Capítulo 31 - Resistir e Sobreviver
O corpo monstruoso ainda estava com a cabeça afundada no chão. A poeira pairava no ar, girando em espirais lentas. Hazan recuou, os pés firmes no solo rachado, sentindo cada batida do coração ecoar no peito como um tambor de guerra.
Tenho certeza que isso ainda não acabou!
Correu até um tronco grosso, de madeira envelhecida e pesada. Agarrá-lo exigiu uma força que quase não tinha. Quando voltou a encarar a fera, o chão tremeu no momento em que o Korgar ergueu a cabeça.
Levantou o tronco sobre a cabeça e o balançou na diagonal.
— Toma essa, bicho maldito!
SCRASH!
A madeira quebrou em estilhaços sobre o crânio da fera, arrancando-lhe um urro de dor enquanto cambaleava.
Mais uma brecha!
Seus olhos arregalaram, e os pés afundaram no chão em resposta ao seu avanço explosivo.
[Joelhada Frontal!]
A cabeça da fera virou com um estalo grotesco.
Quando executada por um profissional, a joelhada no Muay Thai pode atingir até 40 km/h, um golpe capaz de destruir cartilagens, romper ossos com facilidade e deixar traumas que nem meses de recuperação são capazes de apagar.
Dentro dos padrões da terra, isso seria devastador.
Mas Hazan não pertencia mais àquela escala.
Ele não lutava nos limites do mundo de onde veio, nem com o corpo com que nasceu.
A carne, o osso e o fôlego que agora possuía eram moldados pela dor, pela persistência — e por algo sobrenatural que sequer era capaz de compreender.
Aquele que Persiste.
Não era apenas um título. Ele podia ter fugido, tentando se esconder enquanto fazia súplicas para as divindades daquele mundo distorcido.
Mas fugir… Fugir seria renunciar.
Não à batalha. Não ao sofrimento. Mas à única coisa que ainda o mantinha inteiro: a essência daquilo que é.
Porque às vezes, o que nos define não é a força para vencer, mas a recusa de recuar.
E foi ali, naquele instante congelado entre dois batimentos cardíacos, que Hazan avançou.
Não — ele não avançou.
Ele rompeu.
A execução refinada da técnica, somada à sua explosividade corporal, resultou numa velocidade de 80 km/h. Com 68 quilos lançados nessa velocidade, o resultado desse impacto era nada mais nada menos do que…
1.925 quilos.
A cada segundo que passava, sentia-se cada vez mais forte. A lacuna que existia entre ele e aquele predador brutal ficava cada vez menor.
Isso! Se eu continuar pressionando assim, eu posso ter uma chance!
No instante em que o pé tocou o chão, o choque veio de imediato. O estalo seco que percorreu sua perna foi quase inaudível diante do rugido da batalha — mas para Hazan, foi um trovão particular.
Seu joelho cedeu com a brutalidade de ossos partidos ao meio. Os ossos daquela fera eram extremamente densos.
E aquele golpe cobrou um preço alto demais.
Recuou, buscando o próximo movimento, mas o corpo não respondeu como antes.
— Agora não, porra…
Uma dor perfurante atravessou o peito. Seus olhos se arregalaram.
Algo estava errado.
Tentou inspirar. Nada. Os pulmões ardiam a cada tentativa.
— Não… — murmurou, a voz rouca e partida, tombando de joelhos.
Os dedos foram direto ao pescoço. Conhecia aquela pressão sufocante. Seu corpo gritava por oxigênio. A visão escurecia nas bordas, como se o mundo fosse uma chama apagando.
Meu joelho tá quebrado… Não sei quantos golpes ainda consigo dar com ele assim. E essa maldição… essa maldição não vai parar.
Mas ele não era feito para cair. Hazan cerrou os dentes, apoiando a mão no joelho estilhaçado.
A dor era insana. Um rugido constante sob a pele, um lembrete cruel de que cada músculo já havia ultrapassado o limite.
— É isso… — cuspiu, com os olhos incendiando. — Vem pra cima, caralho!
