Índice de Capítulo

    Lufadas de vento sopravam pelas janelas do quarto da pousada. Hazan, sentado no chão de madeira, puxava os cadarços das botas com um suspiro entediado. Aurora, por sua vez, já estava pronta desde que havia entrado no quarto junto com Agnis.

    Seus olhos fixos em um caderno de anotações, ela rabiscava palavras e possíveis teorias com um lápis.

    — Você pode parar de enrolar? — ela perguntou, sem tirar os olhos do papel.

    — Eu não tô enrolando. Só tô… me despedindo do conforto — respondeu, dando um leve tapinha no chão antes de se levantar.

    Ambos sabiam que o dia não seria agradável.

    Testar os limites da maldição se tornou prioridade após as consequências do último episódio.

    Precisavam entender como funcionava, em que ponto se agravava e, com sorte, descobrir alguma brecha. O maior medo não era a dor, mas a falta de informações.

    Nenhum dos dois mencionou o que realmente os motivava: a lembrança ainda fresca da noite anterior, em que só conseguiram dormir porque deram as mãos. 

    Literalmente. 

    A maldição não os deixava pregar o olho enquanto não tivessem contato físico. Foi embaraçoso. Silencioso. Longo. E extremamente desconfortável para ambos, emocionalmente, pelo menos.

    Começaram com o básico.

    O primeiro teste era simples: manterem-se em cômodos diferentes, mas dentro da mesma estrutura. Aurora ficou no quarto da pousada, sentada com o caderno no colo, enquanto Hazan desceu as escadas.

    — Me avisa se começar a sentir qualquer coisa — disse ela pela porta entreaberta.

    — Eu tô com fome.

    Ela rolou os olhos e balançou a cabeça em desprezo.

    — Se afasta mais. Vai até a rua e conta um minuto.

    Hazan cruzou os braços e foi até a calçada em frente à pousada. O sol da tarde desenhava sombras longas das bandeirinhas do Festival do Despertar. Pessoas passavam com cestas de frutas, e crianças corriam com fitas amarradas nos braços. O jovem ficou ali parado, com a fome piorando o seu humor. De vez em quando, lançava olhares mal-humorados aos transeuntes, que desviavam rapidamente, assustados com o sujeito de cara de delinquente e expressão de poucos amigos.

    Após quarenta segundos, algo mudou. A sensação era de uma mão invisível pressionando seu diafragma. Não chegava a doer, mas era um incômodo físico, insistente — como se alguém estivesse tentando impedi-lo de respirar fundo. Franziu a testa. Respirou mais curto. A sensação crescia.

    Voltou para o quarto com o passo acelerado, sentindo uma leve ardência atrás dos olhos.

    — Isso não acontecia antes. — Girou os ombros, inquieto, claramente desconfortável. — Você não sente nada?

    — Sinto dificuldade em respirar — respondeu Aurora, anotando no caderno. Seu rosto denunciava um incômodo crescente.

    — Precisamos tentar algo mais ousado. — disse Hazan, com um brilho determinado nos olhos.

    O segundo teste foi direto: dois quilômetros de separação. Hazan caminharia até a Praça Central, enquanto Aurora permaneceria nos arredores da pousada.

    Ele foi. A distância era relativamente pequena para alguém treinado, mas a maldição não parecia entender de medidas exatas. Entendia de punição.

    Menos de dois minutos depois, caiu de joelhos no meio da praça. A visão escurecia nas bordas, o ar simplesmente não vinha. Engolir era difícil. Respirar, impossível. Cada batida do coração soava abafada e distante.

    Do outro lado, a polariana sentia o corpo falhar. As pernas amoleciam, o suor frio descia pelas costas, e os dedos formigavam. Tentou se levantar. Tentou manter o controle. Mas a maldição não queria equilíbrio. Queria obediência.

    Tombando para frente, forçou os pés a se moverem. Um passo, depois outro. Saiu da pousada cambaleante. As ruas giravam ao redor, as vozes das pessoas viravam ecos indistintos. O único foco era ele.

    O lutador também se arrastava na direção dela, joelhos raspando o chão de pedra, mãos buscando apoio nos paralelepípedos. A camisa grudava no corpo, e as veias do pescoço pareciam cordas tensionadas. Algumas pessoas começaram a cochichar, achando que o rapaz estava passando mal depois de algum exercício exagerado.

