Capítulo 29 - O Peso da Dúvida
Aurora e Tannor se encaravam em silêncio no meio dos campos verdejantes. O alto matagal balançava suavemente com as lufadas sutis do vento.
Os ombros da polariana estavam relaxados demais para quem estava prestes a entrar em combate. Uma brisa suave mexia seus cabelos esbranquiçados, mas os olhos — aqueles olhos ciano — eram firmes e cortantes.
Tannor deu dois passos à frente, girando suas adagas com um floreio.
— Finalmente vai mostrar seus brinquedinhos? — provocou, os olhos estreitando ao ver as adagas gêmeas nas mãos dela. O brilho azul das lâminas pulsava de forma sutil. — Nunca vi lâminas como essas, vou adorar ter elas na minha coleção depois de te matar.
Ela não respondeu de imediato. Deixou o silêncio alongar-se. Então, com a calma de quem não precisava provar nada:
— Nem se nascesse de novo você seria digno delas.
A provocação não caiu bem. Tannor inclinou a cabeça, o sorriso se mantendo — mas algo em seus olhos mudou. Orgulho ferido.
— Então me convença disso!
Ele foi o primeiro a avançar.
CLANG!
O impacto foi imediato — metal contra metal, faíscas saltando no ar. Eles se afastaram apenas para voltarem a trocar golpes velozes.
Tannor não parava. Estocadas rápidas, cortes diagonais, fintas traiçoeiras, sempre mirando em pontos não vitais.
Vou te torturar lentamente, até você implorar para que eu pare!
Tinha confiança em suas habilidades com adagas. Aquele era o seu território.
Mas Aurora não recuava.
Ela se protegia de cada ataque, ganhando espaço a cada movimento. Tão veloz quanto ele. Tão agressiva quanto ele.
Ele girou, tentou um golpe de baixo para cima — e ela rebateu com a parte plana da lâmina, contra-atacando com uma sequência que deixou rasgos superficiais na cota de couro.
Swin! Swin! Swin!
Mirielle coçou a cabeça, alinhando os fios desordenados de seus cabelos pretos.
— Ele… tá perdendo? — perguntou, a voz entrecortada. — Eu sei que aquele idiota nunca treina, mas… desde que o conheço, nunca vi ele perder um duelo de armas curtas.
Ela sacou o arco das costas, colocando uma flecha na linha. Mas Darius colocou a mão em seu ombro.
— Se você interferir agora, vai arrancar o pouco de orgulho que esse idiota tem — disse ele, com um sorriso contido. — Deixa ele se divertir um pouco. É uma ótima oportunidade para evoluir.
Mirielle engoliu seco e assentiu. Conhecia Tannor e sabia o quão bom ele era, mas tinha algo sobre aquela polariana que a fazia se questionar se realmente estava tudo bem.
Tannor sentia cada centímetro de vantagem se desfazendo. A polariana era uma sombra grudada ao seu ritmo. E pior: ela escolhia onde e quando o ferir.
Em uma troca particularmente agressiva, Aurora girou o corpo e fingiu um corte baixo. O ladino reagiu por reflexo, descendo uma lâmina para bloqueio — e foi aí que ela subiu com a outra, direto para seu olho direito. A lâmina raspou pela bochecha, cortando um fio de cabelo.
Ele recuou. Pela primeira vez. Quando a encarou, percebeu que ela estava encarando a alça da própria mochila, como se estivesse mais preocupada com outra coisa.
Eu quase fiquei cego…
Um filete de sangue escorreu da bochecha até a mandíbula. Ele a encarou, arfando. Depois de checar o estado de sua mochila, o encarou de volta, lembrando que o ladino existia. Só o olhava, com a mesma serenidade que teria ao observar uma fogueira se apagar.
— Não me diga que já cansou? — ela indagou, com um tom de desinteresse.
Tannor cerrou os dentes. — Tsc! Sua putinha…
Ela retribuiu com um sorriso que o irritou ainda mais.
Darius gritou de longe:
— Tá demorando demais, Tannor! É assim que pretende trazê-la até mim?
O rapaz limpou o sangue com as costas da mão. Respirou fundo, evitando que o sangue quente subisse para a cabeça.
— Hehe, meu incrível líder está me incentivando, parece que eu não posso fazer feio.
Ele avançou novamente, usando movimentos mais amplos e contundentes. Quando Aurora bloqueava uma adaga, ele chutava seu estômago. Quando ela esquivava de uma estocada, pisava em seu pé para desequilibrá-la. Estava quase sempre um passo à frente dela, que parecia estar mais preocupada com a sua própria mochila do que sua vida.
