Índice de Capítulo

    O joelho esquerdo afundava ligeiramente no solo, terra e sangue manchando o tecido rasgado da calça. Tannor mantinha um sorriso torto, ainda que o sangue escorresse pelo canto de sua boca.

    Aurora mantinha o ladino ajoelhado, os cabelos de cor vinho dele entre seus dedos, a lâmina ciano de sua adaga pressionada contra a garganta do inimigo.

    — Quantas vezes vocês usaram essa tática? — a voz dela saiu baixa, mas intimidadora. — Quantos desbravadores confiaram em vocês antes de morrerem?

    O homem sorriu com deboche. — Tática? Do que está falando, bonequinha? Isso foi má sorte de vocês.

    Ela ignorou. — Escolheram uma missão distante da cidade. Um bando de criaturas lucrativas, mas perigosas. Tinham um método para atrair o pior predador desses campos. E a conjuração da Mirielle… não é algo que se aprende tão facilmente. Vocês planejavam forjar nossas mortes.

    O agressor arqueou uma sobrancelha, impressionado. — Você é mais esperta do que parece, Aurora.

    Ela o calou pressionando a lâmina com mais força, um fio de sangue escorreu. — E você parece não ter entendido sua situação.

    — Desculpa, desculpa… — ele disse, o tom ainda zombeteiro. — Se serve de consolo, nenhum de nós esperava que o tahtoriano quebrasse a conjuração, era para vocês serem devorados vivos. Mas nada disso importa. O fim vai ser o mesmo.

    Aurora estreitou os olhos, preparando o golpe. Sua adaga brilhou no instante que o braço se moveu, mas então… dor.

    A garganta fechou, dificultando a respiração.

    Ela cambaleou e chutou seu oponente com força para longe. Ele rolou pela grama, tossindo, mas o sorriso torto ainda estava lá.

    O zunido metálico soou atrás dela.

    As adagas de Tannor, lançadas antes, retornavam com curvas perfeitas pelo ar. Aurora saltou para o lado, mas as lâminas cortaram de leve seu flanco. Uma delas rasgou a alça da mochila pendurada em seu ombro.

    Aurora cerrou os dentes e, sem hesitar, cortou a outra alça com a própria adaga. A mochila caiu.

    Ela correu até o ladino, aproveitando a oportunidade. Ele ainda estava ajoelhado, tentando se levantar com o apoio de uma das adagas, agora de volta em sua mão.

    Aurora se lançou contra ele, a adaga brilhando pronta para rasgar sua garganta.

    Contudo, antes que a lâmina alcançasse seu alvo, um jato quente e espesso de sangue explodiu da boca dele. Ele cuspiu a mistura quente diretamente em seu rosto. 

    Aurora cambaleou, e mal teve tempo para pensar no próximo passo.

    Stuck!

    Uma flecha perfurou seu ombro esquerdo, rasgando carne e músculo. A dor foi tão desorientadora que suas mãos se abriram involuntariamente, deixando as adagas caírem no chão. Sangue escorria abundante, encharcando seu braço e manchando suas roupas. Um torpor paralisante se espalhou pela carne ferida.

    Seus olhos arderam. A garganta continuava a doer, e o próprio ato de respirar era doloroso. Caiu de joelhos, arfando como um animal ferido.

    — Ei, sua verme inútil! — Ele rugiu, cuspindo mais sangue no chão enquanto lançava um olhar assassino a Mirielle. — Você acha que eu precisava da sua ajudinha patética? — cuspiu as palavras, demonstrando desprezo. — Eu sabia exatamente quando a maldita maldição dela ia chegar! Estava tudo sob controle, sua imbecil!

    Mirielle, com o arco ainda tenso, apenas balançou a cabeça com desprezo.

    — Idiota arrogante. Ela teria te atravessado, e você nem me agradece?

    — Cale essa boca! — rosnou o homem, apontando o dedo ensanguentado para ela. — Não faça isso de novo. Ela é minha.

    Mirielle bufou em frustração, e encarou seu líder. Darius encarava seu subordinado com o lábio contorcido em desprezo. Não havia um único traço de preocupação em seus olhos. Ele encarou Mirielle e deu de ombros. Ela entendeu o sinal e abaixou o arco.

    O ladino virou-se de volta para Aurora, o velho sorriso de escárnio rasgando seu rosto. Seus olhos, frios e insensíveis, brilhavam com o prazer do sadismo.

    — Agora, onde estávamos? Ah, é… Eu estava prestes a te dar o troco.

    Com passos deliberados, ele se aproximou, guardando as adagas enquanto admirava a beleza selvagem da polariana.