    Quando os dedos se tocaram, o efeito foi imediato, e aliviador, apesar de humilhante.

    A dor, a asfixia, o torpor… tudo desapareceu como se nunca tivesse existido. O alívio os fez ofegar, quase gemer. E isso só piorou a impressão pública.

    — Isso é… uma prisão de proximidade — Aurora ofegou, o rosto úmido de suor. — Quanto maior a distância, mais rápido e agressivo o castigo.

    — E se for mais que isso? — Hazan perguntou, ainda ofegante. — Talvez seja um tipo de coleira mágica… sabe, como os sinos de gado. Se a gente se afasta demais, o “dono” consegue localizar.

    Aurora anotou, mas sua mão tremia.

    — Se isso trazer o maldito do William até nós, que seja.

    A cena, vista de fora, era um espetáculo digno de um romance dos livros de fantasia.

    Um rapaz arrastando-se desesperado em direção a uma moça exausta, os dois se tocando como se o mundo dependesse disso — e depois arfando juntos, suados, gemendo de alívio.

    Bastou isso para alguns moradores trocarem olhares sugestivos, taparem o sorriso com a mão e murmurarem algo sobre “ah, o amor jovem…”. Já tinha até senhora dizendo que era bonito ver um casal tão apaixonado, enfrentando dificuldades juntos.

    Se ao menos soubessem que, na verdade, aquilo era só uma maldição terrivelmente incômoda e absolutamente antirromântica.

    Ao perceberem a comoção, a dupla trocou olhares de nojo e se afastaram.

    O teste final foi o mais arriscado.

    Com os testes iniciais finalizados, decidiram seguir para os arredores da cidade. Aurora guiou o caminho até uma floresta pouco frequentada, conhecida apenas por viajantes antigos ou caçadores locais. Um bom lugar para esconder segredos.

    — Isso aqui é ótimo — comentou Hazan, girando o corpo lentamente e observando as árvores altas ao redor. — Silencioso, sinistro, tem até cheiro de morte. Seu tipo de lugar favorito?

    — É isolado. E seguro o suficiente para não sermos vistos juntos em condição de vulnerabilidade. — Aurora se ajoelhou junto a uma pedra coberta de musgo e abriu seu caderno. — A última reação foi mais agressiva do que esperávamos. Ela com certeza piorou desde que fomos atingidos por uma conjuração.

    — A boa notícia é que, com esse ritmo, a gente morre antes de descobrir o que ela faz no nível máximo — resmungou Hazan, jogando-se de costas na grama. — Qual é o próximo passo? Pular de um penhasco pra ver se ela nos salva?

    Ela não riu, mas fez uma pausa antes de falar. Havia algo em Hazan que lhe arrancava respostas mais emotivas do que gostaria.

    — Vamos tentar com uma conjuração. Algo simples, por enquanto.

    Aurora se ajoelhou novamente e estendeu a palma. Invocou um círculo azulado, onde uma esfera de gelo surgiu. Instantaneamente, sentiram o peitoral formigar.

    — Vou aumentar mais um pouco — ela avisou, com um olhar direto. 

    A jovem concentrou-se, e a luz em sua mão ficou maior. A esfera cresceu, alcançando um brilho mais forte — e foi aí que tudo desabou.

    Uma onda invisível os atingiu com força. Hazan ainda conseguia se manter de pé, mas Aurora foi completamente sobrepujada. As correntes queimavam na garganta.

    — Desliga! — Hazan gritou, quase como se fosse uma ordem.

    Aurora imediatamente cessou a conjuração, e a dor começou a desaparecer. O calor, a pressão, os tremores… tudo se esvaiu aos poucos.

    Ficaram deitados por vários minutos. Apenas a respiração deles preenchia a clareira.

    Quando se sentaram, ofegantes e cansados, Aurora olhou para Hazan. O cabelo dele estava grudado na testa, os olhos semicerrados pela dor recente.

    — Mana intensifica os efeitos… muito mais do que a distância — murmurou ela, com a voz rouca. — Isso é… perigoso.

    — E intenso — completou o rapaz, sem fôlego.

    Aurora não respondeu de imediato. Parecia pensar. Ou talvez apenas recuperar o controle sobre o próprio corpo.

