A cozinha estava um caos. 

    Panelas empilhadas na pia, farinha espalhada pelo balcão, temperos derramados no chão. Hazan estava usando uma touca transparente, vestindo uma camiseta preta, um avental branco e uma calça de moletom surrada. 

    Suas mãos tremiam levemente, e havia suor escorrendo por sua têmpora, misturado à frustração estampada em seus olhos. Era sua quarta tentativa de fazer o maldito Beef Wellington — e mais uma vez, o resultado estava longe do que esperava.

    — De novo não… — murmurou, ao cortar o prato e ver a carne cozida demais, e a massa encharcada.

    Sentia estar pronto. Após anos mergulhando no mundo da culinária, tinha aprendido técnicas, e ajustou várias receitas ao aprender sobre a combinação de sabores. 

    O Beef Wellington era conhecido por ser o prato mais difícil do mundo. Exigia precisão, paciência, e, acima de tudo, respeito pelo prato. Era o teste perfeito para saber se tinha deixado de ser um iniciante na culinária.

    Acertar o ponto da carne, o equilíbrio do molho e a textura da massa eram tarefas particularmente difíceis.

    Uma semana.

    Sete dias de tentativas e erros, todas durante a madrugada, onde tinha mais tempo livre. As luzes da cozinha continuavam acesas, enquanto o mundo lá fora mergulhava no silêncio, e apenas os grilos e o tique-taque do relógio faziam companhia. 

    Fazia questão de guardar cada tentativa numa marmita. Esses pratos não se enquadravam nas exigências que fazia o Beef Wellington ser tão único, mas ele se recusava a desperdiçar comida. Seria o seu almoço pelos próximos dias.

    Morando em Bangcoc, alguns dos componentes clássicos do prato eram raros ou caros demais. Encontrar um bom filé, cogumelos adequados, presunto cru de qualidade… tudo exigia esforço, é por isso que sempre usava alternativas mais baratas. Mas nada se comparava à frustração de errar de novo.

    Em cima do balcão, um calendário com um círculo vermelho ao redor de uma data próxima. Aquilo o relembrava o motivo de estar tentando tanto.

    Após mais uma decepção, Hazan se jogou na cadeira da cozinha e passou as mãos no rosto. 

    — Que se foda, isso tudo é inútil…

    O cheiro suave de alho e carne passeavam pelo ar. Foi quando notou uma pequena tigela sobre a mesa, coberto com um pano. Levantou a toalha e sorriu.

    Ela nunca esquece.

    Pegou a colher e provou. Um sabor suave, levemente salgado, uma textura cremosa e quente que abraçava por dentro. Pequenos pedaços de carne muito bem temperados praticamente derretiam na boca. 

    Ela definitivamente é horrível cozinhando… Então por que esse simples mingau é tão gostoso?

    Era sempre assim. Desde pequeno, quando ficava acordado além da conta, estudando ou treinando, encontrava o mesmo prato à sua espera. Hazan sabia que sua tia era péssima cozinheira. 

    Tudo o que tentava fazer saía salgado demais, doce demais, ou simplesmente tinha uma aparência irreconhecível, e uma única colher da horrorosa mistura poderia ser letal. Mas aquele mingau… aquele mingau era diferente. 

    — Qual é o ingrediente secreto, tia…? — murmurou, com um sorriso triste. — Você sempre diz que é pra eu descobrir sozinho… mas eu queria mesmo saber.

    Inspirado por esse calor familiar, Hazan decidiu tentar mais uma vez. Mas agora, com um novo objetivo. Não queria provar para si mesmo que era realmente bom. Queria fazer aquilo funcionar — por alguém.

    Naquela madrugada, sua quinta tentativa também fracassou. A massa ficou boa, mas a carne passou do ponto. Ele anotou mentalmente o tempo e a temperatura. 

    Não desistiria tão fácil.

    Na próxima madrugada, reuniu os melhores ingredientes que tinha. Usou um tipo de cogumelo local que tinha uma textura semelhante ao portobello. Envolveu a carne com presunto de qualidade mediana, mas cortado finamente. 

