Capítulo 36 - A Primeira Revolta
Aspen caminhava pela feira com passos curtos, desviando dos montes de cascas apodrecidas e restos de frutas jogados pelo chão. O aroma pútrido de cebola velha misturado com peixe seco era quase sufocante, mas aguentava, como fazia todos os fins de tarde.
O saco de pano, ainda vazio, pendia frouxo em sua mão esquerda. A outra, fechada em punho, segurava com força algumas poucas moedas de cobre.
A forma como os olhares mudavam assim que ele se aproximava era ainda pior que o cheiro.
Um vendedor franzino, sorriso relaxado, com olhos estreitos e barba suja, estava organizando suas batatas na mesa.
Aspen se aproximou sem dizer uma palavra. O homem o encarou, e o sorriso que trazia morreu nos lábios. Aquelas orelhas… compridas demais para um humano, curtas demais para um elfo.
Incômodas o bastante para causar silêncio.
— 4 cobres por unidade — disse o homem, voltando a organizar os tubérculos.
Aspen hesitou.
— Eu vi que estava vendendo por um cobre antes…
— Então vai reclamar, bastardo? — disse o homem sem encará-lo. — Vai comprar ou vai atrapalhar a freguesia?
Aspen se afastou, sem resposta.
Tentou outra barraca, depois mais uma. Sempre a mesma coisa. Os preços aumentavam quando ele se aproximava. Ou pior: fingiam que não o viam. Alguns cochichavam. Outros apenas franziram o nariz, como se sua presença contaminasse o ar.
Bastardo. Meio-sangue. Aberração.
Palavras que não eram ditas em voz alta, mas que lia em cada olhar.
Foi então que ouviu uma voz rouca, familiar, chamando por seu nome:
— Aspenzinho! Venha cá, rapaz.
Era o velho Goran, dono de uma das últimas bancas do fim da rua. Um homem de estatura baixa, ombros curvados e um sorriso torto. Com cabelos grisalhos e a barba por fazer, tinha o rosto queimado do sol e uma expressão gentil.
— Tentando economizar de novo? — disse o velho, rindo. — Vai acabar morrendo de fome se continuar desse jeito.
Aspen se aproximou, sentindo o coração aliviar só um pouco. A banca de Goran era simples, com legumes meio murchos empilhados em caixas velhas, mas tudo parecia mais colorido ali.
— A maioria nem quer me vender — confessou o jovem.
— Ah, que se danem! Eles não sabem o que dizem. Se tivessem visto o que eu vi… um elfo me salvando no cerco de Jarvak, lutando com duas espadas contra um pelotão inteiro… ah, aquilo foi coisa de outro mundo!
— O senhor já me contou isso várias vezes…
— E cada vez vale por mais uma! — riu o velho. — E você se parece com ele. Tem os mesmos olhos ferozes!
Aspen abaixou a cabeça, meio sem saber o que dizer. Goran começou a encher o saco com cenouras, algumas batatas e dois tomates que, embora amassados, ainda estavam firmes.
Mas, conforme o velho o atendia, os olhares voltaram. Vendedores próximos cochichavam. Alguns clientes se afastavam da barraca como se Goran tivesse uma doença contagiosa. Um deles cuspiu no chão perto dali. Uma mulher bufou alto e balançou a cabeça.
Aspen viu tudo.
— Eu… me desculpa — murmurou. — Eu posso comprar em outro lugar, não precisa…
— Besteira — rebateu o velho, enfiando mais uma cebola no saco. — Se alguém aqui devia se envergonhar, não é você.
Aspen tirou as moedas do bolso, colocando-as sobre o balcão improvisado.
— Sete cobres, não é?
— Sete? Eu faço por cinco — O velho pegou apenas cinco moedas e empurrou o saco para ele. — E leva isso com orgulho, ouviu? Não deixa essas línguas sujas te afetarem.
Aspen sorriu, sem saber como retribuir a gentileza. Ia se despedir quando uma voz zombeteira ecoou logo atrás dele:
— Mas que cena tocante.
O braço de alguém envolveu seus ombros de forma forçada, apertando-o com fingida camaradagem. Aspen congelou.
— Meu grande amigo Aspenzinho — disse Emerik, com seu sorriso de predador. O capanga tinha três ou quatro anos a mais, cabelo mal cortado, colete de couro aberto e olhos sempre prontos para o próximo alvo mais fraco. — Visitando o titio Goran? Ele ainda conta aquela história mentirosa do elfo salvador?
O velho Goran, atrás da barraca, franziu o cenho. Emerik largou Aspen e se voltou para os legumes. Pegou um punhado de tomates, depois algumas batatas, jogando tudo dentro de um saco qualquer.
— Isso aqui tá com uma cara boa. Vou levar.
