Seus olhos encontraram os de Hazan por um breve instante, e ele entendeu o plano sem que uma palavra precisasse ser dita.
Hazan não hesitou. Os pés empurraram o chão com força, e seu corpo disparou. Ele saltou, atravessando o espaço entre ele e o monstro em um instante.
O braço se enfiou na mandíbula da fera, forçando-a a permanecer aberta. Os dentes afiados perfuraram sua pele, mas ele não recuou. O gosto metálico do sangue se espalhou em sua boca, mas a dor era apenas um detalhe insignificante diante da necessidade de terminar aquilo.
O monstro se contorceu, suas garras gigantescas tentando alcançar Hazan, mas ele segurou firme.
Aurora viu a chance. Seus pés deslizaram pelo gelo enquanto ela girou o corpo, o peso da lâmina guiado por um propósito absoluto. A adaga deslizou no ar e se cravou fundo no peito da besta.
Stuck!
Hazan sabia que a batalha tinha acabado no instante em que a adaga de Aurora perfurou o peitoral da criatura. E, mesmo sem perceber, já estava sorrindo ao vê-la acabar com o monstro maldito.

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