E então, como uma fera ferida que se recusa a morrer, ele correu.
O Korgar, atordoado pelo golpe anterior, olhou na direção do grito — e foi nesse momento que um cruzado explodiu contra sua têmpora.
O joelho quebrado protestou. Gritou. Rasgou. Mas não parou.
Mais um!
Seu cotovelo cortou o ar e atingiu a lateral do crânio da criatura, mas isso estava longe de ser o suficiente.
Mais uma vez!
Um chute giratório desferido com tudo que lhe restava explodiu contra o focinho da besta.
Cada golpe era puro desespero canalizado em técnica. Hazan estava ignorando a dor na marra, mesmo sabendo que ela viria ainda pior.
Só restava o coração de um homem lutando contra o inevitável. E o som dos golpes, um a um, dizia ao mundo:
Enquanto eu respirar, eu luto!
O Korgar respondeu com a ferocidade de um predador que reinava nos Campos Bestiais.
Uma garrada rasgou a lateral da costela de Hazan. Outra cortou seu ombro, deixando a pele aberta e quente de sangue. Ele cambaleou, sentiu o mundo girar por um segundo — mas não caiu.
Girou o corpo, furioso, cerrando o punho no meio da trajetória.
[Gancho de Esquerda!]
O impacto foi seco. A cabeça da criatura ricocheteou contra o tronco de uma árvore, destruindo-a no processo. Pela segunda vez, o Korgar havia caído.
Que porra…?
Piscou os olhos, surpreso com o desenrolar da situação. Algo estranho dançava no ar ao redor de seu corpo, uma aura púrpura, sutil, quase viva.
Seus músculos estavam rígidos, mais densos, carregados de uma tensão que não vinha só do esforço. Era diferente. Os golpes tinham ganhado peso. Os sentidos estavam nítidos demais.
A dor recuou pouco a pouco, cedendo espaço a uma força nova. Um despertar que não vinha do corpo, mas de dentro dele.
Seu joelho gritava de dor. Sempre que firmava o pé, algo ali rangia, ameaçando desabar. Mas os músculos ao redor pareciam não se importar. Continuavam em movimento, em tensão, sustentando o corpo quebrado. A adrenalina corria solta, queimando tudo que estivesse no caminho.
A adrenalina era ótima em mentir. Fingia que a dor não importava, que o corpo aguentava mais um pouco. Era o tipo de engano que salvava vidas, ou pelo menos dava tempo de tentar. E naquele momento, precisava acreditar nela.
A aura envolvia sua pele como se respirasse com ele. Vibrava nas veias, roçava os dedos, subia pelos braços. E os olhos… agora refletiam tons de ametista, quentes e intensos.
Não sabia o que era aquilo. Não tinha tempo para entender. Apenas sentia.
Logo após levantar, a criatura avançou numa investida. Se esquivou, girou por baixo do ataque, e cravou um direto o olho da fera. A cabeça se virou.
Bam!
No mesmo instante, agarrou no braço da fera e subiu em seu corpo, prendendo as pernas ao redor do pescoço blindado da criatura.
Ergueu os braços e começou uma série de cotoveladas brutais, diretamente na cabeça.
Bam! Bam! Bam!
O sangue espirrou, quente, denso, espirrando em seu rosto.
A besta rugiu e o lançou longe com um balanço do corpo. Hazan capotou pelo chão, batendo nas raízes de uma árvore. Sentiu o mundo girar. Se levantou, pronto para voltar a lutar.
Mas não conseguiu se mover.
Seu peito doía. A garganta estava completamente travada. Ele se curvava, tentando respirar, mas nenhum ar vinha. A estranha energia sumiu tão rápido quanto surgiu. O corpo tremia. Os pulmões… estavam falhando.
O Korgar, mesmo cambaleante, ainda estava de pé. Mais ferido do que nunca. O sangue escorria pelo focinho, olhos e orelhas. A pele ao redor do crânio estava aberta em vários pontos. Mas ainda assim, caminhava. Imponente. Feroz. Um colosso que não queria tombar.