    Mal conseguia se manter ajoelhada. O sangue escorria quente por seu braço, e cada respiração era uma luta contra a dor lancinante e a vertigem crescente. Estava cega, ofegante, quase despida de forças.

    Mas seus ouvidos ainda eram fiéis.

    Ela ouvia os passos pesados na relva.

    — Deixe-me ver… — murmurou, a voz escorrendo veneno. — Foi assim que segurou meus cabelos antes, não foi? — Se agachou ao lado dela e puxou seus cabelos com brutalidade, forçando a cabeça da polariana para trás. — E depois ameaçou tirar minha vida com essa adaga patética… — resmungou, recolhendo a lâmina caída e pressionando-a contra a garganta exposta dela. — Assim?

    Aurora era um retrato da ruína: cabelos desgrenhados, a pele salpicada pelo sangue recente, os lábios ressecados entreabertos num ofegar desesperado.

    Ainda assim, sob aquela máscara de ferimentos, algo raro surgiu.

    Sua expressão — até então selvagem, feroz — amoleceu.

    Os cílios longos tremeram. Os olhos de ciano vívido, brilhando como duas joias esquecidas pelo céu, fixaram-se nos dele com um misto de doçura e súplica.

    Lentamente, como quem toca algo frágil e precioso, Aurora deslizou a mão pela que ele usava para segurar a adaga. Seus dedos, delicados e trêmulos, acariciaram a pele endurecida do ladino com uma ternura desarmante que o fez vacilar.

    Por um segundo, esqueceu-se de quem era.

    — Heh… — Um sorriso torto e presunçoso brotou em seu rosto. — Eu sabia. No fundo, era isso que você queria desde o começo, não era? — Seus olhos brilhavam de ganância.

    Aurora mordeu levemente o lábio inferior, forçando as lágrimas a brilhar nos olhos.

    — Vocês… — ela sussurrou, a voz trêmula de desespero contido — podem salvar Hazan? Ele… — a respiração vacilou — eu… deixo fazerem o que quiserem comigo, mas, por favor, salvem ele…

    O pedido era um presente doce e inesperado. Ele riu, um som seco e sujo.

    — Salvar o maldito? Hm… — Fingiu pensar, girando a adaga vagarosamente. — Sabe, estamos falando de um Korgar. Essas bestas dominam esses campos há séculos… — Fez uma pausa teatral. — Bom, se for Darius, talvez, talvez ele consiga algo.

    — Eu imploro… — Aurora insistiu, sua voz um fio de seda rasgada. Ela inclinou-se, deixando o contorno generoso do decote à vista. A luz tênue do entardecer parecia realçar cada traço de sua beleza.

    Engoliu em seco. Seus olhos cravaram-se nela como um predador cego pela própria fome.

    — Hah… — Ele lambeu os lábios rachados. — Talvez eu possa convencer eles… Se você for muito, muito obediente.

    — Obrigada… — Aurora sussurrou, e então sorriu.

    Não um sorriso fraco ou desesperado. Mas um sorriso tão devastadoramente belo, tão genuíno, que por um instante, esqueceu até de respirar.

    E nesse instante de vulnerabilidade, Aurora se moveu.

    Num lampejo felino, ela jogou o corpo para trás numa cambalhota oportuna. Seus pés encontraram o estômago ferido de Tannor.

    O impacto misturou a força de Aurora com o peso dele — e o resultado foi o que ela precisava.

    Tannor voou por cima de Aurora, rodopiando no ar antes de bater com as costas no chão, cujo impacto arrancou o ar dos pulmões.

    Aurora se ergueu cambaleante, o mundo à sua volta ainda um borrão de formas distorcidas.

    Com o antebraço ensanguentado, limpou os olhos o melhor que pôde, arranhando a pele já ferida na tentativa de afastar a ardência.

    As pernas trêmulas mal obedeciam, mas ela correu na direção de sua mochila. O grito do agressor rasgou o ar, animalesco, ensandecido. A adaga cortou o ar, uma flecha negra, cortando o vento.

    Aurora girou num reflexo desesperado, sentindo o aço frio beijar a pele a milímetros de seu rosto.

    Não houve tempo para respirar. Não houve tempo para pensar.

    Tannor estava em cima dela. O chute acertou o rosto de Aurora com força brutal.

    Bam!

    Seu crânio virou violentamente; o mundo se fragmentou em imagens confusas. O gramado acolheu seu corpo desajeitado, enquanto o gosto espesso de sangue inundava sua boca. Ela tentou se levantar, mas as forças a abandonavam pouco a pouco.

    Tannor, sem perder um instante, correu até a mochila.

