Capítulo 28 - Predadores Nascem. Sádicos se Criam.
Aurora sentia a garganta arder. Seu corpo formigava, tentando retornar aos sentidos adormecidos após a quebra da conjuração de Mirielle. Seu estômago ainda estava embrulhado, afinal, a joelhada de Darius tinha sido certeira.
O silêncio ao redor era insuportável. Nem mesmo o som dos insetos se atrevia a preencher o ar. Parecia que tudo esperava… aguardando o desfecho inevitável de algo terrível.
Todo o pó caiu sobre ele… Korgar não vai parar até o matar.
Aceitar aquela missão tinha sido um erro. Uma decisão impensada. Não tinham informações suficientes, e confiaram demais na própria preparação. Os riscos eram altos, e subestimaram tudo. Inclusive os inimigos.
A probabilidade de Hazan ser facilmente devorado por aquele predador era alta. Enfrentar aquela criatura sozinho estava fora de cogitação. Sim, ele tinha feitos impressionantes. Sim, sua resistência era fora do normal. Mas era só isso. Suas artes-marciais não iriam funcionar em um predador cuja especialidade era matar.
Sendo assim…
Não.
Ela mordeu os próprios lábios. Se isso acontecesse, seria sua responsabilidade. Normalmente, não se importaria. Mas tinha feito uma escolha consciente, sabendo dos riscos.
É muito fácil inventar desculpas.
Culpar os outros. As circunstâncias. O destino. É sempre mais simples dizer “eu não tive escolha” do que encarar o espelho e admitir: eu escolhi isso. É mais fácil se tornar uma vítima da vida do que dono de seus fracassos.
Aurora sabia disso. E odiava.
Aprendeu rápido como o mundo funcionava fora de Glaciem. Ali, honra era uma palavra decorativa, usada por quem já tinha decidido pisotear qualquer vestígio dela. Absolis era um continente impiedoso, onde apenas os fortes e influentes eram respeitados.
As pessoas mentiam com uma naturalidade absurda, traíam com um sorriso nos lábios, vendiam seus princípios por um punhado de moedas ou um lugar mais quente na fogueira da ambição.
E o mais nojento?
Elas se perdoavam por isso.
Tinha plena noção de que Hazan não possuia o senso comum daquele mundo. Não conhecia os perigos que estavam sempre a espreita.
Era sua responsabilidade.
A dor física veio antes da dor emocional completar seu ciclo.
Um chute brutal atingiu a boca do estômago, seu corpo lançado pela grama como uma boneca velha. O gosto de sangue subiu à boca.
A realidade voltou com força total.
Tannor se aproximava, passos calmos, como se estivesse apenas colhendo flores num campo tranquilo.
— Eu gosto desse olhar esperançoso, bonequinha — disse, com uma voz rouca, divertida, quase encantada. — É bonito ver quando apagam.
Aurora se arrastou de joelhos, tossindo. A dor ainda pulsava, mas não era pior que o medo de perder o foco.
Esqueça o Hazan. Lide com a situação mais urgente primeiro. Se adapte.
Firmou os pés no chão, ergueu-se com esforço e, ofegante, sorriu. Um sorriso pequeno, debochado. Ergueu a mão e curvou o indicador, chamando seu oponente.
— Esse chute foi o melhor que conseguiu fazer? Você bate como uma mariquinha.
Tannor deu uma gargalhada tão escancarada que chegou a se curvar.
— Ah… Isso foi bom. Muito bom. Você é afiada. — Puxou as adagas presas às laterais do cinto. — Mas já vou avisando: eu gosto de brincar.
O avanço dele foi fulminante. Tannor desferiu uma série de golpes cortantes. As adagas vinham em cortes rasantes, mirados nas coxas, nos flancos, nas áreas que machucam, mas não matam.
Aurora recuava, se esquivava por milímetros, mas não sem arranhões. Um corte acima da perna esquerda, outro sob a costela. A dor queimava, mas o foco queimava mais forte.