Hazan o encarou de joelhos, arfando.
O Korgar ergueu a pata dianteira, pronto para acabar com tudo.
Os olhos de Hazan estavam vidrados na pata erguida do Korgar.
Contudo, ele parou.
Um fio de sangue escorreu da narina do predador. Um tremor sutil percorreu seu corpo. Os olhos dourados se arregalaram, confusos. A pata caiu no chão, inerte. O corpo tremeu.
E tombou.
O impacto fez o chão vibrar. A fera caiu de lado, os membros contraídos, a cabeça ladeada, sangue pingando do focinho.
O cérebro é o principal órgão do sistema nervoso central e é responsável pela coordenação de movimentos e pela manutenção da consciência. Ele integra informações sensoriais, controla funções motoras e está envolvido em processos cognitivos e emocionais.
Preso dentro do crânio, fortes pancadas podem balançá-lo, ricocheteando contra as paredes ósseas como uma fruta solta dentro de um pote fechado. E quando esses choques são demais, o dano vem: hemorragias internas, falhas nos sinais, colapso.
Apesar disso, a estrutura do Korgar e seus ossos eram densos e pesados, especialmente o crânio. Hazan tinha plena noção do que precisava fazer desde o começo.
Se quisesse derrubar aquela fera, teria que repetir o castigo até que até o cérebro dela, por mais protegido que fosse, não aguentasse mais.
Um riso fraco escapou da garganta. Um riso rouco, rasgado, quase um soluço.
— É por isso que eu prefiro enfrentar pessoas…
O corpo não aguentou mais. As pernas falharam.
Caiu de joelhos.
Estava sujo, ensanguentado, coberto de suor. A pele marcada por arranhões profundos, hematomas roxos e cortes expostos. O tronco nu subia e descia em espasmos desesperados, tentando puxar um ar que não vinha. Mas ainda estava consciente. Ainda estava vivo.
Diante dele, o maior predador dos Campos Bestiais jazia inconsciente.
Se qualquer uma daquelas mordidas tivesse me acertado… Eu provavelmente estaria morto agora. Eu tive sorte.
A clareira estava silenciosa agora que o combate havia acabado.
Não. Não foi sorte. Diferente das outras vezes, eu me coloquei em posições vantajosas onde seria capaz de evitar ataques letais. Esse mérito é meu.
Fechou o punho trêmulo na frente dos olhos.
Mas não é hora de descansar… Eu preciso me levantar. Aurora ainda está cercada por aqueles malucos.
Mal sentia o próprio corpo. A garganta fechada, os pulmões queimando, a visão escurecendo nas bordas. A dor doía menos do que o vazio. Nenhuma notificação. Nenhuma mensagem de vitória. Nenhuma confirmação do sistema.
Nada.
Como se aquele monstro não significasse coisa alguma, diferente da proposta anterior da maldita tela.
Lutou para se levantar por longos minutos, mas foi em vão. De repente, ouviu o arbusto à sua esquerda estalar.
Seus músculos tensionaram. Pensou ser outro predador, talvez um segundo Korgar? Mas antes que pudesse reagir, algo saltou dos galhos baixos com o impulso de um predador faminto.
Um borrão esbranquiçado o atingiu em cheio no peito.
PÁF!
O mundo girou, e tudo parou com um baque seco e humilhante.
Hazan arfou, esmagado. Não por uma rocha, nem por uma fera. Mas por Aurora. Literalmente. Ela estava em cima dele, prensando-o contra o chão. Suada, ofegante, os cabelos colados na testa, os olhos arregalados pela dor e surpresa.
Ele piscou, sem ar, o peito subindo com esforço. Sentia o coração dela pulsando contra o seu, forte e desritmado. O calor entre os dois era palpável. E não só o calor da maldição.
— Você… tá me esmagando — ele murmurou, tentando não notar o jeito que o cheiro dela grudava na garganta.
— Ótimo. Isso significa que você ainda tá vivo — retrucou ela, sem se mover.