Apesar de ter acertado alguns cortes e chutes, a polariana parecia longe de ceder. Isso o deixou desconcertado. Na teoria, eles estavam em um impasse. Mas não era isso que sentia.
Aurora girou a lâmina em mãos. O brilho ciano dançava na penumbra do entardecer. Tannor a observava com mais atenção agora. Estava começando a entender.
Ela era perigosa. Mais perigosa do que aparentava.
E pior: por trás da fachada fria, havia um pequeno sorriso. Ela estava gostando daquilo.
Quando dois espadachins se enfrentam, o duelo costuma ser equilibrado.
Os passos são calculados, e os ataques carregam intenções diferentes. Eles estudam a distância, memorizam padrões e exploram os menores vícios de movimento do adversário. Não é sempre o mais forte que vence, mas sim aquele que toma a decisão certa no momento exato. O erro, nesse jogo, raramente vem de falta de habilidade — e quase sempre vem de um lampejo de hesitação.
Mas com adagas… é completamente diferente.
O combate com adagas não oferece a elegância das espadas longas, nem o luxo de tempo para raciocinar demais. A letalidade é crua, imediata. A distância entre o golpe e o corte é uma respiração mal calculada. Tudo acontece mais perto — tão perto que se pode sentir o cheiro da pele do inimigo, ouvir o roçar das roupas, e ver o reflexo do próprio medo nos olhos alheios.
Aqui, técnica e experiência ainda contam — mas são a frieza e o autocontrole que determinam quem vive e quem morre.
Manter a mente firme quando uma lâmina vibra a centímetros da sua jugular exige mais que treinamento. Exige nervos de aço. E sangue gelado nas veias.
Tannor sabia disso. Era bom nisso.
Estava acostumado a ver o terror nos olhos de seus adversários. A observar os músculos se contraírem antes mesmo de um ataque. O medo sempre entrega o oponente antes da lâmina. Sempre.
É por isso que se divertia tanto quando encontrava alguém que não tremia. Porque, por mais que finjissem ser fortes, em algum momento eles demonstrariam desespero.
Mas Aurora… Havia algo raro ali. Algo que nem mesmo os melhores instrutores podiam ensinar.
Visão plena.
Ela não piscava. Desde o primeiro movimento da luta, os olhos daquela bárbara seguiram cada ataque até o fim. Não desviavam, não fugiam, não hesitavam.
Eu não admito! Nunca perdi um duelo antes, e vai continuar assim!
Tannor estocou, mirando o peito de Aurora.
Ela não bloqueou. Antecipou o ataque com um passo para trás, e chutou o antebraço dele para o lado, desviando o ataque com o impulso do próprio corpo.
Usou o mesmo movimento para se abaixar, girando sobre uma perna. Quando ele tentou um corte horizontal — um golpe quase certeiro no torso — ela já estava em movimento.
A perna cravou firme no chão. O giro terminou com uma lâmina deslizando pelo estômago dele.
Slash!
O sangue esguichou, quente e vermelho vibrante.
Tannor arfou. As adagas caíram das mãos. Ele cambaleou, levou uma mão ao ferimento, e caiu de joelhos.
Aurora se aproximou sem pressa. Segurou os cabelos dele com firmeza, puxando a cabeça para trás. A adaga ciano encostou na garganta de Tannor, onde o sangue pulsava forte.
Mirielle deu um passo à frente, apontando seu arco na direção dela.
— Abaixem isso. Agora. — A voz de Aurora cortou o ar, sem sequer lançar um olhar a Mirielle. — Qualquer movimento brusco e vão ver a garganta desse verme jorrar sangue como uma fonte quebrada. Vocês entenderam?
Darius ergueu a mão, abaixando a arma de sua companheira.
Tannor sorria.
Mesmo ajoelhado e ferido, à beira do fim. Um sorriso traiçoeiro, carregado de alguma ideia que ainda não tinha se revelado.
Apesar de não saber o que estava acontecendo, confiou que o ladino tinha algum plano.
Aurora não recuou. Mas os olhos dela se estreitaram ligeiramente.
O próximo movimento poderia romper tudo.
O primeiro ataque rasgou o ar com brutalidade. Um borrão negro avançando em velocidade alarmante — dois segundos, no máximo, separavam a investida da morte.
As garras se abriram, afiadas e sedentas. Estavam diante de seus olhos.
Mas não piscou.
Curvou a coluna, dobrou os joelhos e escapou por baixo. O golpe passou por cima e atingiu uma árvore próxima.