Esse desgraçado não é alguém qualquer. Ele não é facilmente provocado. Possui experiência. Sua postura desleixada esconde uma técnica precisa. Isso é perigoso. Mas é melhor que ele continue me subestimando.
Assim que abaixou de uma estocada rápida, Aurora girou o corpo, e um chute atingiu o nariz de Tannor.
Ele cambaleou dois passos para trás, surpreso. Um fio de sangue escorreu, descendo pelos lábios.
Ele lambeu o sangue com a língua, devagar, como quem degusta um bom vinho.
— Hah… Eu não esperava por isso. Um golpe tão feroz… — Ele sorriu de orelha a orelha, os olhos brilhando. — Estou começando a ficar excitado.
— Você acha isso divertido? — a voz de Aurora saiu firme, carregada de desprezo. — Tenho certeza que já fez isso antes. Brincar com a vida das pessoas. Você acha isso humano?
Tannor apenas sorriu. Um sorriso que não carregava remorso, apenas um brilho perverso nos olhos.
— Hahaha! E você acha que não é? — inclinou a cabeça, como se estivesse explicando algo óbvio a uma criança. — Isso é exatamente o que nos torna humanos, bonequinha.
Deu um passo à frente, o sorriso se abrindo como uma ferida.
— Todos nós temos esses desejos, esses impulsos lá no fundo. A maioria só aprendeu a esconder melhor. Inventaram leis, regras, códigos… tudo pra fingir que são civilizados. Mas no fim, somos só animais. Animais em busca de prazer. E isso… isso é o que eu chamo de beleza.
Aurora cerrou os dentes.
— Tsc… Eu tenho um nojo genuíno de-
Antes que Aurora terminasse de falar, ele arremessou as adagas.
A primeira veio direto em linha reta. Ela chutou a lâmina, desviando-a no reflexo.
A segunda veio girando, fazendo uma curva na sua direção. Aurora se abaixou, o metal passou a centímetros de sua cabeça.
Mas aquilo era só distração.
Tannor já estava em cima dela. Agarrou seus cabelos com força e aplicou uma joelhada brutal no estômago. O ar deixou seu corpo de uma vez. Ela tentou gritar, mas só conseguiu cuspir sangue. Seu abdômen estava queimando.
Ele riu ao vê-la cair de joelhos, cerrando os dentes de dor.
— Você ainda se recusa a gemer? — Passou a língua nos lábios. — Quero ouvir seus barulhos mais sinceros, bonequinha.
Aurora apertou os punhos.
Esses bastardos sempre criavam histórias para justificar cada escolha suja. Sempre havia um culpado mais conveniente: o sistema, o azar, a vida, os outros. Isso quando sua própria filosofia de vida não era distorcida.
Aprendeu a identificar esse tipo de verme à distância. Aqueles que justificam sua podridão. Aqueles que escondem o prazer de ferir atrás de máscaras civilizadas.
Ela adorava matá-los.
Não por raiva. Nem por justiça. Mas porque sabia que era diferente. Porque sabia que, se precisasse escolher entre sobreviver sendo como eles ou morrer mantendo sua essência, escolheria a morte — toda maldita vez.
Num movimento instintivo, girou a perna, acertando uma rasteira precisa nas pernas do ladino. Tannor perdeu o equilíbrio e caiu de costas para o chão. Uma oportunidade e tanto.
Puxou a adaga da própria cintura e tentou cravá-la no rosto do homem.
Ele virou a cabeça no último segundo.
A lâmina enterrou na grama, e no mesmo instante, ele revidou com um pontapé no mesmo ponto do estômago que antes havia atingido.
Aurora arqueou o corpo para trás, a dor rasgando sua consciência, o sangue subindo de novo à garganta.