— Emerik… — começou o velho. — Isso… isso custa…
— Custa nada, titio — cortou Emerik, encarando-o com intensidade. — Você não vai querer discutir comigo por causa de meia dúzia de vegetais, vai?
Goran hesitou. Os olhos de Aspen se moviam entre os dois, sem saber o que fazer.
— Tá tudo bem — disse o velho, levantando as mãos. — Pode levar.
Emerik sorriu.
— Assim que se fala. — Virou-se para Aspen e deu um tapinha em sua bochecha. — Vai pra casa, orelhudo. Antes que piore pra você.
Aspen respirou fundo. Pela primeira vez em muito tempo, ele não era a presa. Emerik não o havia atacado. Ele poderia ir embora, voltar para o orfanato, trazer muitos legumes para sua família. Estava tudo bem. Estava a salvo.
Mas então olhou para Goran.
O velho segurava o próprio braço com uma expressão tensa. Não parecia temer por si, parecia mais preocupado com Aspen. Seus olhos diziam: “Vai embora, garoto. Por favor.”
Deu dois passos para trás.
Depois mais dois.
E parou.
Sei que não sou o alvo dessa vez, mas… Por que estou sentindo isso?
Deslizou os dedos pela orelha, buscando aliviar a estranha sensação que pesava dentro do peito. Ele sempre odiou aquelas orelhas.
Não longas o bastante pra serem elfas, nem curtas o bastante pra escaparem dos olhares.
Carregava nelas o pecado de um povo que nunca conheceu, um povo que escravizou, humilhou, feriu.
Mas ele? Só conheceu o abandono.
As cicatrizes no rosto vieram com o tempo. A da orelha… ele mesmo fez.
Achou que sangrando poderia se passar por humano. Mas sangue nenhum apaga o ódio de quem escolheu te odiar.
Quantas vezes mais precisaria pagar por crimes que nunca cometeu? Quantas?
O saco de legumes pesava em sua mão.
Uma batata rolou para fora e caiu no chão.
Ele a pegou, sentindo o calor subir pelo pescoço, pelo rosto. Os gritos velados da feira ainda estavam lá, ecoando em sua mente. O nojo, o desprezo, a covardia.
Virou de costas, olhando na direção de Emerik.
Correu e jogou a batata com toda sua força.
Ela voou girando, acertando Emerik na têmpora com um pof abafado.
O jovem cambaleou para o lado, confuso, levando a mão ao rosto.
— O quê…?
E então viu Aspen, ofegante, a poucos metros de distância.
— Seu merdinha…!
O primeiro soco explodiu contra seu nariz. Aspen caiu de costas, e as estrelas dançaram no céu.
Envolveu a cabeça com os braços, e os chutes vieram. Atingiram as costelas, as coxas, e os braços que tentavam proteger a cabeça.
— Filho de meretriz! — gritou o agressor com um sorriso. — Órfão miserável, você sequer sabe quem são seus pais, hehe… mas eu vou te contar! Aposto que tua mãe foi só uma vagabunda élfica que achou que podia brincar de ser superior e acabou estuprada numa rua qualquer… Aí largou você num orfanato falido!
Aspen não conseguia respirar. O mundo girava. Ouviu vozes, mas não sabia se eram reais. Sentiu o gosto de sangue.
Goran tentou intervir, segurando o braço de Emerik.
— Chega! Você vai matá-lo!
Mas Emerik o empurrou com violência. O velho caiu, batendo o ombro contra as caixas. Legumes rolaram pelo chão.
Ao redor, ninguém ajudava. Ninguém dizia nada. Algumas pessoas apenas olhavam, como se assistissem a uma peça conhecida. Outras riam baixo.
Mais um bastardo apanhando. Mais um velho idiota defendendo aberrações.
Aspen estava encolhido no chão quando ouviu um rugido.
Não de animal.
De fúria.
— Sai de cima do meu irmão!
O impacto foi brutal. Lunna atingiu Emerik com os dois pés no peito. O rapaz rolou pelo chão sujo.
Ela se pôs à frente do irmão, os punhos cerrados. Os olhos esmeralda brilhavam com raiva pura. Seus chifres verdes reluziam sob o entardecer.
— Encosta nele de novo e eu acabo com você!
Emerik cuspiu no chão e se levantou com dificuldade, os olhos cheios de veneno.
— Mas olha só… a escamosa veio salvar o meio-elfo. Ficam por aí brincando de ser família, vocês nem têm o mesmo sangue… Aposto que os dois foram largados pelo mesmo motivo!
— Cala a boca! — rosnou Lunna.
Quando Emerick estava pronto para revidar, passos metálicos ecoaram pelo chão. O agressor ergueu as sobrancelhas, surpreso com a presença de soldados naquele lugar.
— Isso não vai ficar assim, seus órfãos malditos! — ameaçou ele com o dedo indicador, antes de desaparecer na multidão.