    — Sua vadia miserável… — rosnou, mais para si do que para ela, enquanto rasgava os fechos com dedos ávidos. — O tempo todo olhando para essa mochila… Vamos ver o que você queria tanto proteger, hein?

    Ele vasculhou o conteúdo como uma criança faminta diante de um banquete proibido.

    Seus olhos predatórios encontraram dois frascos de vidro rubro.

    — Hah… maravilha! — zombou, arrancando a rolha e entornando o primeiro frasco goela abaixo.

    O corte profundo em seu abdômen se fechava diante dos olhos de Aurora.

    Ela tentou se mover, mas a dor na garganta a travou. As correntes negras e espinhentas que estrangulavam seu pescoço contorciam-se como serpentes famintas, apertando a carne, arrancando o ar.

    E então encontrou algo mais.

    Uma pequena esfera metálica, polida e cruel. Ele a ergueu entre os dedos, girando-a lentamente, o sorriso se abrindo em seu rosto como uma flor doentia.

    — Ora, ora… — murmurou, reconhecendo o mecanismo. — Agora entendi tudo.

    Seus olhos se fixaram nela com satisfação.

    — Você só tava de pé por causa disso, né? — zombou, balançando a bomba de fumaça como se fosse um brinquedo. — Ia me distrair, explodir essa porcaria e correr pra salvar seu amiguinho inútil…

    Aurora, com um esforço sobre-humano, ergueu o rosto, os olhos cianos faiscando ódio e desprezo.

    — Correr? — a palavra saiu entrecortada, manchada de sangue e ironia. — De você?
    Ela riu — uma risada rouca, quebrada, mas ainda assim desafiadora. — Eu ia te matar depois de usar isso. Só depois eu fugiria.

    Tannor congelou por um segundo.

    O sorriso dele se desfez… e então veio uma gargalhada gutural, descontrolada, que ecoou pelos campos vazios.

    — Me matar? — Ele cuspiu no chão, caminhando até ela com passos firmes e carregados de desprezo. — Você mal consegue ficar de joelhos, sua cadela imunda! Mas sabe… — ele inclinou a cabeça, os olhos faiscando ódio — eu quero ver você tentar.

    Ele girou a bomba entre os dedos e, num estalo arrogante, atirou-a contra o chão.

    A explosão abafada criou uma cortina espessa de névoa, que engoliu o campo em segundos. O cheiro químico invadiu o ar. Sons abafados de passos, uma adaga perfurando carne, um corpo caindo.

    Quando a fumaça se dissipou, Tannor arrastava um corpo pelos braços, deixando um rastro de sangue atrás de si.

    — Fim da linha… — murmurou, arfando, o corpo inteiro pulsando de adrenalina.

    O olhar dele cruzou a distância até Mirielle e Darius, que assistiam em silêncio. Mirielle mantinha o arco a postos, mas seus olhos semicerrados denunciavam a inquietação.

    Darius, imóvel e severo, tinha uma expressão indecifrável.

    Com um suspiro de satisfação, Tannor largou o corpo mole da polariana no chão. 

    — O seu pedido chegou, chefe! — disse, mostrando-a como um trofeu.

    Mas Darius não parecia nada satisfeito.

    — Tsc… — Tannor engoliu em seco, chutando o cadáver. — Matar você foi um desperdício, docinho. Viva, teria servido melhor.

    O corpo da polariana repousava imóvel. O estômago rasgado em um buraco, mas o sangue parecia conter-se nas bordas, ressecando na pele morta. A pele estava ficando cada vez mais pálida.

    Os olhos semicerrados não carregavam dor — apenas um vazio estéril. E o braço estendido… a mão curiosamente limpa, sem vestígios da carnificina anterior.

    Mirielle se aproximou, o cenho franzido por um pressentimento amargo.

    Abaixando-se, examinou o ombro do cadáver. Não havia flecha. Nenhuma perfuração, nenhuma hemorragia além da barriga. O corpo parecia… incompleto. 

    Tirando o ferimento no estômago, todo o corpo estava limpo.

    Ela esticou a mão hesitante e roçou de leve o rosto do cadáver.

    Por um instante, o contato foi indiferente. Então — uma frieza cortante mordeu seus dedos. A pele azulou discretamente, lembrando o brilho de um lago congelado sob o luar.

    Mirielle recuou de um salto, o peito apertado.

    — Tannor… — sua voz saiu em um sussurro trêmulo. — Essa não é…

    Começou com uma rachadura cortando o rosto. 

    Mas elas se espalharam por todo o corpo, iguais a raízes de uma árvore antiga. De dentro, não veio sangue — mas um azul translúcido, reluzindo em fios quebradiços.