— Ahh… — gemeu ele, deitado, os olhos ainda brilhando. — Agora sim… Eu senti isso. Você quase me pegou. Está realmente tentando me matar, hein, bonequinha?
Ele se levantou com a calma de quem sabe que controla o jogo.
As mãos se ergueram, abertas.
As adagas no chão brilharam com uma luz púrpura e começaram a flutuar. Num segundo, voltaram para suas mãos como se fossem extensões do próprio corpo.
— É muito bom ter uma encantadora como a Mirielle no meu grupo — disse, girando as lâminas entre os dedos com habilidade. — Essas coisinhas adoram voltar para mim.
Darius e Mirielle observavam em silêncio. Mirielle fingiu não ter gostado do elogio de Tannor, revirando os olhos vermelhos-acinzentados e balançando os cabelos pretos.
Aurora se ergueu devagar, os joelhos tremendo, o sangue escorrendo pelo queixo.
— Pelo visto, você adora se gabar por algo que sequer é mérito seu.
— Sabe como é, temos que valorizar nossos companheiros. — Tannor deu um passo à frente. — Mas e você? Você tem do que se gabar. Não vai usar suas conjurações? Água, gelo… sua raça não é talentosa com esses elementos?
Ela nada respondeu.
— Hm… é tímida? Não quer mostrar? — Ele deu mais um passo. — Sem problema. Eu sou paciente. Posso forçar você a mostrar. Eu adoro fazer isso.
O sorriso dele era um rasgo de prazer sádico no meio da tensão. Os olhos pareciam farejar cada gota de medo, cada hesitação.
Aurora o encarava em silêncio.
Podia ser fria. Calculista. Cruel, se fosse necessário.
Mas nunca desonesta consigo mesma.
Nunca trapacearia com quem não merecesse. Nunca se esconderia atrás de desculpas.
Por isso, quando olhou para dentro naquele momento, entre a incerteza do destino de Hazan e a dor latejante no estômago, soube que não adiantava tentar fugir da verdade. Aceitou o erro. Engoliu o gosto amargo da culpa. E prometeu a si mesma que, se Hazan morresse, levaria consigo cada responsável — não por vingança, mas porque eles escolheram ser quem são.
E ela também.
Os sentimentos que estavam fervilhando dentro dela começaram a se acalmar. Quando mais tempo passava com aquele homem, mais possibilidades passavam pela sua cabeça. Precisava manter seu inimigo por perto. Conhecê-lo. Compreendê-lo. E então, prever seus movimentos.
Seja o que for… seja como for… eu não vou cair aqui.
O frio começou a subir pelos dedos.
O salão de treinamento da guilda ecoava em silêncio, quebrado apenas pelo som ritmado de aço cortando o ar. Um espaço vasto, iluminado por janelas altas que deixavam a luz da tarde penetrar em feixes dourados.
O chão de pedra estava marcado com sulcos profundos, cicatrizes deixadas por lâminas e magias ao longo dos anos. Bonecos de treino jaziam destroçados pelos cantos — alguns partidos ao meio, outros cobertos de farpas. Pedaços de madeira quebrada e manchas secas de suor e poeira contavam histórias de batalhas travadas ali dentro.
Hadrian estava no centro do salão, os músculos da parte superior do corpo à mostra. O suor escorria pelos ombros largos, descendo pelas costas definidas. Seu corpo era sólido, denso como uma muralha, com poucas cicatrizes visíveis.
Os cabelos escuros, agora grudados na testa, balançavam a cada estocada. A lâmina reluzia sob a luz, movendo-se com brutal elegância. Seus olhos esverdeados estavam totalmente focados.
Calista observava da entrada, apoiada no batente da porta com os braços cruzados. Um sorriso discreto curvou seus lábios.
Você fica tão bonito se esforçando desse jeito…
Cada movimento mostrava o esforço e o controle. Mas também a tensão. Havia algo no jeito que ele se movia que denunciava cansaço acumulado — não físico, mas emocional.