    Ele está suportando mais do que eu. Não é normal. Aquela vez com a conjuração de Mirielle provou que tem alguma resistência absurda, ou algo que não entendo. Se eu insistisse, ele poderia até admitir. Mas isso criaria outro problema. Melhor não.

    — Tem mais uma coisa — comentou, olhando para o caderno. — Quanto mais tempo passamos juntos, menos agressiva a maldição se torna. Ainda sentimos os efeitos se nos afastamos, mas… leva mais tempo. Como se ela estivesse, de certa forma… se ajustando.

    — Ou nos aceitando — comentou Hazan, sem sarcasmo pela primeira vez.

    Aurora franziu o cenho.

    — Você fala isso como se a maldição tivesse consciência.

    — E se tiver? Isso se chama “Contrato de Algêros”, não é? Um deus. Vai saber o que tem por trás disso.

    Aurora hesitou. Por mais absurda que fosse a sugestão, algo naquela ideia mexeu com ela. Uma maldição viva… que observava e julgava? Era assim com todos os escravos?

    — Mesmo se for… — disse, por fim, com a voz firme — ainda é uma prisão. E nós estamos presos nela.

    Hazan se levantou devagar, limpando a terra da roupa e lançando um olhar para as árvores ao redor.

    — Qual é, nós já vimos uma prisão pior. Pelo menos essa vem com uma vista bonita.

    A piada pareceu funcionar. Aurora assentiu, sorrindo com os olhos por um instante tão breve que sequer notou. Porém, uma escuridão estranha tomou conta de sua expressão ao relembrar do passado. Sua face escureceu.

    — Vamos voltar. Já descobrimos o que precisávamos.


    Nos primeiros dias de descanso, Hazan manteve as expectativas baixas e os pés — ou pelo menos um deles — no chão. A perna esquerda ainda reclamava feito um velho ranzinza, e bastava tentar apoiar todo o peso nela pra parecer que o joelho ia desmontar igual armário mal montado.

    Frustração? Claro. Mas já era visita velha, dessas que nem batem mais na porta. Cada movimento exigia mais controle, mais foco. Nada fluía como antes, mas ele se obrigou a encontrar um novo ritmo. Deu um jeito. Sempre dava. Era teimoso demais pra aceitar ficar parado.

    Conseguiu também um bico como cozinheiro na pousada do Randolf, o que começou como “só até melhorar a perna” e virou rotina. Ajudava na produção de pães, sopas e guisados — e foi aí que percebeu que tinha algo estranho rolando com o paladar.

    Estava mais aguçado, e mais exigente. Sentia o sabor dos temperos antes mesmo da colher tocar a boca. Identificava quando o sal estava acima do ideal. Corrigia receitas, sugeria mudanças. Alice torcia o nariz e fazia cara de quem queria jogar a colher na cabeça dele, mas os clientes elogiavam. No fim, vitória moral.

    Por outro lado, essa maldita sensibilidade também tinha um preço. Comia, mastigava, fazia cara de “hmm”… e nada. Quase tudo parecia diferente.

    Sem poder correr, adotou caminhadas. Era isso ou ficar maluco. No início, mancava feito zumbi. O joelho rangia, fazendo barulhos de uma dobradiça velha. Mas, como sempre, insistiu.

    No terceiro dia, já andava sem arrastar os pés. No quarto, tentou correr. Só um pouquinho. Foi dolorido? Foi. Mas possível. Descobriu um truque: descansava a perna machucada durante a passada direita. Um segundo de respiro. O suficiente.

    Repetiu nos dias seguintes. Cada passo era uma pequena conquista com gosto de vingança contra o próprio corpo. No quinto dia, correu o trajeto inteiro sem sequer aquecer. Suado, arfando, o joelho reclamando… mas ele aguentou. E quando terminou, abriu um sorriso torto, daqueles de quem sabe que venceu, mesmo que por pouco.

    Só conseguiu tudo isso por causa de Aurora, embora jamais admitisse em voz alta. Insistiu por dias pra que ela o acompanhasse em seus treinos, afinal, não podiam ficar muito tempo separados.

    Aurora, sendo Aurora, não correu com ele. Disse que não fazia sentido gastar energia desnecessariamente. Apesar disso, topou uma alternativa: ele passava a rota com antecedência, e ela aparecia por ali em horários diferentes, mantendo uma distância razoável.

    Ele corria. Ela observava. Nenhum dos dois trocavam qualquer palavra.