    Preparou o duxelle com calma, sentindo os aromas invadirem sua cozinha. Selou a carne com calma, embrulhou tudo na massa folhada feita na noite anterior, e colocou no forno.

    O tempo parecia se estender conforme o prato assava. Sentado à frente do forno, os olhos atentos ao dourado da massa. O relógio passou das cinco da manhã. Finalmente, o aroma indicava que estava pronto.

    Com as mãos trêmulas, retirou do forno. Deixou descansar, como manda a receita, resistindo à vontade de cortar imediatamente. Finalmente, pegou a faca e deslizou-a pelo centro do prato.

    O interior revelou a carne rosada, suculenta, cercada pela duxelle aromática e envolta por uma massa perfeitamente crocante. Ele provou.

    — É isso… — sussurrou.

    Não era só bom. Era espetacular. 

    A massa tem um sabor amanteigado, que praticamente derrete na boca. É crocante, mas delicada. Logo depois, o duxelle… tem um sabor intenso, com um aroma sutil de alho. O presunto adiciona um salgado intenso com o filé, mas o doce do vinho equilibra tudo no final.

    Sentiu uma onda de satisfação tomar o seu peito, mas ainda não era hora de se sentir assim. 

    Na manhã seguinte, acordou cedo, refazendo o prato do zero da mesma forma que tinha feito antes. Aquela era a versão que serviria.

    O calendário marcava a data circulada em vermelho. O destino: um pequeno instituto localizado nos bairros mais humildes de Bangcoc. Um lugar que oferecia refeições gratuitas a pessoas em situação de vulnerabilidade. 

    Hazan e Rafaela ajudavam o local duas vezes por mês. Ele ajudava a cozinhar as refeições para as pessoas carentes, e Rafaela ajudava na organização, orientando as pessoas, muitas vezes limpando mesas, outras vezes apenas conversando com quem precisava.

    O local funcionava em um antigo galpão abandonado. Era simples, mas limpo e acolhedor. 

    — Usar essas caixas térmicas pra manter a temperatura da comida foi uma excelente ideia — elogiou Rafaela com um sorriso de canto, enquanto erguia com facilidade duas das caixas até o baú da moto. — E você pensou nisso sozinho, hein? Olha só…

    Era uma Yamaha SR400, uma clássica retrô de linhas elegantes, tanque arredondado e alma nostálgica.

    A manhã estava gélida, do tipo que fazia o vapor da respiração dançar no ar. Rafaela vestia uma camisa térmica de mangas longas, preta como carvão, que realçava o porte atlético moldado por anos de treino. Por cima, um colete acolchoado discreto, só para cortar o vento. 

    Calças jeans reforçadas e botas de couro surradas completavam o visual prático. Seus cabelos curtos estavam presos em um coque firme, mas alguns fios teimosos escapavam, balançando com o vento. Um par de óculos escuros escondia os olhos, mas não a expressão calma no rosto.

    — Eu queria garantir que a experiência do prato não fosse afetada — respondeu Hazan, agachado ao lado da moto para conferir o lacre das caixas.

    A jaqueta de tecido grosso abraçava seu corpo esguio, mas firme, e o cachecol enrolado no pescoço dava um toque quase estiloso, embora fosse mais para proteger do frio que por vaidade. As luvas sem dedos deixavam as mãos livres para trabalhar, mas denunciavam o quanto o frio incomodava.

    Rafaela ergueu uma sobrancelha.

    — Olha só você, falando em experiência do prato… 

    — Só agora você percebeu o quanto eu sou incrível?

    Ela bufou uma risada, fechando o baú com um estalo. Rafaela deu um leve tapa no ombro dele, como quem dizia “corta essa”, mas o sorriso não sumiu de seus lábios.

    — Beleza — disse Hazan, ajustando o capacete e conferindo o painel. — Tá tudo aqui. A cozinha abre às oito. Nossa manhã vai ser corrida.

    — Então vamos nessa, pequeno chef — Rafaela montou na moto de Hazan como quem já fazia aquilo desde sempre.

    Os dois aceleraram pelas ruas ainda adormecidas da cidade.