Slash!
O tronco estalou e se dividiu em três partes irregulares, despencando com um baque pesado sobre a vegetação.
Caralho, isso passou muito perto!
Entretanto, não podia perder tempo com pensamentos desnecessários.
Um pulo lateral salvou seus ossos de um esmagamento iminente. O segundo golpe veio de cima, mais pesado, deixando a marca de suas garras na terra. Aproveitando a abertura, cerrou o punho e atingiu o braço musculoso do monstro.
[Direto de esquerda!]
O impacto se espalhou pela pelagem grossa, e sequer surtiu efeito.
Os olhos dourados caíram sobre o lutador, que fez uma careta ao perceber o que estava por vir.
NHAC!
A mandíbula abocanhou o ar com força, gotas da saliva respingando em Hazan que tinha acabado de rolar pelo chão. Uma sensação tênue de irritação se espalhou por sua pele.
A fera rugiu.
O som vibrou sob seus pés, as árvores ao redor balançaram, e suas folhas caíram como uma chuva. O nevoeiro se retraiu, disperso por ondas invisíveis. Pássaros escaparam em silêncio desesperado.
Eu sabia… Senti essa diferença contra aquele lobo esquisito da masmorra. Ainda não tô acostumado a enfrentar feras como essa. Se eu quiser causar algum dano real, vou precisar de muita potência.
Não era a primeira vez que enfrentava um animal — tinha lutado contra um Bronthir momentos antes, e com certa facilidade. Mas quando se tratava de um predador daquele porte, era outra história.
Quanto mais uma luta se prolonga, mais um ser humano se revela. Erros surgem nas frestas da pressa, decisões arriscadas se repetem. Hábitos se tornam visíveis, até os mais sutis. E quando um lutador aprende a enxergar isso… Prever o próximo passo se torna inevitável.
Desviou de mais uma investida, rolando pelo chão coberto de folhas. As garras arranharam uma pedra próxima, arrancando faíscas.
Mas uma criatura como essa… não hesita. Não duvida. Não brinca. Ela teria essa mesma ferocidade contra um rato, se estivesse com fome.
O Korgar girou o corpo pesado com um movimento surpreendentemente ágil. A pata dianteira se ergueu e desceu como um martelo. O lutador já não estava lá. Escapou por um triz, o ar sendo cortado com violência suficiente para desequilibrá-lo.
A gente chama isso de luta… mas pra ele, eu sou só comida.
Apoiou as costas num tronco de árvore, mantendo os punhos próximos do rosto. O Korgar o seguiu com os olhos dourados. Mesmo sem expressão facial, Hazan podia sentir: a coisa estava ficando impaciente.
E isso é o pior. Um ser humano, se ficar com medo, recua. Uma fera? Quanto mais tu foge, mais ela se anima.
O tronco cedeu contra a investida pesada do Korgar. O jovem caiu, rolando pela terra.
Beleza. Não dá pra lutar assim, já entendi a mensagem! É a porcaria de um monstro, e eu não tenho nada que possa feri-lo…
Um incômodo agudo no ombro o fez cerrar os dentes. Girou o braço, sentindo o músculo tensionar — então notou algo estranho. Passou a mão pelas costas.
Tecido. Uma alça. Algo preso ali.
Uma mochila?
Franziu a testa, confuso.
“Coloquei algumas coisas úteis na sua mochila. Devem nos ajudar durante a missão. Depois dá uma olhada.”
A voz de Aurora ecoou na memória, meio distraída, meio brava. O tom típico de quem sabe que vai ser ignorada.
Claro que ele não tinha olhado. Estava ocupado demais pensando em maneiras de tornar seus treinos mais difíceis.
Mas agora…
Deslizou a mão por cima da mochila, tateando com rapidez até encontrar o zíper. Abriu com um puxão seco. Havia frascos vermelhos, uma corda enrolada, um par extra de luvas, mas nada que pudesse oferecer qualquer risco para a fera diante dele.
Foi quando os dedos tocaram o couro frio.
Uma pequena esfera escura, com linhas brancas entalhadas e um pino prateado preso no topo.
Os olhos do lutador se estreitaram.
“É uma bomba de fumaça. Puxa o pino e joga. Ela explode depois de alguns segundos. Só cuidado, a fumaça é sufocante, se você não sair rápido.”
Aurora tinha dito isso de forma casual, limpando o sangue de sua adaga na noite anterior.
Um sorriso lentamente se desenhou em seus lábios. Fechou a mochila e a colocou nas costas.
Um plano se formava.
