Capítulo 25 - Lições de Combate
O silêncio do quarto era quebrado pelo farfalhar das cortinas, agitadas por uma brisa noturna. As crianças jantavam no andar de baixo, e o brilho amarelado da lamparina deixava sombras alongadas nas paredes. Hazan, de pé ao lado da cama, encarava Cassandra com olhos atentos, absorvendo suas palavras.
— Como isso seria possível? — questionou, a voz baixa, mas com um ar de surpresa genuína.
Cassandra cruzou os braços, desviando o olhar para a janela. — Durante minhas viagens, ajudei uma senhora que estava sendo caçada por mercenários. Descobri depois que ela não era uma mulher comum. Era um oráculo.
Hazan franziu o cenho. — Oráculo? Ela via o futuro ou algo assim?
Cassandra soltou um riso breve, meneando a cabeça. — Mais ou menos. Oráculos são pessoas que tomam emprestado um fragmento minúsculo de divindade por meio de entidades. No caso dela, uma força que permitia vislumbrar caminhos ocultos. Como agradecimento por salvar sua vida, ela leu minha sorte… E foi por isso que vim para Ariasken.
A revelação fez Hazan esfregar a nuca, pensando sobre a situação.
— Naquela época, eu tinha acabado de me aposentar… Recebi um punhado de terras como recompensa, mas jamais desejei permanecer na capital. — Sua voz, serena e pausada, carregava o peso de memórias antigas. — Pensando bem… creio que falhei em demonstrar a devida gratidão àquela senhora.
Hazan assentiu. Se o tal oráculo tinha realmente o poder que Cassandra mencionava, talvez houvesse esperança para recuperar suas memórias. — E onde ela tá agora? Ela tá viva?
— Provavelmente. Oráculos costumam viver bastante. — Cassandra estreitou os olhos, ponderando. — Ela morava nos Subúrbios de Sohen. Mas aquele lugar estava dominado por facções criminosas, eu não me surpreenderia se ela se mudasse.
Sohen. O nome ressoou em sua mente como uma promessa distante. — E quão longe fica Sohen daqui?
Cassandra suspirou. — Bastante longe. Ariasken é isolada, cercada por terras difíceis. A forma mais rápida de chegar lá seria por navio.
— E quanto tempo levaria essa viagem?
— Depende do humor do mar — respondeu, dando de ombros. — Se tudo correr bem, de uma a duas semanas de navegação. Se o tempo virar, pode demorar mais.
Hazan baixou os olhos, deixando o olhar se perder no chão. As missões do sistema lhe devolviam fragmentos do passado — nítidos, diretos, quase frios. Lembrava-se das técnicas, dos nomes, de ecos distantes que nem sabia de onde vinham. E isso, por mais estranho que fosse, era útil. Mesmo com o risco real de falhar… e morrer por isso.
Era justamente por essa razão que treinava tanto. Queria estar pronto. Queria viver. Mas agora havia algo mais — uma possibilidade que mudava tudo. Se encontrasse o tal oráculo, suas memórias retornariam de uma só vez. E, com elas, talvez a resposta para a pergunta que o consumia: por que, afinal, foi lançado naquele mundo tão estranho?
Até que esse encontro acontecesse, porém, não havia muito a se fazer além de continuar lutando. Sobreviver. Tornar-se mais forte. Um passo de cada vez, um dia após o outro.
Agora, conseguia enxergar um destino à frente. Um vilusmbre de esperança.
Sohen.
Ergueu os olhos para Cassandra e um sorriso sincero se formou em seus lábios. — Obrigado.
Ela arqueou a sobrancelha, exibindo um meio sorriso. — Pode me agradecer com trabalho braçal. Aposto que tem muita lenha para cortar por aqui.
O céu sobre Ariasken se tingia com os tons cálidos do entardecer, derramando um dourado suave sobre a Praça Central.
A cidade pulsava em vida: mercadores bradavam suas ofertas, crianças serpenteavam entre os transeuntes e artesãos exibiam suas criações sob toldos de cores vivas. Contudo, bem no coração da praça, uma cena destoava daquele cotidiano vibrante.