Um silêncio esquisito desceu, tão sufocante quanto a própria maldição que os cercava. Ambos ofegavam, os rostos quase colados. As tatuagens negras no pescoço de Aurora — correntes finas, espinhosas — começavam a sumir, esmaecendo como fumaça dissipada.
— Fui cercada por aqueles três — disse Aurora, após um longo silêncio. A voz rouca soava como metal riscando pedra. — Mas consegui escapar. Tannor está morto.
Hazan ergueu o olhar, surpreso.
— Você matou aquele desgraçado? Isso não vai dar problema?
— Eles tentaram nos matar primeiro — retrucou, seca como pólvora. — E não há nenhuma prova que me ligue ao corpo. Nada que reste, pelo menos.
— Pelo menos, você tá viva… — Um sorriso torto, quase debochado, surgiu no canto dos lábios. — Vaso ruim não quebra fácil.
Ela soltou um estalo impaciente com a língua e o encarou de esguelha.
— Bastou uma única conjuração contra nós, e a maldição se intensificou. Muito mais do que nos últimos dias. Mas… — passou a mão pela nuca, limpando o suor misturado com sangue seco — …minha teoria estava certa. Enquanto estivermos próximos, os sintomas não pioram.
Hazan franziu o cenho, desviando o olhar para o chão rachado sob seus pés.
— Então precisamos aprender mais sobre isso. Só assim vamos conseguir lidar melhor com esses imprevistos.
— Uau — ela respondeu, com um arquejo zombeteiro —, você finalmente disse algo que presta.
Aurora se remexeu, o corpo cansado como se cada osso pesasse uma tonelada. Abaixou-se, vasculhou a mochila jogada no chão e tirou de dentro um pequeno frasco de vidro âmbar, vedado com uma rolha antiga e manchada.
— Só tenho essa — disse, estendendo o frasco com um gesto contido. A voz era baixa, neutra, quase mecânica. — Foi cara. Não desperdice.
Hazan arqueou uma sobrancelha, surpreso. Pegou o frasco, mas não bebeu de imediato. Ficou ali, observando o líquido turvo que dançava atrás do vidro. Depois, ergueu os olhos para ela. Aurora continuava imóvel, o rosto pálido pela exaustão. Mas havia um brilho estranho nos olhos — algo entre orgulho e uma vulnerabilidade que ela tentava esconder sob camadas de sarcasmo.
— Isso é novo — comentou ele, com um meio sorriso. — Você sendo gentil comigo.
— Não se anima — rebateu ela, desviando o olhar e empurrando uma mecha rebelde da testa suada. — É só que você parece um porco prestes a desmaiar, e eu ainda preciso de você vivo. Por enquanto.
— Estou tocado — murmurou Hazan, antes de levar o frasco aos lábios. O gosto era forte e amargo.
A sensação de alívio veio devagar. Cortes fecharam, hematomas sumiram sob a pele. Mas o joelho não pareceu melhorar. Ao invés disso, a sensação era de ter a carne rasgada por algum tipo de ferimento interno que sequer era capaz de compreender.
Mas se recusava a demonstrar qualquer sinal de dor.
Aurora tomou a poção da mão dele e tomou o resto.
As folhas cravadas nas escamas do Korgar tremularam com a brisa.
— Ele não está morto — disse Aurora, se levantando. — Provavelmente vai ficar assim por algumas horas.
Ela caminhou até a criatura, sacando sua adaga. Agachou-se junto ao flanco do monstro e começou a enfiar a lâmina com firmeza entre duas escamas largas.
— Essa fera estar viva é ainda mais impressionante… — murmurou, enquanto forçava a ponta da adaga.
Hazan apenas a observava. Estava exausto demais para sentir orgulho.
— Não vamos sair de mãos abanando — continuou ela. — As escamas do Korgar são muito valorizadas. Resistentes, flexíveis, e duradouras.
Com um estalo, a primeira escama se soltou. Uma única escama era maior que sua cabeça inteira. Aurora a ergueu, ainda úmida de sangue, e a virou nas mãos.