Então, sem aviso, raios azulados começaram a brilhar sob seus pés.
Um estrondo cortou o salão. Num instante, Calista cruzou a distância entre eles. Hadrian mal teve tempo de virar o rosto.
As espadas se chocaram com um impacto seco.
CLANG!
Faíscas saltaram. Ele foi arremessado para trás, escorregando alguns metros antes de fincar os calcanhares no chão e se estabilizar. O som de sua respiração pesada preenchia o espaço entre os dois.
— Conseguiu controlar o recuo dessa vez — disse Calista, com o mesmo sorriso. — Está ficando mais forte.
Hadrian girou os ombros, relaxando os músculos. — O que está fazendo aqui? — perguntou, sem rodeios. — Não tem interesses da guilda pra resolver?
— Cuidar dos meus membros mais importantes também faz parte dos interesses da guilda — rebateu ela, ainda sorrindo.
Ele permaneceu em silêncio.
Calista caminhou até o suporte de armas de madeira e pegou duas espadas de treino. Arremessou uma para Hadrian, que a pegou no ar com facilidade.
— Vamos conversar como a gente se entende melhor.
A lâmina de madeira zuniu no ar, e Hadrian a bloqueou, recuando apenas um passo. Eles começaram a circular, os olhares fixos, movimentos cuidadosos. A troca de golpes era precisa. Calista se movia com leveza e fluidez, uma técnica que focava em deixar o golpe passar como a correnteza da água. Hadrian era mais contido, poderoso, cada golpe como o impacto de uma marreta.
— O que aconteceu naquele dia? — perguntou Calista, desviando de uma estocada. — Na patrulha. Depois que salvamos Hazan e Aurora.
O guerreiro hesitou.
— Hadrian — insistiu, girando a espada antes de desferir um golpe lateral que ele mal conseguiu bloquear —, você precisa parar com essa mania de guardar tudo. Principalmente quando se trata de informações importantes.
Ele recuou dois passos, respirando fundo. — Não encontrei nada fora do comum naquela patrulha… Por isso decidi adentrar mais fundo nos subúrbios. Queria verificar uns boatos.
Calista arqueou as sobrancelhas, lançando um corte na direção do pescoço. — Você sabe que quanto mais adentra aqueles becos, pior fica. Isso foi arriscado.
— Eu sei — respondeu, evitando o ataque com uma passada e continuando a trocar golpes. — Lá, senti energias vitais bem fracas. Quando cheguei, encontrei soldados da Guarda Escarlate em um dos becos. Estavam todos feridos. Marcan. Baelor. Edrin.
Calista parou o próximo ataque. Os nomes despertavam algo em sua memória. — Você não treinava frequentemente com esses soldados?
Hadrian assentiu lentamente. — Dentre eles, Edrin era o único que estava consciente, apesar das feridas. Ele me disse que foram atacados por uma figura encapuzada…
— Então nós temos mais um poderoso criminoso a solta por aí, é isso?
— Não exatamente… — Ele fez uma pausa, como se estivesse preparando para revelar a informação. — No chão… havia o símbolo dos Filhos do Luto.
O ar pareceu sumir dos pulmões de Calista. Ela baixou a espada por reflexo.
Os Filhos do Luto.
Era um nome impossível de esquecer. Dissidentes da religião da Santa Trindade Divina. Fanáticos. Terroristas. Acreditavam que um único deus, a personificação da justiça, desceria para o plano mortal e traria a destruição que seria justa para todos. Sua atividade mais recente foi durante a guerra civil em Glaciem, o país da tempestade perpétua.
— Mas isso não faz sentido — murmurou. — Faz quatro anos desde que sumiram…
— Eu sei — Hadrian assentiu. — Mas a mana deixada no local era densa. Muito densa. Provavelmente obra de um mago do sexto círculo.