Hazan estava de ponta-cabeça, com as pernas para o ar, equilibrado apenas sobre as mãos, realizando flexões com um ritmo firme e constante. Seus músculos tensos demonstravam controle, enquanto suor deslizava pela pele morena. O olhar concentrado não vacilava, mesmo sob os olhares curiosos e perplexos da multidão ao redor.
Alguns cochichavam entre si, outros apenas observavam, sem saber se aquilo era um tipo de exibição ou uma simples excentricidade.
Aurora surgiu entre as pessoas, cruzando os braços ao ver a cena inusitada. Com um suspiro teatral, esperou ele terminar. Quando finalmente colocou os pés no chão e se ergueu, ela arqueou a sobrancelha e soltou um comentário sarcástico:
— Você realmente não conhece a palavra “descanso”.
Hazan passou o antebraço pela testa, secando o suor.
— Você está atrasada. Eu tô por aqui desde manhã, por que demorou tanto?
Aurora fez uma careta de irritação, mas não respondeu. Apenas deu de ombros e acenou para que ele a seguisse.
— Então, qual é o plano? — Hazan perguntou, andando ao lado dela enquanto alongava os músculos.
— Primeiro, precisamos de dinheiro. Meu estoque está acabando.
Hazan ergueu uma sobrancelha.
— Você tinha dinheiro?
Ela deu de ombros, como se aquilo não fosse grande coisa.
— Algumas moedas de ouro que achei na fortaleza.
Um sorriso debochado surgiu no rosto de Hazan.
— “Achou”? Você quer dizer “roubou”, certo?
Ela não se deu ao trabalho de responder.
As ruas estavam agitadas. Bandeiras coloridas eram penduradas por comerciantes e moradores, balançando ao vento com os preparativos para o Festival do Despertar. O aroma de especiarias e assados flutuava pelo ar, enquanto músicos de rua ensaiavam melodias alegres.
No meio da movimentação, Aurora fez uma curva brusca em um beco estreito. Hazan a seguiu sem hesitar. A passagem os levou até uma loja discreta, marcada por um suporte de madeira com correntes que sustentavam uma placa desgastada. Nela, uma pintura de escudo e espada cruzados indicava o propósito do estabelecimento.
Ao entrarem, o cheiro de couro e metal recém-forjado tomou o ambiente. Fileiras de armas e equipamentos de aventura estavam dispostas em estantes rústicas. O dono da loja, um homem de idade indefinida, com uma barba desgrenhada e olhos cansados, ergueu o olhar quando viu Aurora.
— Ora, se não é você — disse, com um aceno de cabeça respeitoso.
Mas quando os olhos pousaram em Hazan, a expressão ficou impassível, quase fria. Sem se abalar, o lutador apenas retribuiu o olhar com um aceno breve.
Aurora não perdeu tempo. Começou a recolher frascos de poções, uma mochila reforçada e outros itens que Hazan sequer reconhecia. Enquanto isso, ele se aproximou do balcão e depositou suas moedas de cobre sobre a madeira envelhecida.
— O que posso comprar com isso?
O dono da loja lançou um olhar demorado para as moedas, soltando um longo bocejo. Sem uma palavra, apontou para um balde no canto da loja, cheio de equipamentos gastos e enferrujados.
Aquelas missões realmente pagavam uma mixaria… Bom, é uma pena, mas pelo menos um de nós vai estar bem equipado.
Guardou as moedas no bolso e encarou Aurora. Enquanto separava o que iria comprar, a polariana soltou um comentário despretensioso.
— Ei, separe suas melhores luvas e botas de couro para ele.
O dono da loja bufou, mas obedeceu. Minutos depois, Hazan vestia os novos equipamentos.
As luvas de couro eram robustas, reforçadas nas palmas para maior aderência e resistência. O couro se moldava bem às mãos, flexível o bastante para não restringir seus movimentos.
Já as botas eram de cano médio, feitas do mesmo material, com solas resistentes e costuras reforçadas, garantindo firmeza e estabilidade para lutas e longas caminhadas.
Além disso, uma pequena mochila de couro repousava em suas costas. Simples, mas funcional, com alças bem ajustadas e bolsos discretos para armazenar pequenos suprimentos.