— Isso é mais valioso para fazer equipamentos, mas também pode vender se quiser.
Ela se virou para Hazan e ergueu a escama como se dissesse: vale a pena.
Hazan apenas assentiu.
Depois de mais alguns minutos de coleta, doze escamas foram coletadas.
Hazan apontou para sua mochila despedaçada. — Tem uma corda ali, pode usar para amarrar.
Aurora assentiu em silêncio e começou a juntar as escamas, improvisando uma bolsa com a corda que carregava. Amarrava tudo com precisão quase militar, mas quando tentou erguer o embrulho e prender à alça da mochila, subestimou o peso. Com um tropeço desajeitado, caiu de traseiro no chão, soltando um “argh” frustrado.
Hazan conteve uma risada — ou tentou. Um riso abafado escapou mesmo assim, o que lhe rendeu um olhar mortal de Aurora.
— Você consegue rir nessa situação?
— Ei, ei, relaxa — disse ele, ainda rindo, forçando-se a levantar. Desde que não apoiasse todo o peso na perna esquerda, ainda conseguia andar, mesmo que mancando. Se aproximou dela com passos lentos e estendeu a mão. — Vem cá, cara pálida.
Ela aceitou a mão com um resmungo, e ele a puxou de volta ao eixo com mais força do que deveria — quase acabaram os dois no chão. Aurora tropeçou para frente, e Hazan instintivamente segurou-a pela cintura.
Por um instante, ficaram perto demais.
Ela esboçou desprezo e se afastou, juntando as escamas na bolsa improvisada.
— Olha só, vou propor uma troca — disse Hazan, mantendo o sorriso relaxado.
— Que tipo de troca?
— Eu carrego sua mochila e as escamas. Em troca, você me empresta o ombro. Só pra garantir que eu não desmonte no meio do caminho.
Aurora arqueou uma sobrancelha, desconfiada.
— Se cair em cima de mim, eu te deixo no meio mato.
— Negócio fechado — respondeu Hazan, sorrindo enquanto passava a alça da mochila dela por cima do ombro bom. Ela ofereceu o braço, relutante, mas firme.
Seguiram lado a lado pela trilha tortuosa, mancando, tropeçando, resmungando.
Mas haviam sobrevivido.
E naquele momento, isso já era o bastante.
A viagem de volta foi uma tortura lenta.
Hazan e Aurora caminharam por trilhas apertadas, entre raízes e pedras soltas, ambos mancando, cobertos de sangue seco, sujeira e arranhões. O sol já se despedia do céu quando as muralhas da cidade surgiram no horizonte.
Quase quatro horas de marcha arrastada.
Sem uma carruagem, sem suprimentos, sem forças.
Os dois se apoiavam um no outro por pura necessidade. Aurora, como sempre, parecia irritada com a situação, mas não dizia uma palavra. Hazan também não.
A cidade os recebeu com um silêncio estranho.
Os guardas na entrada hesitaram ao vê-los. Dois jovens parecendo saídos de um campo de batalha. Mas as escamas presas na cintura de Hazan não mentia. E eles reconheceram aquele material.
As pessoas murmuraram todo o tipo de coisa enquanto eles caminhavam pelas ruas, alimentando rumores do passado.
Quando finalmente chegaram à pousada, o céu já se pintava com estrelas tímidas.
A porta rangeu ao ser empurrada, e um sopro quente escapou do interior da pousada, trazendo consigo o aroma acolhedor de sopa de legumes recém-cozida e pão assando no forno a lenha.
A luz âmbar das lamparinas penduradas nas vigas de madeira revelava um salão modesto, mas aconchegante. Mesas rústicas, algumas com marcas de talheres e copos mal apoiados, estavam dispostas com toalhas simples de algodão cru.
Ao fundo, atrás do balcão, Randolf esfregava uma caneca com um pano já úmido demais para fazer qualquer diferença. Do outro lado, Alice ajeitava pratos e talheres.