    O galpão era antigo, com o telhado de zinco rangendo sob o calor úmido da tarde. As paredes manchadas pelo tempo ainda exalavam um leve cheiro de carvão e óleo velho, lembranças dos anos em que servira de oficina.

    Agora, no entanto, o espaço era transformado diariamente em um refúgio temporário para aqueles que precisavam de uma refeição quente. 

    Do lado de fora, famílias formavam filas que dobravam a esquina. Mães com crianças no colo, idosos magros de olhar cansado, adolescentes com roupas surradas, todos esperavam sua vez com paciência.

    Dentro do galpão, algumas mesas de madeira lascada estavam espalhadas em fileiras improvisadas. Voluntários uniformizados com aventais simples e lenços na cabeça ajudavam a distribuir as porções, recolher bandejas, limpar mesas.

    O vapor da comida subia em colunas densas, misturando-se ao aroma picante do gengibre e ao calor que tornava o ar quase palpável.

    No meio daquele turbilhão de vozes e movimento, Rafaela se destacava, não por impor presença, mas por ser presença. 

    Circulava entre os voluntários com uma eficiência quase militar: carregava caixas com legumes frescos nos braços, organizava filas, conferia nomes em listas, ajeitava o avental de uma senhora que ajudava na limpeza e, em meio a tudo isso, encontrava tempo para conversar com quem precisava de mais do que uma refeição.

    — Ei, hoje é sua terceira vez aqui, não é? — disse a um rapaz de boné gasto, estendendo uma marmita com um sorriso discreto. — Tenta descansar o tornozelo. Ainda está mancando.

    O garoto, surpreso, assentiu timidamente. 

    Conversava com idosos usando um tom calmo e respeitoso, perguntava de filhos desaparecidos com cuidado e ouvia cada história como se fosse única, sem julgamento, sem pressa.

    Rumores sobre a Yakuza ter intensificado suas atividades havia se espalhado por todos os cantos dos bairros mais pobres, onde algumas pessoas desapareciam sem deixar rastros.

    Em seguida, já estava na parte dos fundos empilhando sacos de arroz ou acalmando uma criança chorando.

    — Levanta esse queixo — dizia a uma menina que limpava as mesas. — Quem ajuda os outros tem que se orgulhar disso.

    Rafaela era conhecida por todos. Admirada. Muitos chamavam por ela como se fosse alguém da família. Mesmo aqueles que não sabiam seu nome exato se referiam a ela com reverência: “a mulher forte”, “a moça da moto”, “a que ajuda todo mundo”.

    Na cozinha, Hazan também dava o seu melhor. A estrutura era improvisada, mas funcional: panelões fundos em fogareiros industriais, tábuas de corte gastas, montes de ingredientes organizados em bacias plásticas. Cada espaço era aproveitado. E ali dentro, ninguém desperdiçava tempo.

    Estava rodeado por veteranos da culinária, ex-cozinheiros de restaurantes que fecharam durante tempos difíceis, senhores e senhoras que um dia serviram pratos refinados em hotéis cinco estrelas ou barraquinhas famosas nas ruas movimentadas de Silom e Sukhumvit. 

    Nenhum deles falava muito, mas adoravam ajudar as outras pessoas.

    Naquela tarde, preparavam khao rad gaeng, um tipo de arroz branco coberto com acompanhamentos variados. Hazan cuidava de uma panela imensa de curry de frango com leite de coco, batata-doce e folhas de limão kaffir. 

    Mexia com uma colher de madeira do tamanho de um remo, os músculos dos braços tensionados, o rosto brilhando de suor. 

    Ao lado, uma senhora idosa finalizava uma sopa leve feita com tofu, cenoura, nabo e repolho, temperada com óleo de gergelim e cebolinha.

    Em outra estação, um homem baixo e calvo fritava rolinhos primavera recheados com macarrão de arroz e broto de bambu.

    Cada um tinha seu papel. E Hazan sabia que, se se distraísse por um instante, perderia a chance de aprender com gente que havia passado a vida atrás de fogões. Todos ali eram professores silenciosos, exigentes sem precisar dizer nada.

    A comida precisava sair rápida. As marmitas iam sendo preenchidas em sequência: uma concha generosa de arroz jasmin, duas colheres do curry espesso, uma porção da sopa quente em um copinho com tampa, e um rolinho primavera embrulhado em papel encerado. 