Aurora o avaliou com um olhar crítico antes de assentir com um sorriso satisfeito.
— Agora, sim, está começando a parecer com um lutador.
A porta pesada da Guilda Pena Azul se abriu com um rangido discreto, mas o suficiente para interromper momentaneamente a atmosfera animada do salão.
O som de canecos tilintando e vozes trovejantes foi substituído por um silêncio incômodo. Alguns desbravadores, que antes riam e conversavam despreocupados, interromperam suas falas para lançar olhares avaliativos para os recém-chegados.
Hazan e Aurora cruzaram a soleira sem hesitar, indiferentes à atenção repentina. Aquela recepção não era nenhuma novidade.
As histórias sobre como haviam limpado uma masmorra sozinhos ainda circulavam pelos corredores, e o fato de Hazan aceitar missões que ninguém queria só alimentava rumores. Pouco pagamento para muito esforço? Isso não fazia sentido para a maioria dos desbravadores, que preferiam ganhos rápidos e perigos emocionantes.
Aurora também não tinha uma boa reputação. Alguns diziam que ela se envolvia constantemente com grupos criminosos, entrando nas favelas com muita frequência.
Sem se importar com os sussurros ao redor, seguiram diretamente até o balcão onde Mirna, a recepcionista da guilda, estava organizando uma pilha de pergaminhos. Mirna levantou o olhar ao perceber a presença dos dois e sorriu com um misto de educação e familiaridade.
— Bem-vindos de volta — cumprimentou ela com um sorriso caloroso.
Hazan retribuiu com um breve aceno. Mirna havia se acostumado com a presença do rapaz ali. Todos os dias, ele era o primeiro a entrar pela porta da guilda ao amanhecer, e requisitava missões que a maioria dos desbravadores não estava disposto a cumprir.
Aurora apoiou os cotovelos no balcão.
— Chegou alguma missão requisitada especificamente para nós dois?
Mirna franziu as sobrancelhas, vasculhando os registros e as cartas que chegavam à guilda diariamente.
— Não… Nada até o momento.
Aurora trocou um olhar rápido com Hazan. A missão do Sacerdote já deveria ter chegado. Ainda assim, assentiu, aceitando a informação sem demonstrar decepção.
— Nesse caso, tem alguma missão que pague vinte moedas de prata ou mais?
A recepcionista hesitou, desviando o olhar para a prancheta em suas mãos.
— Bom… — Mirna pigarreou. — Muitos desbravadores pegaram missões recentemente. Algumas equipes requisitaram mais de uma…
Ela evitou contato visual, visivelmente desconfortável.
Aurora estreitou os olhos. Era incomum um grupo pegar duas missões ao mesmo tempo. O normal era concluir uma antes de assumir outra, a menos que fossem absurdamente experientes, bem equipados ou tinham um motivo específico — como querer impedir que outras equipes conseguissem trabalho. Aurora entendeu rapidamente. Alguém queria dificultar as coisas para eles.
— Engraçado — começou Hazan, elevando o tom —, esse lugar tá cheio de gente comendo e bebendo feito preguiçosos, mesmo tendo tantas missões pra cumprir.
O ar pareceu pesar. Alguns desbravadores cerraram os punhos ao redor de suas canecas. Outros simplesmente observaram, esperando a reação inevitável.
Não demorou muito. Um homem robusto, de cabeça raspada e barba rala, se levantou lentamente de uma mesa no canto. Sua armadura rangeu enquanto ele cruzava o salão. O machado enorme preso às costas deixava claro que era alguém acostumado à violência.
Ele parou diante de Hazan, cruzando os braços e o encarando de cima para baixo.
— Ouvi seu comentário… Está me chamando de preguiçoso, é isso?
Lá no fundo, o grupo do homem já se ajeitava como plateia de taverna — risadinhas mal contidas, olhos atentos, prontos para o espetáculo.
Hazan lançou um olhar breve, avaliando o sujeito da cabeça aos pés enquanto tirava cera do ouvido com o mindinho.
Alto. Braços longos. O alcance dele provavelmente não é brincadeira… Mas havia algo fora do lugar. Ele não tá perto demais? Isso pode jogar a meu favor.