No momento em que a dupla entrou, ambos não tiveram escolha a não ser parar o que estavam fazendo.
Randolf arregalou os olhos, os dedos afrouxando sobre a caneca. O pano escorregou no balcão. Alice ficou imóvel com um prato nas mãos.
— Mas o que em nome de Unitas… — murmurou Randolf, franzindo a testa. Os olhos castanhos se estreitaram, analisando o estado deplorável dos dois.
Hazan apoiava o peso do corpo numa perna só, o rosto sujo de fuligem e sangue seco. O olhar exausto e o leve mancar denunciavam o quanto estava por um fio.
Ao lado dele, Aurora parecia não estar em muito melhor estado, mas havia algo ferozmente intacto em sua postura. As roupas rasgadas ainda estavam cobertas por pequenas manchas de sangue — a maioria não era dela —, e os fios brancos colados pela transpiração desciam pelo pescoço até a clavícula. Os olhos, no entanto, mantinham o brilho de sempre: frios, calculistas, e um pouco irritados por ainda estarem de pé.
— Hazan…? Aurora…? — a voz de Alice oscilou entre incredulidade e preocupação. Ela deu dois passos à frente. — O que aconteceu com vocês?
Aurora respondeu antes que qualquer outro som pudesse preencher o vazio.
— A partir de hoje, vou dividir um quarto com Hazan.
Randolf piscou, perdido por um segundo.
Alice parou no meio da sala, ainda segurando o prato. O rosto, com sardas salpicadas sobre o nariz e as bochechas, ficou estático.
— Um quarto… compartilhado?
— Isso mesmo — respondeu Aurora com calma. — Mais prático. Metade do preço.
Randolf lançou um olhar lento para Hazan, que apenas deu de ombros, como se dissesse “não fui eu que sugeri”.
Alice ainda olhava para Aurora, o cenho franzido e os lábios apertados num traço de desconforto evidente.
— Claro… claro. Um quarto só — disse Randolf por fim, tentando manter a voz neutra, mas falhando um pouco no final.
— Eu vou subir primeiro — anunciou Aurora, já se virando. — Ele paga. — Tocou o ombro de Hazan duas vezes com os dedos, e seguiu para a escada sem mais explicações.
Passou por Alice sem sequer olhá-la.
Alice a acompanhou com os olhos até o topo dos degraus, a expressão rígida, a mandíbula cerrada. Assim que Aurora desapareceu no andar de cima, ela bufou, largou o prato sobre a mesa com um baque surdo e virou-se.
— Preciso cuidar da sopa.
— Mas a sopa já está pront-
— Esfriou, pai! — rebateu Alice, já sumindo pela cortina que separava a cozinha.
Hazan ficou parado ali, no centro do saguão.
Randolf coçou a barba com a mão gorda e peluda, sem jeito.
— Rapaz… você tem uma sorte estranha. Eu diria que é azar, mas… ainda está inteiro. Isso já é alguma coisa.
— Mal consigo ficar em pé. Eu só quero limpar essas feridas e ter uma longa noite de sono…
— Bom — respondeu Randolf, caminhando até ele e dando um tapinha nas costas. — Posso te ajudar com o primeiro. O segundo é por sua conta.
As tábuas rangiam levemente sob os pés de Hazan quando ele subiu as escadas com os cabelos ainda úmidos e com um cheiro forte de sabonete.
O moletom largo e o short de algodão que Randolf lhe emprestara estavam limpos, embora claramente pertencessem a alguém com o dobro do tamanho dele. A camisa original tinha sido usada como isca contra o Korgar, e sua calça jeans remendada agora parecia uma relíquia pós-batalha, impregnada de suor, sangue e terra.
Suspirando, empurrou a porta do quarto com o ombro.
O ambiente estava escuro, iluminado apenas pela luz pálida da lua que entrava pela janela entreaberta. Ele avançou alguns passos, puxando o tecido do moletom nos ombros para ajustá-lo — e então parou.
No centro do quarto, apenas uma cama. Uma única cama de casal.