    Voluntários formavam uma linha eficiente, passando os recipientes uns aos outros, até chegarem à área de distribuição.

    De tempos em tempos, Rafaela passava brevemente pela cozinha, não para supervisionar, mas para somar — ajudava a empilhar as marmitas nas caixas térmicas, trocava uma panela de lugar, ou dizia em voz baixa:

    — Tá bom, mas pode reduzir um pouco o sal. Tem muito idoso com pressão alta hoje.

    Depois, já havia sumido de novo.

    Do lado de fora, o aroma provocava sorrisos, e as mãos calejadas que recebiam as marmitas o faziam com gratidão profunda.

    Algumas crianças espiavam para dentro da cozinha, encantadas com o movimento ritmado, como se assistissem a um espetáculo.

    Hazan, com o rosto banhado em suor, não sorria. Estava concentrado.

    A única distração que permitia a si mesmo era olhar de relance para como os outros faziam, a maneira como refogavam cebolas até o ponto exato de doçura, o uso quase invisível de açúcar de palma em certos molhos, ou o tempo de descanso do arroz antes de ser servido.

    No meio da troca de turnos, uma jovem entrou no galpão, chamando a atenção de Rafaela. Tinha a pele morena, os cabelos levemente cacheados e os olhos castanhos claros que refletiam curiosidade e firmeza. 

    Usava uma camiseta surrada, que já tinha enfrentado bons dias de sol e poeira, e exibia um olhar determinado, direto. Carregava uma mochila pequena nas costas e, ao avistar Rafaela de longe, abriu um sorriso largo.

    — Como vai, pequena? — cumprimentou Rafaela, abrindo um sorriso.

    — Dona Rafaela! — A garota se aproximou, abaixando a cabeça e se curvando levemente com um cumprimento. — O Hazan v-veio também…?

    Rafaela apenas balançou a cabeça e esperou a garota observar melhor. 

    Saindo da cozinha, Hazan tirava a touca transparente e o avental branco, ficando apenas com sua habitual camisa preta. Passou as mãos pelos cabelos, tirando o suor.

    As bochechas da garota ficaram ruborizadas ao observar aquela cena. Foi quando seus olhos se encontraram, e ela desviou o olhar.

    Hazan se aproximou com um sorriso e entregou a ela uma sacola com duas marmitas, cada uma etiquetada.

    — E aí, Mali! É melhor você e o seu velho comerem tudo, hein? 

    Rafaela lançou um olhar duro para seu sobrinho, repreendendo-o pela falta de educação. Ele desviou o olhar, coçando a bochecha.

     — Espero q-que aproveitem…

    — V-você fez mesmo… Não sei se posso aceitar algo assim — disse Mali, com os olhos arregalados e um meio sorriso. — Eu posso considerar, mas só se vierem junto comigo. Aposto que meu avô vai gostar mais da visita do que da comida!

    Rafaela lançou aquele sorriso torto e provocador que Hazan conhecia bem demais, aquele que dizia “vai acontecer do meu jeito” antes mesmo que ela abrisse a boca.

    Hazan suspirou, já sentindo o peso do destino nos ombros. E, minutos depois, como previsto, lá estavam os três espremidos na sua moto. 

    Mali, com seus olhos brilhando de empolgação, ocupava o meio, abraçada com entusiasmo às costas de Hazan, que mantinha o corpo tenso como se aquilo fosse um teste de equilíbrio olímpico.

    Rafaela, por sua vez, vinha sentada por último, firme e impassível, como uma sombra protetora, embora claramente se divertisse com a situação.

    — Essa moto não foi feita pra três pessoas… — resmungou Hazan, com o motor roncando baixinho, ainda hesitante.

    — A gente já deu um jeito nisso. A Mali é pequena, nem conta — respondeu Rafaela, impassível, como se aquilo fosse matemática simples.

    — Pena que não posso dizer o mesmo da senhor–

    O tapa veio seco na nuca.

    — Capacete. Agora. — Rafaela ordenou com o tom que ela usava tanto pra crianças travessas quanto pra bandidos armados. — E dirige devagar.