Continuou fitando o guerreiro, cujo olhar denunciava o real motivo daquela aproximação: uma luta.
Então é isso? Quer me testar. Um calor familiar se acendeu no peito. Isso tá ficando interessante. Vamos ver do que um desbravador é feito.
— Se isso te ofendeu — disse Hazan, após um breve silêncio — talvez tenha encontrado sua resposta.
Um “oooh” percorreu o salão como uma onda invisível. O guerreiro rangeu os dentes com tanta força que quase fumegava pelas orelhas.
— Sempre tem um metidinho de fala afiada… E, quer saber? Adoro dar uma lição em moleques como você!
O guerreiro não hesitou. Com um movimento brusco, avançou com um soco direto, mirando o rosto de Hazan.
Mas o punho encontrou apenas o vazio.
Quando o golpe veio, direto e cheio de raiva, Hazan não apenas se esquivou — dançou ao redor dele num movimento rápido. Deu um passo para trás com o pé de apoio e, em seguida, deslizou o outro pé para o lado, traçando um “L” invisível no piso de concreto.
O guerreiro, ao contrário, parecia preso a uma linha reta.
Hazan surgiu na lateral dele, agora numa posição mais vantajosa, os olhos brilhando com a empolgação da luta.
— Não é assim que se luta, campeão — murmurou próximo ao guerreiro, dando alguns tapinhas nas costas dele com um sorriso de canto. — Você precisa achar a distância certa… ou vai acabar conversando com o vento.
O desbravador bufou e, no reflexo, tentou agarrá-lo, talvez pensando que a força bruta resolveria o problema.
Mas o jovem já não estava mais ali.
Se abaixou no último instante, escapando por baixo dos braços largos e recuando com leveza, como se fosse fácil demais. E, para ele, talvez fosse mesmo.
— Respira aí, grandão — provocou, ajeitando a gola da blusa —, você ainda tá na primeira aula.
O salão inteiro observava o recente conflito, surpresos com o desenrolar da situação.
— S-seu pirralho arrogante! — rugiu o desbravador, puxando o machado das costas com tanta força que os copos nas mesas tilintaram.
Alguém pigarreou no canto, outro se esgueirou para longe, empurrando a cadeira com o quadril, tentando não fazer barulho demais. Aquilo já não era mais um simples desentendimento.
Sem aviso, o guerreiro disparou. Os olhos estavam injetados, os dentes cerrados, os músculos tensionados como cordas prestes a romper. O machado veio num arco brutal — um golpe que teria dividido um banquinho ao meio. Hazan apenas inclinou o tronco, sereno, deixando a lâmina cortar o vazio a centímetros de seu rosto.
Outro ataque. Rápido, lateral. Poderoso. O rapaz recuou com o pé de trás. O machado passou zunindo, mais uma vez, encontrando apenas o ar.
— Já entendi, amigo, você tá irritado — falou o lutador, desviando de um terceiro ataque sem nem olhar direito. — É compreensível. Se eu tivesse esse corte de cabelo aí, também estaria.
Uma risada abafada estourou no fundo da taverna, sufocada por um gole de cerveja.
O guerreiro bufou como um touro e girou o corpo para um golpe giratório. Hazan se abaixou, deslizando por baixo do machado e surgindo ao lado do homem como se tivesse brotado da sombra dele.
O homem tomou um susto e tropeçou, desorientado. Ofegava alto, tentando entender o que tinha acabado de acontecer. E nesse instante, Hazan virou-se casualmente para Mirna, que estava com os olhos arregalados, ainda tentando assimilar a realidade.
— Eu fui atacado primeiro… o que eu fizer agora conta como autodefesa, né? — perguntou Hazan, a voz calma, quase didática.
Mirna piscou. Uma. Duas vezes. Depois olhou para o brutamontes, que quase caiu tentando recuperar o equilíbrio, o machado ainda em mãos.
— S-sim… — respondeu, ainda meio em transe. — Isso seria… tecnicamente… autodefesa.
— Beleza — disse Hazan, girando os ombros e exibindo um sorriso de orelha a orelha. — Então agora é a minha vez.
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