O quarto permanecia silencioso, exceto pelo leve rangido do vento nas telhas e o barulho intermitente de pessoas lá fora. Hazan estava sentado na beirada da cama, com os cotovelos apoiados nos joelhos e os dedos entrelaçados.

    Diante de seus olhos determinados, a interface translúcida tremeluzia no ar.

    Havia um sorriso esperançoso em seu rosto. Daqueles perigosos, cheios de expectativas irreais e sonhos bonitos.

    Me fodi pra caralho tentando derrotar aquele bicho… Mas vai valer a pena! Boxe ou muay thai! Eu só preciso que seja uma das duas!

    A tela piscou.

    [Você concluiu a missão: Derrote o Korgar]

    Hazan assentiu com orgulho.

    [Atenção! Os efeitos do título “Aquele que persiste” acabaram. Seus atributos físicos receberam um pequeno aumento!]

    [Tempo de conclusão: 00h:28m:55s]

    [Parabéns! Uma de suas maestrias aleatórias será elevada para o nível intermediário!]

    — É agora. É agora. — Apertou os punhos, trincando os dentes. — Vamos, boxe! Papai precisa de um direto decente!

    [Transferindo lembranças…]

    [Maestria “Culinária” elevada para: Intermediário (0.00%)]

    Houve um silêncio. Pesado. Trágico.

    Hazan piscou.

    — …

    [Fortalecendo o vínculo com o “Coração de Ehdoton”]

    [Vínculo fortalecido!]

    Ele ainda encarava a tela, estático.

    [Por fortalecer seu vínculo, você terá direito a uma “Análise Corporal” da próxima vez que usar o “Sistema”.]

    [Você usou o Éter pela primeira vez em plano mortal. Sua conquista foi notada por um Arconte!]

    [Parabéns! Você cumpriu os requisitos e foi elegido para uma missão opcional por um Arconte! Vá até as “Ruínas do Templo de Unitas” localizado ao oeste de Ariasken!]

    [Tempo para conclusão: 10 dias.]

    [Penalidade por falha: Nenhuma.]

    Por um longo momento, Hazan apenas leu. Depois releu. E então leu de novo, devagar, sílaba por sílaba, esperando que na terceira tentativa as palavras resolvessem mudar de ideia.

    Culinária?

    Seu olho esquerdo tremeu. Uma veia pulsou na testa. A mão agarrou o lençol como se tentasse estrangular o colchão.

    — …CULINÁRIA???

    E então, explodiu:

    — SISTEMA DO CARALHO! EU NÃO PRECISO DE AULINHAS DE MASTER CHEF!

    O grito ecoou tão alto que um grupo de pombos empoleirados no telhado bateu asas em pânico e sumiu no céu, completamente aterrorizadaos.

    Atirou-se de costas na cama, os braços abertos, derrotado.

    — Porcaria…

    A interface flutuava acima dele de forma indiferente. Ele a afastou com as mãos, mas de nada adiantou.

    Tá bom. Pelo menos fiquei mais forte… eu consigo sentir isso.

    Sentou-se de novo, respirando fundo, reorganizando seus pensamentos e acalmando a cabeça quente.

    Esse sistema parece mais… alegre? Sarcástico, talvez. Ou só tá tirando com a minha cara mesmo.

    Fez uma pausa, franzindo a testa.

    E o que caralhos é um Arconte? Bom… Acho que vou ter que descobrir.

    Tentou se levantar com um impulso… e foi aí que sentiu.

    O choque veio primeiro — elétrico e implacável. Em seguida, uma dor aguda subiu pelas veias.

    — AGH—! Merda… que porra é essa…?

    Desabou de volta no colchão, os dentes cerrados, os punhos fechados. As veias em seus braços estavam ligeiramente saltadas e arroxeadas. E então notou: seu joelho esquerdo estava inchado e avermelhado.

    Ficou imóvel por um tempo, respirando devagar, a testa suando frio.