    Hazan bufou, puxou o capacete com desgosto e resmungou enquanto ajustava a fivela.

    — Porcaria… Isso vai dar muito errado.

    — Vai dar certo, relaxa! — Mali disse com alegria. — Eu já estou adorando!

    O motor da SR400 resmungou mais alto ao ser acelerado. E assim, sob olhares curiosos e gargalhadas dos voluntários do galpão, o trio partiu, um verdadeiro espetáculo ambulante. 

    As ruas de Bangkok acolheram a moto como se também participassem da comédia. As luzes alaranjadas dos postes se refletiam nas poças deixadas pela chuva recente, transformando o asfalto em um mosaico cintilante. 

    As barracas de comida nas calçadas ainda soltavam fumaça, misturando o cheiro de peixe grelhado, pimenta e ervas frescas no ar.

    Motos passavam zunindo por todos os lados como insetos elétricos, e Hazan tentava, com dificuldade, manter a direção com equilíbrio, dignidade… e os dois braços.

    — Tia, por que cê tá se segurando em mim?! — perguntou num tom acusatório.

    — Não seja assim, eu gostaria de poder confiar em você para manter essa moto reta. Um dia, talvez.

    Mali soltava risadinhas abafadas no meio dos dois.

    — Hazan, você dirige igual uma senhora de 90 anos! — ela provocou, os braços ainda firmes ao redor da cintura dele.

    — Só tem uma senhora nessa moto, e definitivamente não sou eu… — ele retrucou, num tom sarcástico.

    — Continua falando que você ganha outro tapa — disse Rafaela.

    O caminho até a casa de Mali os levou por becos estreitos e ruelas cheias de vida. Crianças brincavam descalças, correndo atrás de bolas improvisadas feitas de meias.

    Gatos se espreguiçavam sobre os muros, e em uma esquina, um senhor vendia frutas frescas sob um toldo iluminado por uma única lâmpada pendurada por fio.

    Ao virar uma curva apertada, Hazan soltou um suspiro cansado.

    — Por que eu deixei vocês me convencerem?

    — Porque no fundo, você gosta — Rafaela respondeu com um tom tranquilo. — E porque a Mali pediu com aquele olhar pidão.

    — Eu sou irresistível — disse a menina, orgulhosa, inclinando o rosto por cima do ombro de Hazan.

    — …Você é um acidente esperando pra acontecer — murmurou ele, mas com um meio sorriso nos lábios.

    Conforme entravam em um bairro mais afastado, as casas se tornavam mais simples. Construções de concreto com paredes descascadas e telhados de zinco, plantas crescendo em vasos reaproveitados de tinta, roupas penduradas em varais improvisados e vozes ecoando de rádios.

    Era um bairro pobre, mas vivo. um daqueles lugares em que todo mundo se conhecia.

    — Tô surpresa que a gente tá indo tão bem! — Mali gritou com alegria, quando a moto finalmente desacelerou para dobrar a última esquina.

    — Cala a boca antes que o universo ouça — respondeu Hazan, olhando nervoso para um cachorro que atravessava a rua na frente deles como se fosse o dono do bairro.

    — Relaxa, “piloto”. Eu tô aqui atrás. Se cair, eu seguro vocês dois — Rafaela tranquilizou.

    A moto parou com um leve estalo do freio dianteiro, e ele soltou um suspiro de alívio — ou exaustão. A Yamaha SR400, reluzente apesar da poeira da estrada, arfava como um cão cansado, claramente ressentida por carregar três pessoas no lombo.

    — Nunca mais… — murmurou Hazan, tirando o capacete e lançando um olhar para Rafaela.

    — Sobreviveu, não sobreviveu? — ela respondeu com um sorriso travesso.

    Mali escorregou do meio dos dois, os cabelos desgrenhados pelo vento e o rosto iluminado.

    — É aqui! Vem, Hazan!

    Atravessaram o portão de ferro que rangeu com um chiado comprido, típico de casas antigas. Do lado direito, a pequena garagem aberta exalava cheiro de graxa e ferrugem.

    Ali, um senhor de cabelos brancos e expressão serena mexia no motor de uma motocicleta ainda mais velha que a de Hazan.