    As fissuras se espalharam depressa, desenhando padrões frios pela pele, um mosaico que se expandia a olhos vistos.

    Do estômago ferido, vapores prateados começaram a exalar, ondulando no ar pesado.

    — O quê… — Tannor deu um passo vacilante para trás, a vitória evaporando dos seus olhos.

    O corpo explodiu em fragmentos de gelo, estilhaçando-se em dezenas de lâminas reluzentes. Tannor e Mirielle ergueram os braços para se proteger.

    O vapor espalhou-se num sopro gélido.

    — Porcaria! Que droga é essa!? — Tannor estava aturdido, os dentes cerrado de raiva.

    Entretanto, antes sequer pudesse expressar sua indignação, mãos pálidas e gélidas agarram seu pescoço. 

    Ele tentou gritar, mas a garganta cedeu sob a pressão implacável. Com um giro feroz, Aurora torceu o pescoço do ladino.

    Crack!

    O som da fratura ecoou pelos campos, seco e grotesco. O corpo de Tannor tombou de lado, o pescoço torcido num ângulo grotescamente antinatural. Sem súplica. Sem glória.

    Mirielle recuou, o arco tremendo em suas mãos, os olhos varrendo o terreno em pânico.

    Mas a presença gélida havia sumido. Aurora esvaíra-se no ar pesado, como uma lenda dissolvida no vento.

    — Darius! O que vamos fazer?! — sussurrou, ofegante.

    Darius, diferente dela, apenas sorriu. Um sorriso frio, indiferente, que parecia ignorar todo o horror à sua volta. Balançou a cabeça devagar, quase com pena.

    — Não vamos fazer nada, Mirielle. Ela já está longe. Ferida… mas longe.

    Com uma calma quase teatral, ele se agachou ao lado do corpo inútil de Tannor. Cuspiu no chão, próximo ao rosto sem vida.

    — Sempre avisei que essa sua arrogância idiota ia ser a sua sentença. — Sua voz, desprovida de qualquer traço de tristeza, era carregada de escárnio. — Você perdeu porque achou que ela era um brinquedo. Foi punido como uma criança estúpida.

    Sem cerimônia, vasculhou a bolsa do cadáver, retirando o saco de moedas. Sem olhar para o que havia tirado, estendeu o objeto para Mirielle, como se estivesse se livrando de algo sujo.

    — Pegue. — disse, com um meio sorriso. — Considere isso uma esmola de despedida.

    Mirielle hesitou por um instante, mas a frieza inabalável de Darius era contagiosa. Ela aceitou o pagamento, guardando-o com mãos trêmulas.

    — O que vamos fazer agora? — murmurou, tentando recuperar a postura.

    — Por enquanto, nada — respondeu, ajeitando a capa sobre os ombros. — Usei minha percepção de aura. Ela correu para o norte, em direção ao Korgar. Se a sorte dela for a mesma de Tannor, vai morrer em breve.

    Ele passou os olhos pelo horizonte enevoado, como quem já desenhava o futuro.

    — A carruagem do Lagarto-Dragão deve chegar logo. Vamos organizar os corpos dos bronthir e voltar para a cidade. Amanhã, voltamos para cá. Quero confirmar pessoalmente os cadáveres daqueles dois.

    Virou-se para Mirielle, e o sorriso que brincava nos lábios dele era de um desdém quase divino.

    — Não costumo deixar serviço malfeito para trás.

    Mirielle apenas assentiu, um calafrio percorrendo sua espinha.

    Darius, porém, não terminou. Fitou o vazio à frente, seus olhos brilhando com uma centelha de interesse.

    — A propósito… — murmurou. — Se ela não tivesse escapado, teria feito dela minha propriedade. 

    Mirielle ergueu as sobrancelhas, chocada. Mas Darius parecia falar sério.

    — Aquela polariana… — continuou, com uma reverência cruel na voz — é rara. Inteligente, perigosa, dissimulada. O jeito que manipulou Tannor, mesmo à beira da morte… foi fascinante. Ele podia não ser um pujante como eu, mas era habilidoso.

    Passou a língua pelos dentes, como um predador analisando uma presa.

    — Polarianos são uma raça curiosa. Uma pena serem tão difíceis de domesticar. — Seu sorriso ampliou-se. — Ainda assim, seria um experimento interessante.

    Virou-se para Mirielle, com um misto de arrogância e tranquilidade.

    — Vamos torcer para que ela sobreviva. Agora, temos corpos para organizar.

    E sem esperar resposta, Darius seguiu adiante, deixando o corpo de seu ex-companheiro para trás.

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