    As mãos escorregaram pelo rosto até os cabelos, bagunçando ainda mais as mechas suadas. Coçou a cabeça, frustrado, tentando desembaraçar os próprios pensamentos. O sistema tinha falado algo sobre ele ter usado um tal de “Éter”… e agora as peças começavam, lentamente, a se encaixar.

    Lembrou-se da provação contra aquela maldita estátua guerreira — Eros, era esse o nome. Tinha dito algo parecido, embora na hora… bom, era difícil prestar atenção em qualquer coisa que não fosse sobreviver. Estava com o corpo em frangalhos, o orgulho ainda mais quebrado, e uma raiva cega que não deixava espaço pra filosofia. Depois das horas intermináveis de tortura, perceber qualquer detalhe já teria sido um milagre.

    Mas a luta contra o Korgar… essa foi diferente.

    Estava focado, com o corpo tão perto do limite e sofrendo dos efeitos da maldição, que não podia se dar ao luxo de ignorar nem a mais sutil mudança. E foi ali, no meio do caos, com o coração martelando no peito e a respiração em chamas, que percebeu: uma energia estranha tinha atravessado os músculos, percorrido os ossos… uma luz roxa, viva, que acendeu e sumiu num piscar de olhos.

    Não foi imaginação. Ele sentiu.

    Esse maldito sistema me deu superpoderes ou o quê?

    Fechou os olhos. A dor física era suportável — já tinha aprendido a conviver com ela. Mas o que veio depois… foi o que realmente o derrubou.

    A lembrança.

    Ou talvez fosse um sonho, daqueles que parecem reais demais pra serem só invenção.

    A receita do Beef Wellington. A frustração. A lição aprendida por trás do fracasso, um tesouro deixado só pra quem se recusa a desistir.

    E, acima de tudo… ela.

    Sua tia.

    A imagem era embaçada, borrada, que tornava difícil identificar os detalhes de sua aparência. Mas a sensação… essa era vívida. Quente. Acolhedora.

    A risada rouca, sempre com um toque de ironia. O jeito direto de falar, que podia cortar feito faca… mas também curava. E o olhar. Aquele olhar afiado que parecia ver tudo, que pesava e amava na mesma medida, que dizia sem palavras: “Você consegue. Mesmo quando duvida. Mesmo quando cai.”

    O nome dela surgiu naturalmente. Tão simples… e doloroso.

    Por um instante, desejou que a lembrança fosse mentira. Porque doía demais lembrar alguém que talvez nunca mais fosse encontrar.

    — Rafaela… Ela era minha tia… — disse em voz alta para ter certeza de que não era uma invenção da própria cabeça.

    Mas e seus pais?

    Franziu o cenho. Procurou nas memórias… e não achou nada. Nenhuma figura paterna, nenhum rosto materno. Apenas sombras vazias, como páginas arrancadas de um diário.

    — Por que…? — murmurou, pressionando as têmporas com força. — Por que só ela…?

    Tentou puxar mais, buscar qualquer detalhe. Um aniversário, uma conversa, uma manhã comum. Mas toda vez que mergulhava mais fundo, uma dor de cabeça insuportável o atingia.

    Podia ter um livro inteiro na estante, mas com as páginas mais importantes faltando, ele era inútil. Só conseguia abrir os trechos específicos: técnicas de luta e receitas culinárias.

    — Eu tinha dezesseis anos naquela época… — repetiu para si, a voz embargada. — Mas com quantos eu anos eu morri?

    Engoliu em seco.

    Permaneceu sentado ali, imóvel, por minutos que pareceram longos demais. O quarto estava mais escuro agora, os últimos raios do fim de tarde pintando o teto com laranja desbotado. O sistema ainda flutuava no canto da visão, aguardando qualquer interação. Mas Hazan não se importava.

    Porque, mais uma vez, não era a dor, nem a luta, nem o medo da morte que o corroíam por dentro. Era o vazio. O buraco em forma de passado.

    E a maldita certeza de que, por mais que tentasse lembrar… existia alguém que ele já amou muito, — e podia ter perdido.

    Balançou a cabeça. Bateu as mãos contra o próprio rosto e sua expressão tomou uma forma determinada.