E do lado esquerdo dela, aninhada como um gato que havia finalmente encontrado abrigo, Aurora dormia. Ou pelo menos parecia dormir. Os cabelos estavam soltos sobre o travesseiro, e o rosto, normalmente afiado de expressão, descansava numa tranquilidade rara. O braço enfaixado repousava fora da coberta, e Hazan pôde notar, mesmo na penumbra, que ela já havia tratado dos próprios ferimentos.
Seu olhar se voltou para o canto do quarto.
Um balde. Dentro dele, panos avermelhados, encharcados de sangue seco e recente.
Esfregou a nuca, hesitante. O chão estava frio, duro e pouco convidativo. A ideia de Aurora dormindo numa cama macia enquanto ele se encolhia em cima de tábuas rangentes doía mais que o machucado no ombro.
Atravessou o quarto em silêncio, os passos suaves no assoalho de madeira rangendo sob o peso do corpo. Contornou a cama com o mesmo cuidado de quem desarma uma armadilha — cada movimento pensado, quase cerimonial, como se o colchão fosse uma criatura adormecida que não se devia acordar.
Deixou-se cair sobre o lado mais próximo da borda, afundando no colchão macio. A cabeça mergulhou no travesseiro com um suspiro involuntário. Olhou para o teto, a expressão entregue à exaustão.
Caralho, essa cama é muito macia…
Fechou os olhos por alguns segundos, absorvendo aquele raro momento de paz — até ela ser interrompida.
— Se tentar qualquer coisa… eu te mato — veio a voz rouca, arrastada, com um tom de ameaça.
A paz durou menos que um suspiro.
Hazan riu, seco, curto — uma risada que mais parecia um corte do que uma resposta. Cínica, sem calor.
— Sabe, eu não tenho fetiche por ameaças de morte. Especialmente vindas de alguém que me atacou antes… daquele jeito desesperado.
Thud!
O pé dela surgiu debaixo das cobertas como uma adaga surpresa, acertando o quadril dele com precisão cirúrgica. Não doeu, mas deixou claro o aviso. Hazan se encolheu, rosnando baixo enquanto empurrava o pé dela de volta com o joelho.
— Qual é a droga do seu problema? — bufou, revirando os olhos.
— Você é o problema — retrucou ela, virando-se de costas com a frieza de quem fecha uma porta sem querer ouvir mais nada. — E é melhor não roncar como da última vez.
— Espera… eu ronquei? — Ele ergueu a cabeça do travesseiro, genuinamente ofendido.
Nada. Nenhuma resposta. Só o silêncio e o som abafado da respiração dela, que aos poucos retomava o ritmo do quase-sono. Mas havia algo ali. Uma tensão sutil no ar, como uma linha invisível esticada entre os dois — pronta para arrebentar.
E então ela falou, de repente:
— Desde quando é capaz daquilo?
A voz veio sem emoção, mas o subtexto era nítido.
Hazan arqueou uma sobrancelha.
— Daquilo o quê?
— Daquela energia esquisita. Eu vi de longe. — A cabeça dela se inclinou só o suficiente para que ele visse parte do olhar semicerrado sobre o ombro. — Você não tem Mana. Não tem Aura. Não é tahtoriano. Então… o que é você, afinal?
Ele hesitou. Só por um instante.
— Não sei — respondeu, enfim, com a franqueza nua de quem não tem mais o que esconder. — Só fui até onde o corpo aguentou.
— Entendi — ela murmurou, sem se virar. O tom era neutro. Quase desinteressado.
Hazan soltou um longo suspiro e se enterrou mais fundo no travesseiro, como se quisesse se esconder do mundo inteiro ali dentro.
No quarto aquecido, sob as cobertas pesadas e a luz tênue da lamparina sobre a cômoda, ambos permaneceram calados. Separados por travesseiros, feridas e perguntas demais.
Tentaram dormir.
Minutos depois, um ronco baixinho começou a ecoar pelo quarto.
Aurora revirou os olhos e tampou os ouvidos com o travesseiro.
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