    — Vovô! — chamou Mali, correndo até ele. — Olha quem eu trouxe!

    O velho ergueu os olhos devagar, e mesmo sob as sobrancelhas espessas, havia um brilho vivo. Limpou as mãos num pano encardido e se levantou com um leve estalo nos joelhos.

    — Senhor Narin… — Rafaela cumprimentou com um leve aceno, tirando os óculos escuros da cabeça. — Espero que não estejamos incomodando.

    — Incomodam mais as motos que não pegam no tranco — respondeu ele. — Hazan, não é? A última vez que vi essa Yamaha, estava com um carburador teimoso.

    — É, ficou bom depois do seu conserto. Tão bom que resolvi devolver o favor — disse Hazan, indicando a marmita que Mali segurava como se fosse uma relíquia.

    — Um favor, é? — Narin arqueou uma sobrancelha.

    Mali riu e passou por ele de fininho, cutucando-o com o cotovelo.

    — Mas não é qualquer favor, vovô. É… um favorzão! Você vai gostar.

    Curioso, Narin os seguiu até a cozinha, onde o chão de cimento queimado estava impecavelmente limpo, e as janelas deixavam entrar a luz alaranjada do entardecer.

    A mesa simples de madeira, arranhada pelo tempo, logo se transformou em um altar improvisado. 

    Hazan retirou a tampa da marmita com cuidado.

    O aroma se espalhou lentamente, invadindo cada canto da casa: carne temperada, cogumelos salteados, massa folhada dourada no ponto exato. Narin parou no meio do passo, como se uma lembrança tivesse puxado sua perna.

    — Eu sei que não é comum por aqui, mas… Aquela sua história me inspirou. Achei que vali a pena tentar.

    — Lembra, vovô? Do prato dourado do mar? Você sempre contava essa história…

    Narin sentou-se sem dizer nada, pegando o garfo com as mãos trêmulas. Não de fraqueza, mas de reverência. Cortou a massa, e a carne rosada apareceu por dentro como um pôr do sol sangrando sob nuvens.

    O garfo foi à boca.

    Rafaela apoiou os cotovelos na mesa, observando. Hazan manteve os olhos baixos.

    Então veio a lágrima.

    — Há quarenta anos… — começou Narin, com a voz rouca. — … provei isso em alto-mar. Um francês maluco preparou pra gente depois de uma tempestade. Tínhamos sobrevivido. Comemos sobre tambores, com óleo até nos sapatos. Ríamos, embora soubéssemos que o navio podia afundar no dia seguinte.

    Fez uma pausa, apertando o garfo com força.

    — Esse sabor me levou de volta. Por alguns minutos… eu esqueci que não estava mais no mar.

    A cozinha permaneceu em silêncio. Rafaela cruzou os braços e olhou Hazan de lado, um sorriso discreto crescendo no canto dos lábios.

    Mali também aproveitava o prato, mas empurrou a última porção na direção do avô.

    — Aqui, vovô… come mais. 

    Narin passou a mão sobre os cabelos dela, com um gesto que era tanto carinho quanto bênção.

    — Você é meu pedacinho de mar em terra firme, sabia?

    Hazan se levantou, começando a recolher os pratos, mas foi interrompido por uma mão firme no pulso.

    — Meu jovem… — disse Narin, firme, sem perder a ternura — … eu reconheço esses cortes nos seus dedos. Você vive o que faz. Não esqueça dessas memórias. Elas são preciosas.

    Hazan tentou responder, mas a garganta travou. Apenas assentiu, engolindo em seco.


    Do lado de fora, o céu começava a se vestir com os tons do crepúsculo. Hazan ajeitou a jaqueta e fechou o zíper. Mali veio atrás, com passos indecisos, e se aproximou com algo escondido atrás das costas.

    — É só… um rabisco. Nem é bom. — Ela enfiou o papel dobrado no bolso da jaqueta dele e recuou, quase tropeçando no chinelo.

    Curioso, ele abriu a folha.

    Um desenho: Hazan no topo de um ringue, com um juíz estendendo seu punho para cima. Seu oponente estava caído no chão, com uma expressão dramática e a língua para fora.