    Esquece isso. Foca no que você pode fazer. Se eu conseguir sobreviver… Posso me reencontrar com ela. Dar um jeito de voltar. Eu consigo.


    As pernas de Hazan tremiam no ar, sustentadas pela parede enquanto se equilibrava de cabeça para baixo, os braços trêmulos sustentando o próprio peso. O suor escorria de sua testa até os olhos, e os músculos de seu corpo já reclamavam há várias repetições. Mesmo assim, ele não parava.

    — Oitenta e nove… — murmurou, com a respiração pesada.

    A porta se abriu de repente, e Agnis surgiu com seu jaleco branco pontuado por detalhes azuis. Aurora entrou logo atrás, com uma expressão neutra e vestindo roupas simples de camponesa — uma camisa de linho clara e uma saia longa que deixava os tornozelos à mostra. Hazan sequer havia reparado nela direito na noite anterior, mas agora parecia… normal. Quase irreconhecível.

    Hazan… você se importa em me explicar por que raios está de cabeça para baixo? questionou Agnis, olhos arregalados e a voz carregada de indignação.

    — Noventa… — Hazan suspirou, antes de descer com um leve impulso e pousar de pé no chão, com uma expressão casual. — Agnis. Boa tarde. Que saudade da sua voz irritada.

    O curandeiro fechou os olhos e inspirou profundamente pelo nariz, posicionando dois dedos entre as sobrancelhas, invocando os céus para pedir paciência.

    — Você dormiu bastante, espero que tenha descansado… — Ele trincou os dentes, mantendo o tom calmo forçado, e então suspirou. — Tire a camisa.

    — Ei, calma aí. Eu respeito sua escolha, mas não corto pra esse lado, viu? — disse Hazan, com uma careta teatral.

    — Tira. A. Camisa. — Agnis rebateu pausadamente, e um músculo pulsou em seu maxilar.

    Hazan estalou a língua, mas obedeceu. Ao puxar a camisa, revelou um corpo repleto de faixas mal enfaixadas, hematomas espalhados, além de um ferimento de garras no ombro e outro nas costelas, ambos cobertos de forma improvisada. Randolf não era exatamente um exímio especialista, mas deu o seu melhor cuidando de cada ferimento.

    — Senta na cama. Agora — disse Agnis, o tom ainda educado, mas com a voz vibrando em um fio de tensão.

    — Você tem algum fetiche em me ver machucado? — indagou Hazan, com um sorriso debochado. 

    — E você tem algum fetiche em se machucar? — Agnis rebateu.

    O lutador estalou a língua pela segunda vez.

    Agnis ignorou. Com um toque experiente, pressionou o joelho de Hazan. O inchaço era evidente, avermelhado, quase pulsante. Hazan fez uma careta discreta, mas não reclamou.

    — Por que não foi ao meu escritório quando eu pedi?

    — Esqueci — disse Hazan, dando de ombros.

    Agnis apertou o joelho com um pouco mais de força, e o jovem soltou um resmungo baixo.

    — Precisa mesmo apertar assim?

    Aurora, encostada ao batente da porta, observava a situação com uma expressão difícil de decifrar. Hazan tinha certeza que havia um sorriso ali, uma expressão de deboche, que estava suavemente disfarçada com a face fria da polariana.

    Ele lançou um olhar de canto para ela, arqueando uma sobrancelha.

    — Você acha engraçado?

    O sorriso dela desapareceu em um instante. Assumiu sua expressão habitual, levemente cínica, ignorando a pergunta. Tinha um olhar inocente, como se nem estivesse prestando atenção.

    — Maldita cara pálida… — resmungou Hazan, virando o rosto.

    Enquanto isso, os dedos de Agnis começaram a brilhar levemente em um azul suave. Ele deslizou as mãos ao longo do joelho, depois para o ombro, os braços, as costelas. Falava sozinho, realizando um diagnóstico detalhado do rapaz:

    — Ombro dilacerado… flanco com laceração profunda, possível comprometimento dos tendões da escápula… múltiplas microfraturas nas costelas… e seus canais vitais estão… — ele parou, fitando o rosto de seu paciente rebelde.