Levou a mão à cabeça, os dedos deslizando entre os cabelos com frustração.
Seu olhar se perdeu por um instante, como se tentasse montar um quebra-cabeça com peças que não se encaixavam. — Primeiro, Vanitas retorna… e agora surgem terroristas fanáticos atacando soldados de uma casa nobre? — soltou um suspiro amargo. — Eu quero acreditar que tudo isso seja só uma grande coincidência.
Hadrian encostou a espada no ombro. — Só consegui trazê-los porque Edrin me ajudou. Mesmo ferido, ele carregou um companheiro. Quase desmaiou no caminho. Quando chegamos na ala médica, ele não aguentou.
— E por que foram atacados? — Calista perguntou.
— Não sei. Mas odeio ver tudo sair do controle desse jeito. Eu dividi boas bebidas com aqueles soldados. Eram bons homens.
Ela sorriu, com doçura nos olhos. — Você fez amigos. Estou orgulhosa.
Hadrian franziu o cenho, e num golpe inesperado, rebateu a espada de Calista com força, afastando-a alguns passos. Seu olhar era duro.
Ela entendeu a mensagem. Baixou a espada, sem perder o sorriso — embora agora mais tímido.
— Me desculpa. Você é… mais difícil de lidar do que os outros. Com palavras, pelo menos.
Aproximou-se. Seus dedos tocaram os cabelos encharcados dele, afastando-os da testa com delicadeza.
— Me preocupo com você, Hadrian. Estava preocupada com seu sumiço.
Ele não afastou o toque.
— Depois daquilo, fiz patrulhas sem parar pela área — disse por fim. — Evitei crimes que nem sabia que aconteciam. Agnis está coletando informações. A situação naquele lugar é muito pior do que imaginávamos. E isso é informação que a guilda precisa.
Calista suspirou. — Hadrian, o papel da nossa guilda é gerenciar missões e manter a ordem. Investir nessa cidade é o nosso desejo pessoal, e isso é um projeto a longo prazo. Preciso te lembrar quem comanda aquele lugar?
— Não importa. Eu vou continuar patrulhando por lá.
— Não me oponho se fizer isso às vezes. Mas não torne uma obsessão.
As espadas se cruzaram mais uma vez, mas agora o ritmo era outro. Mais lento. Mais cuidadoso. Como se estivessem digerindo a conversa junto com os movimentos.
— Eu entendo essa sua pressa em consertar tudo — disse ela, com a voz baixa. — Mas não tente carregar tudo sozinho… não precisa ser assim. — Os olhos azulados brilharam, suaves, quase úmidos, como se estivessem segurando mais do que palavras. — Só não quero te ver se perdendo de novo…
Hadrian não respondeu de imediato. Seus olhos, geralmente frios, estavam tingidos de frustração e uma faísca de tristeza.
Por fim, baixou a espada.
— Eu só… odeio ver tudo ruindo e não fazer nada.
Calista assentiu, lentamente. — Então faça. Mas não se destrua no processo.
Eles ficaram em silêncio, as espadas pendendo dos braços. O eco distante de uma gota de suor pingando no chão foi o único som por um instante.
Ela caminhou até ele e se encostou levemente em seu ombro.
— Vamos fazer do nosso jeito — disse ela. — Mas juntos. Entendido?
— Eu vou tentar.
Hazan se encontrava em cima de um tronco caído, quebrado em sua base e coberto por musgo espesso. Um nevoeiro leve serpenteava entre as folhagens.
Tonto. A cabeça girava, latejando como se tivesse levado um golpe que não lembrava de ter recebido.
Fechou os olhos por um instante.
Puta merda… O que aconteceu…?
Fragmentos soltos vinham à tona — a caçada com o grupo, a investida contra os Bronthir, o sangue, a traição, a sensação satisfatória de seu punho encontrando o nariz de Darius. Depois disso, tudo se embaralhava. Não sabia se tinha sido lançado longe ou se havia corrido até ali por instinto. As roupas estavam rasgadas em alguns pontos, o cheiro de terra e suor colado à pele.