Isso é muito arriscado. A saliva dessa coisa irritou minha pele… Se entrar em contato com uma ferida aberta, o resultado seria fatal.
Olhou de novo para o maldito monstro que se parecia com um urso enfurecido. Com sua boca escancarada, vapor quente que escapava pelas narinas.
Mas pode ser que funcione. E se funcionar… Posso acabar com esse desgraçado e voltar para ajudar a Aurora.
Precisava fazer aquilo engolir a bomba.
Mas como chegar tão perto? Como enfiar algo na garganta de uma criatura que podia despedaçá-lo num piscar de olhos?
Vamos observar. Preciso arrumar uma distração, e fazer ele abrir uma brecha. Tem que dar certo.
Observou. Esperou. A fera avançou outra vez.
Hazan correu. Mas não direto para longe — traçou um arco, aproveitando a inércia do Korgar.
Ele gira o corpo primeiro. Não tem alcance lateral tão bom… e o lado esquerdo demora mais pra reposicionar a pata traseira.
Desviou de uma mordida, escorregando por baixo do pescoço peludo. A bomba já estava na mão.
Quase lá.
A fera rugiu, virou-se com fúria.
Foi quando correu na direção contrária, usando um tronco caído como rampa. Subiu correndo por ele e saltou, pisando nos ombros do Korgar.
O monstro reagiu. Tentou mordê-lo. As costas arqueadas se sacudiram com violência.
Mas ele já estava lá em cima.
— Engasga com isso, seu desgraçado!
Com um grito selvagem, cravou a bomba entre os dentes da criatura, forçando-a garganta adentro com a força de um soco e o peso do próprio corpo.
Pulou para longe na mesma fração de segundo.
Rolou pelo chão e se ergueu em posição defensiva.
Kaboom!
O som da explosão foi tão patético que pareceu mais com a batida abafada de um tambor.
O monstro abriu a enorme mandíbula, começando a tossir sem parar, debatendo-se no chão, derrubando troncos de árvore e destruindo rochas por perto.
Porcaria, isso não foi o suficiente!? O que tem de errado com esse maldito!?
Silêncio.
O rapaz franziu as sobrancelhas, e começou a arregalar os olhos com o que estava prestes a acontecer. A criatura emitiu outro som mais profundo, algo parecido com um arroto.
— Não, nem fodendo! Você não vai fazer iss-
BUURP!
Uma golfada espessa de fumaça negra escapou da garganta do urso monstruoso. A névoa era densa, opaca, quase sólida — lembrava barro fervente, misturado a óleo queimado. Ela se espalhou rapidamente por toda a área.
Hazan recuou, cobrindo o rosto com o antebraço.
Tarde demais.
Filho da puta…
A fumaça invadiu seus olhos. Uma ardência cortante. Primeiro veio o branco — ofuscante, absoluto. Depois, o preto. Não dava para abrir os olhos naquela situação.
Tateou o chão às cegas, buscando se localizar. Cada passo do Korgar era uma batida brutal, um trovão que fazia o solo vibrar e as raízes tremerem.
A fumaça persistia. Grudava na pele e nos pulmões. A tosse da criatura deu lugar a um rosnado.
Hazan caiu de joelhos, arfando. Sentia o pulmão queimar, e cada respiração vinha embebida no gosto metálico de sangue e fumaça. A garganta arranhava, e o simples ato de respirar era uma tortura. Crispou os olhos com força, mas a fumaça ainda não tinha se dispersado.
O mundo tinha sumido. As árvores, o céu, a luz — tudo engolido por uma escuridão disforme. Sons estranhos, um cheiro intragável e muita dor foram o que restaram.
Tec.
Um estalo seco cortou o silêncio. Madeira se partindo?
Em seguida, um rosnado baixo.
Passos começaram a se aproximar, mas dessa vez, mal faziam som. A fera sabia como se mover furtivamente. O som vinha em pulsos. Ele andava. Parava. Fungava o ar. Depois seguia em frente.
Estou sendo caçado. E se ele me encontrar… Melhor não pensar nisso.
Hazan cravou os dentes no próprio lábio. Sentiu o gosto metálico do sangue misturar-se à fumaça que ainda queimava sua garganta.
Ficar imóvel, respirar devagar e manter o silêncio era tudo o que podia fazer?
Quantas vezes ele já tinha encarado a morte desde que foi cuspido naquele mundo miserável? Difícil contar. Mas uma coisa era certa: ela sempre sorria de volta. Como se zombasse, dizendo: “Você ainda tá aqui? Quanta teimosia.”
Não tinha pedido por aquilo.