    Ele mantinha uma expressão completamente neutra.

    Agnis enfim suspirou e resumiu:

    — Você está todo quebrado. Como da última vez. Aliás, talvez pior.

    — Ah, então nada novo — respondeu com indiferença.

    — Seus canais vitais estão danificados. Isso vai atrasar sua recuperação — disse Agnis, recuando um pouco para olhar o joelho mais atentamente. — E… esse joelho… — fez uma pausa dramática, estudando o inchaço. — Você tomou alguma poção depois de se machucar?

    — Foi durante a missão com Aurora e outros desbravadores. Precisava me manter de pé.

    Agnis assentiu com pesar.

    — Poções de grau mais alto são eficazes, mas perigosas em casos como o seu — disse Agnis, examinando o joelho com o cenho franzido. Os dedos pressionavam a pele com cuidado, quase como se procurassem algo escondido sob a carne. — Elas aceleram a regeneração do tecido mole rápido demais… se houver fraturas ou estilhaços internos, o corpo cicatriza tudo do jeito errado.

    Ele soltou um leve suspiro, os olhos ainda focados no ponto de inchaço.

    — Pelo que senti aqui… seu joelho está cheio de microfragmentos. Como vidro quebrado dentro de um saco de carne. Se não cuidarmos direito, andar pode virar um problema bem sério.

    Então ergueu o olhar, firme.

    — Só poderei dar um diagnóstico completo depois de pelo menos uma semana de repouso.

    Hazan apenas assentiu com um “hm” entediado.

    — Você devia se preocupar mais — advertiu o curandeiro. — Da última vez em que estudei seus sintomas, descobri que seus canais vitais têm uma característica curiosa: eles produzem vitalidade com uma eficiência absurda. 

    Hazan ergueu uma sobrancelha.

    — Isso é bom, não?

    — Só se você for um lunático, o que… bom, pode ser. — Agnis massageou a têmpora de novo. — O problema é que sua vitalidade transborda. Aposto que esteve com problemas para dormir.

    Hazan disfarçou coçando a bochecha e assobiando. — Claro que não, minhas noites de sono são perfeitas.

    Agnis balançou a cabeça e continuou.

    — Sua vitalidade se esvaiu tentando remendar todos esses absurdos ferimentos, e isso desgasta seus canais vitais. Aposto que suas veias estão doloridas agora. Se não aprender a estabilizar isso… suas veias podem literalmente explodir num espetáculo de vermelho vibrante.

    Hazan ergueu os ombros num gesto despreocupado.

    — Parece ruim.

    Agnis apenas se levantou. Respirou fundo, ajeitou as dobras do jaleco, encarou Hazan e declarou:

    — Eu volto na semana que vem, e vai ser a última vez que te trato de graça. Na verdade, espero nunca receber qualquer moeda sua para lhe tratar novamente.

    Hazan inclinou a cabeça com um sorriso travesso.

    — Se a paixão for muito forte, você acaba voltando. Vai por mim.

    Agnis abriu a porta sem responder e saiu, batendo-a com força.

    Hazan olhou para Aurora, que retribuiu o olhar com uma inclinação pequena da cabeça.

    — Sabe, ele é um cara legal. Eu gosto dele — disse, mais pra si mesmo do que pra ela.

    Aurora não respondeu.

    Deitou-se devagar, sentindo os hematomas reclamarem. A dor era constante, mas já não parecia tão importante. Seu olhar voltou a vagar, perdido, como antes. Rafaela. A tia que mal conhecia, mas cuja lembrança fazia o peito apertar. As vozes no sonho. A sensação de saber fazer algo com perfeição.

    Tudo ainda estava confuso. Mas sentia que, pouco a pouco, estava se aproximando das respostas. Mesmo que seu corpo quebrasse mil vezes no processo.

    — Mais uma semana, hein? — murmurou, fechando os olhos por um instante. — Que maravilha.

    — O que acha que está fazendo? — Aurora perguntou, encarando-o com os braços cruzados.

    — Descansando…?

    — Temos prioridades maiores agora.

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