    “Obrigada por fazer meu avô sorrir de novo. Boa sorte na sua próxima luta!”

    — Mali

    Apertou o papel com delicadeza. Respirou fundo e guardou o bilhete de volta.

    Às vezes, os pedaços que faltam em quem somos… são encontrados na mesa de alguém.

    De volta à moto, Rafaela ajeitou o capacete com um sorriso de canto, daqueles raros que pareciam escapar do controle dela. Uma brisa morna balançava discretamente os fios soltos do cabelo preso sob o capacete.

    — Então? Como é a sensação de ser um chef cinco estrelas por um dia?

    Hazan se espreguiçou, os ombros relaxados pela primeira vez em horas.

    — É… esclarecedor. — Fez uma pausa, respirando fundo. — Eu só consegui fazer esse prato porque eu realmente queria. Não por técnica, nem por treino. Eu queria que alguém ficasse feliz. E… acho que isso fez toda a diferença.

    Rafaela o olhou de lado, e por um instante, os traços firmes dela — sempre tão duros, sempre prontos para o próximo soco — suavizaram. Os olhos carregavam algo raro, como se, por um breve segundo, ela tivesse deixado a armadura de lado.

    — Então você descobriu o meu segredo — disse, com um tom de surpresa fingida. — Sempre que eu faço aquele mingau… tudo o que eu quero é te ver bem. Feliz. É isso que eu coloco todas às vezes. O meu ingrediente secreto.

    Hazan soltou uma risada curta e desacreditada, inclinando a cabeça para o lado como quem finalmente junta as peças de um mistério antigo.

    — Isso explica muita coisa sobre os seus dotes culinários…

    Ela arqueou a sobrancelha.

    — Quer dizer, você é basicamente um desastre na cozinha. Mas aquele mingau? Um milagre culinário. Sério. 

    — Você ainda tem um longo caminho, chef celebridade.

    — Como um gênio da crítica gastronômica? Com certeza. — Hazan subiu na moto com aquele ar satisfeito de quem venceu uma discussão imaginária.

    Ela se ajeitou atrás dele, enquanto ele ajustava os espelhos com mais cerimônia do que o necessário.

    — Sabe… — disse ela, com um tom casual demais pra ser inocente. — Eu tava pensando em testar umas receitas novas. Quem sabe um arroz à moda da casa? Uns bolinhos…

    Hazan congelou, depois virou-se devagar, os olhos arregalados como se tivesse ouvido uma ameaça de bomba.

    — Olha… acho que ser uma lutadora durona já é o dom perfeito pra você. Vamos manter a humanidade viva e bem alimentada, combinado?

    Rafaela exibiu um sorriso tranquilo e assentiu.

    — É um ótimo dom mesmo. Bom o bastante pra saber quando é hora de aumentar a dificuldade dos seus trein-

    VRUMM!

    Antes que ela terminasse a frase, Hazan deu partida na moto, interrompendo-a de propósito — e nem tentou disfarçar.

    — Sabe… acho que se você usar o mesmo ingrediente secreto, talvez até o arroz sobreviva.

    — Se o crítico está dizendo…

    Eles riram, e o ronco do motor voltou a dominar a estrada deserta. O mundo parecia suspenso entre o som grave da moto e o silêncio calmo dos campos ao redor. O vento cortava o frio da noite, e a paisagem passava como um filme sem diálogos — só eles, o motor e o céu.

    Percorreram bons quilômetros até a moto dar um primeiro engasgo.

    Depois, mais um.

    E então… silêncio.

    — Ah, não… — murmurou o jovem.

    Rafaela desceu da garupa com calma, sem pressa, já tirando o capacete com aquele jeito prático de quem já tinha passado por coisa pior. Olhou para a moto, depois para Hazan.

    — Eu tenho certeza de que te dei dinheiro para a gasolina.

    Hazan coçou a nuca, envergonhado.

    — Então… sobre isso… Meio que eu precisei refazer a receita algumas vezes. A massa folhada rasgou, o ponto do filé passou… e, bom, o patê tava mais caro do que eu lembrava.