As cicatrizes no corpo, os gritos que ecoavam na cabeça quando o mundo silenciava à noite. Não pediu pelas dores que teve que engolir até aprender a andar com elas nos ombros. Nem pelas lutas intermináveis que nunca davam trégua. Suas lutas diárias, no fim, só traziam mais dúvida do que glória.
Por que estava fazendo tudo isso?
Pra lembrar? Lembrar do quê? De quem era? Da Terra?
Talvez… Mas nem isso era certo.
Nada ali era.
As lembranças vinham quebradas. Flashes, sensações, vozes afundadas em névoa. Não havia nenhuma certeza. Nenhuma prova de que o sistema, as missões ou os fragmentos de memória fossem reais.
Tudo podia ser uma farsa bem montada. Um jogo sujo no qual ele entrou sem perceber — ou foi empurrado.
E essa ideia… essa maldita ideia o corroía por dentro.
Não era o sangue. Nem a dor. Nem a morte.
Era a dúvida.
A ideia sufocante de que talvez estivesse preso em algo que nunca escolheu. Que cada gota de suor derramada, cada plano traçado com os dentes cerrados, estivesse sendo guiado por algo além.
Ele odiava isso.
Ser só um peão. Ser controlado. Uma peça num jogo de regras que nunca leu. Corria por um corredor infinito, acreditando que, em algum ponto, haveria uma porta aberta com respostas.
Mesmo assim, treinava.
Mesmo assim, lutava.
Mesmo assim, respirava — porque parar seria aceitar.
Por isso continuava.
Porque precisava. Porque talvez, em algum canto daquela loucura, estivesse o pedaço que faltava. As memórias. As respostas. A si mesmo.
Mas… e se aquelas lembranças nem fossem dele?
E se fossem armadilhas?
E se… no fim… estivesse caçando um passado que nunca existiu?
Talvez tudo aquilo que tentava recuperar nunca tivesse sido seu.
Talvez estivesse tentando lembrar de uma vida que nunca fora sua.
Era cansativo.
E no fundo desse mar de negatividade, algo começou a se formar.
Algo denso. Quente.
Nojo.
Puro e simples.
Nojo de si mesmo, da ideia patética de desistir. De ceder. E foi aí que um sorriso torto apareceu em seus lábios.
— Caralho… por que eu sou assim?
O sorriso se apagou, mas uma expressão determinada tomou conta.
Ele está me procurando pelo cheiro. Se pudesse me ver, eu já estaria morto. Enquanto eu puder ouvir… ainda tenho chance.
Aguçou seus sentidos para cada detalhe.
Um graveto partindo à esquerda. Um fungar molhado — agora à frente. O arranhar de garras contra a terra, folhas no chão sendo arrastadas por uma força imponente. E então… um deslocamento sutil de ar.
À direita.
Achei você.
Um sopro quente e fétido atingiu seu rosto — espesso como vapor de carniça, carregado do hálito da morte.
A mandíbula do Korgar desceu faminta, o estalo do ar comprimido ecoando pelo local.
NHAC!
Mas não houve grito. Nem o som crocante de ossos. A fera congelou.
Algo macio estava preso entre os dentes. O cheiro de um Bronthir configurava o seu prato favorito. Mas algo estava errado.
O sangue quente e gorduroso não encheu sua boca. Não sentiu a textura pastosa dos órgãos esmagados. O que escorria por suas presas não era sangue — era tecido.
Uma camisa.
Enquanto o monstro mastigava em frustração, olhos dourados se estreitaram. E então, vidro quebrou ao longe. O Korgar virou a cabeça num rompante de fúria, os músculos do pescoço repuxando sob a pele rochosa, mas não enxergou e nem farejou nada.
Do alto de uma árvore, envolto pela penumbra alaranjada do entardecer, Hazan observava.
Sem camisa.
Sua pele, rosto e cabelos estavam cobertos de terra. O cordão em seu pescoço pulsava um brilho âmbar, acompanhando o brilho alaranjado dos olhos.
Tomou o último gole da poção,o líquido vermelho queimando sua gargata e revigorando sua estamina. O frasco caiu da mão, despedaçando-se entre as raízes lá embaixo. Limpou o canto da boca com as costas das mãos e cerrou os punhos.
E então ele saltou.
O vento rugiu ao seu redor. Os galhos tremularam.
Hazan desceu como um cometa.
O impacto foi brutal.
BAM! CRACK!
Um estrondo ecoou pela floresta, e o crânio do Korgar foi empurrado contra o chão com uma força tão colossal que o solo rachou sob suas patas.
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