Então, um som etéreo cortou o silêncio.
TCHIN.
Um brilho púrpura surgiu bem à sua frente, com letras dançantes que já reconhecia de longe.
Nem fudendo… Isso de novo não…

Hazan franziu o cenho.
— Tsc…
Fechou a mão com força, os dedos tremendo de frustração. Aquela tela sempre aparecia nos piores momentos, como um sádico encorajando um gladiador ferido a levantar.
Uau, a penalidade não é a minha morte dessa vez. Mas não tem fragmentos de memória? E o que caralhos é um Korgar?
Abanou a mão diante da tela, como se quisesse varrer uma lembrança indesejada. A interface desapareceu, diluindo-se no ar com uma leve cintilação.
Os olhos de Hazan se apertaram, o corpo inteiro se enrijeceu. Um arrepio percorreu sua espinha.
Ergueu lentamente o olhar.
Ali, entre os troncos retorcidos da floresta e o nevoeiro que dançava como um véu fantasmagórico, uma silhueta colossal rompeu a cortina cinzenta.
Quatro metros de pura brutalidade. Talvez mais.
O ar ao redor daquela coisa parecia pesar, curvando-se à presença monstruosa. Olhos dourados flamejavam como carvões em brasa, fixos em Hazan.
A mandíbula semiaberta deixava fios de saliva escorrerem até o chão, evaporando ao tocar nas folhas.
Sentiu seu antebraço latejar. O encarou, percebendo que estava inchado e com um hematoma. No momento em que a fera o atacou, ele empurrou Aurora enquanto usava o antebraço para proteger a cabeça.
O quebra-cabeça finalmente se encaixava, cada parte cruelmente nítida.
Aquela pele densa, com textura de pedra. A pelagem negra entrecortada por manchas vermelhas como ferrugem viva. As garras que poderiam decepar uma árvore com um único movimento.
Caralho… Então é você.
Um tremor percorreu seus braços. Os músculos doíam, as pernas estavam pesadas como chumbo, e a cabeça ainda zumbia com a tontura.
— Eu odeio admitir, mas você é bem assustador…
Hazan tentou se erguer. Cambaleou. O mundo girou por um instante e se endireitou de novo.
Não havia tempo para medo, nem espaço para desespero. Essas coisas não sobreviviam muito tempo ali dentro dele.
Do fundo da mente, algo se ergueu como uma brasa reacendendo — uma lembrança embrutecida pela dor, mas ainda viva.
Não era uma voz clara, não era conselho. Era instinto moldado por treino, suor e quedas.
Eu ainda tô respirando… significa que posso lutar.
Hazan riu. Um som rouco, quase sem vida, mas genuíno.
Aquele tipo de riso que escapa quando se está à beira do abismo… e decide pular mesmo assim.
— É melhor não pegar leve, hein? Eu gosto quando as coisas são difíceis!
Girou os ombros devagar, ajustou a postura. O corpo ainda reclamava, mas obedecia.
Um passo à frente no tronco. Os pés firmes. Os punhos próximos do rosto. A respiração controlada. Os olhos cravados no predador.
O coração disparava dentro do peito — não pelo pânico, mas pela batida de algo antigo. Algo que nunca morreu dentro dele.
Persistência.
O Korgar deu um passo. A terra tremeu sob seu peso.
Hazan arqueou levemente os joelhos, pronto pra explodir em movimento.
A distância entre os dois parecia diminuir, centímetro a centímetro, embora nenhum dos dois tivesse se mexido de fato. Era a tensão… o segundo antes da tempestade.
Os olhos de Hazan não piscavam. Nem um tremor em seu rosto. Nem uma hesitação.
Essa luta poderia ser o prelúdio de sua queda.
Ou de sua ascenção.
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