    Ela encarou o céu, apreciando o brilho das estrelas. Ficou assim por alguns segundos, depois soltou um risinho abafado, balançando a cabeça.

    — Vem, chef. Vamos empurrar até o acostamento.

    — Sério? Sem sermão?

    — Reclamar não vai mudar nada. Da próxima vez, só gasta o dinheiro se a moto estiver de tanque cheio.

    Eles deixaram a moto em um canto seguro da estrada. A noite estava linda. A lua cheia, sem nuvens, e o céu estrelado parecendo um véu de lembranças.

    Sentaram-se lado a lado no asfalto frio, observando o infinito.

    — Você sabia que eu quase fui cozinheira? — Rafaela disse, quebrando o silêncio. — Antes de começar a lutar. Antes de tudo.

    Hazan virou o rosto, surpreso.

    — Eu vivia com o seu pai naquela época… numa casa pequena, de madeira, com goteiras no teto. A gente morava nos fundos da lanchonete da minha mãe. Ela vendia caldos. Era simples… mas era um lar.

    Ela fez uma pausa, os olhos fixos nas estrelas como se lesse nelas os contornos do passado.

    — O seu pai sempre dizia que eu levava jeito. Que meus caldos ficavam melhores que os dela. Eu… queria seguir os passos da minha mãe, abrir meu lugar um dia. Uma cozinha nossa. Mas… as contas começaram a chegar. Cada vez mais. A luz atrasava. A água cortava. E.. uma parte do dinheiro ia para a taxa de proteção.

    — Taxa de proteção? — O jovem indagou, curioso.

    Ela travou. O silêncio não era vazio — era pesado, carregado de tudo que decidiu não dizer.

    Hazan esperou. E esperou mais um pouco.

    Ela não continuou.

    Ele, então, arriscou:

    — Por que você tá me contando isso agora?

    Ela piscou devagar.

    — Não sei. Você está crescendo rápido. Merece saber dessas coisas.

    — Você falou do meu pai. Do jeito como ele era com você…

    Ela assentiu com um sorriso fraco, mas sincero.

    — Ele era meu irmão. O mais velho. Teimoso, cabeça dura. Mas… ele acreditava em mim. E isso… significava tudo, na época.

    — Mas ele abandonou a gente — disse Hazan, a voz baixa, quase um sussurro. — Abandonou minha mãe. Me deixou sozinho com ela. Como você conseguiu perdoar ele… mesmo quando ele fez o mesmo que o pai de vocês?

    O silêncio voltou, mais denso que antes.

    Rafaela demorou a responder. E quando falou, sua voz vinha com a firmeza de quem já enterrou muita dor.

    — Porque foi diferente.

    — Diferente como?

    Ela balançou a cabeça.

    — Um dia, eu te conto. Mas hoje… não. Não aqui.

    Hazan encarou o chão por um tempo, absorvendo aquelas palavras sem entendê-las completamente. Mas não insistiu.

    Aos poucos, a tensão se dissipou, como a névoa cedendo ao vento. Ele soltou um suspiro e inclinou o corpo para trás, apoiando as mãos no asfalto. Voltaram a olhar o céu.

    — E se eu fizer um caldo quando a gente voltar?

    — Bom, se você não queimar a minha garganta colocando quase um quilo de pimenta…

    Ela bufou, fingindo ofensa.

    — Aquilo foi uma vez. Você nunca esquece.

    — Nem quero. Foi o caldo mais picante e traumático da minha vida.

    Rafaela sorriu, mais leve agora.

    — E ainda assim, você comeu tudo.

    — Claro, eu odeio desperdício de comida.

    Ela não respondeu, mas olhou para ele de lado, com um olhar que dizia mais do que qualquer frase conseguiria.

    — Vamos andar um pouco — disse ela, se levantando e batendo a poeira das calças. 

    Eles seguiram pela estrada, lado a lado. Hazan empurrava a moto, Rafaela com as mãos nos bolsos e os pensamentos pairando entre o presente e o passado. A noite os envolvia como um cobertor invisível. O caminho era longo, mas naquele momento, não parecia ruim.

    Nem solitário.

    Nem frio.

    Apenas… cheio de estrelas.

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