    No fim da quinta corrida, já com a camisa grudada no corpo e a respiração ofegante, Hazan se jogou num banco de pedra próximo à trilha. Estava satisfeito — e exausto. Foi aí que Aurora se aproximou, do jeito dela: sem alarde, sem aviso, como se estivesse apenas passando por acaso. Estendeu uma pequena bolsinha de couro.

    — Aqui — disse, colocando as moedas no colo dele. — Metade do adiantamento.

    Hazan ergueu uma sobrancelha, confuso.

    — Adiantamento de quê?

    — Nosso contrato com a Guilda Pena Azul. São 300 moedas de ouro na primeira semana. Você fica com 150.

    Ele olhou a bolsinha. Depois olhou pra ela.

    — Isso aqui… é dinheiro de verdade?

    — Se não acredita, pode devolver. — Ela estendeu a mão para ele, o qual respondeu com uma careta. — Ganhamos 1200 moedas de ouro ao todo, mas vão nos pagar em parcelas semanais. Só não gaste tudo em comida.

    — Eu gasto meu dinheiro como eu quiser — rebateu, com as sobrancelhas franzidas. — Eu eu já sei com o que vou gastar.

    Aurora balançou a cabeça, mas não respondeu. Pela superfície, imaginava que o dinheiro seria gasto com besteira. E talvez, só talvez… tivesse vontade de ver o que ele faria com tantas moedas.

    Enquanto isso, as crianças pintavam as calçadas para o festival, e os velhos comerciantes preparavam suas barracas enormes, prontos para exibir os produtos mais imprevisíveis.

    Apesar disso, só conseguia pensar numa coisa:

    Estava voltando ao seu ritmo habitual. Aos trancos, tropeços e resmungos… mas estava. Logo poderia voltar a treinar suas artes marciais.

    A partir dali, começou a completar várias missões pequenas.

    Coletar ervas em encostas rochosas, encontrar objetos perdidos em bosques, cortar lenha para anciãos. Tarefas que a maioria dos desbravadores ignorava por pagarem pouco — ou por parecerem abaixo do prestígio que buscavam.

    Na Pena Azul, qualquer cidadão podia registrar uma missão, e essas, geralmente, valiam menos que as emitidas pela própria guilda. Mas Hazan não se importava com o valor. Para ele, era um jeito de se manter em movimento.

    Algumas missões eram feitas com Aurora, o que só tornava mais visível o abismo entre os dois. Hazan era barulhento, improvisava, tomava caminhos arriscados e falava com qualquer um.

    Um mercador, um lenhador, um cão curioso — todos recebiam sua atenção. Aurora, por outro lado, era metódica, silenciosa e direta. Preferia analisar pegadas do que perguntar por informações. Raramente usava palavras. Quando falava, era com exatidão cirúrgica.

    Durante uma missão para resgatar um gato de uma menininha que havia sumido numa floresta próxima, Hazan se embrenhou pelos arbustos imitando miados, enquanto Aurora escalava silenciosamente uma árvore para ter uma visão superior.

    Ele voltou coberto de folhas e arranhões, com o gato nos braços e um sorriso vitorioso. Aurora apenas assentiu, sem nenhum elogio.

    — Hehe, eu disse que encontraria o bichano — proclamou Hazan, todo orgulhoso, enquanto limpava com a manga o sangue escorrendo de um arranhão no antebraço.

    O gato, um amontoado fofo de pelo cinza com olhos de puro julgamento, parecia calmo. Parecia.

    Num segundo, estava ronronando. No outro, deu um miado agudo de traição e pulou no rosto de Hazan como se fosse um ninja felino treinado para assassinato.

    — AAAARGH, MEU OLHO! — berrou, cambaleando com o gato grudado na cara.

    Tentou puxar o bicho, mas só conseguiu girar em círculos e tropeçar numa raíz exposta no chão, caindo de costas com um baque seco. O gato saltou e desapareceu pelos galhos como se nada tivesse acontecido, deixando Hazan de braços abertos no chão.

    Aurora, que até então observava tudo com a expressão de sempre, franziu as sobrancelhas… e soltou uma risadinha. Baixa, discreta, quase imperceptível.

    Hazan ergueu a cabeça, ainda estirado no chão.

    — Ei… Por que você só ri quando eu me ferro?

    — É impressão sua.

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