A palavra bateu fundo, e os olhos de Lunna tremeram. Ele foi até seu irmão, limpando o sangue do nariz com o polegar.
— Aquele babaca pegou pesado…
— Como se isso fosse novidade — retrucou o meio-elfo, afastando a mão de Lunna e encarando Goran com preocupação.
Goran se levantava com dificuldade, o ombro ferido. Aspen e Lunna o ajudaram a recolher os legumes que ainda podiam ser salvos. Nenhum dos três dizia nada.
Naquele dia, a feira viu o que fingia não ver.
E ignorou, como sempre faziam.
O orfanato já estava com os lampiões acesos quando chegaram. Cassandra varria a entrada, usando mesmo coque habitual que prendia seus cachos avermelhados. Ela parou ao vê-los se aproximando.
Seus olhos treinados foram direto para o rosto de Aspen, onde o sangue seco deixava marcas escuras abaixo do nariz.
— O que aconteceu?
Lunna foi mais rápida:
— Eu… meio que exagerei numa brincadeira. Fui buscar ele na feira e… sabe como é, a gente se empolgou.
Cassandra franziu as sobrancelhas. Olhou para Lunna, depois para Aspen.
— Lunna — disse, com calma. — Você é mais forte que seu irmão. Sabe disso. Precisa medir sua força. Não é brincadeira quando alguém sai machucado.
Lunna abaixou a cabeça.
— Sim, senhora.
— E você, Aspen — a mulher virou-se para ele, a voz tão firme quanto gentil —, não procure esse tipo de brincadeira. Você sabe que sua irmã é mais forte que você, e não deve provocá-la enquanto não puder se defender.
Aspen apenas assentiu, cabisbaixo.
— Vá se lavar. O sangue está começando a secar — disse Cassandra.
Ele obedeceu sem questionar. Lunna virou-se para seguir, mas a mulher a deteve com um gesto.
— Pode deixar os legumes na cozinha, querida?
— Mas… alguns deles caíram no chão.
— O que sobrou ainda pode ser aproveitado.
Quando Lunna saiu, Cassandra ficou sozinha por um momento na varanda. O céu agora era roxo e azul, as primeiras estrelas piscando timidamente. Ela olhou para a porta por onde os dois tinham entrado e soltou um longo suspiro.
— Um dia vocês vão conseguir superar todo esse preconceito… — murmurou. — E quando esse dia chegar… espero que ainda esteja aqui para ver.
Lunna, no caminho até a cozinha, segurava os legumes que conseguiu recuperar. Alguns estavam com terra, outros amassados. Mas o que mais lhe doía era a raiva presa no peito. Raiva por não ter chegado antes. Por não ser mais forte. Por não poder esmagar o idiota que feriu seu irmão.
Ela largou os legumes sobre a bancada e passou a mão pelo rosto, os olhos ardendo.
Aspen, no quarto, olhava o próprio reflexo no espelho rachado. O sangue já fora lavado, mas o vermelho ao redor do nariz ainda denunciava o golpe. Tocou de leve na região e fez uma careta.
Mais do que a dor física, era a outra que doía: as palavras.
“Filho de meretriz.”
“Órfão miserável.”
Ele se sentou na cama, os olhos perdidos no vazio. Lunna entrou no quarto poucos minutos depois. Sentou-se ao lado dele. Não disse nada.
Ficaram em silêncio por longos minutos, até ela começar:
— Por que você fez isso? Podia ter se machucado sabia? Esses caras mexem com a gente desde sempre, quem sabe o que eles seriam capazes de faze-
— Eu sei — murmurou Aspen, interrompendo-a. — Mas eu não quero mais ficar parado — disse ele, franzindo as sobrancelhas numa expressão indignada. — Toda vez que isso acontece… toda vez que me encolho, que fico quieto… eu fico com raiva. Não só dos outros. De mim.
Lunna o olhou de lado, surpresa com o tom da voz dele.
Ele respirou fundo. A voz saiu quase trêmula:
— Eu tinha medo de tentar. Medo de me machucar. Medo de parecer ridículo. Medo de que… mesmo tentando, eu continuasse fraco.
Lunna escutava sem interromper, as palavras dele caindo como gotas pesadas em um lago sereno.
— Eu já nasci fraco. Bastardo. Meio-elfo. Nem mesmo um elfo completo… — A voz fraquejou, mas logo ele firmou o tom. — E sempre fui covarde.
Ele fechou os olhos, e sua respiração se aprofundou, como se vasculhasse memórias enterradas.
A garganta apertou. A cena ainda estava vívida em sua mente — o medo sufocando o peito, o frio no estômago, a vergonha de ser visto como fraco de novo. E então, a voz dele.
— “Só ouço desculpas” — repetiu, quase num sussurro. — “Alguém preguiçoso, que não quer se esforçar. Está se lamentando porque sua vida é mais difícil que a de outras pessoas, e isso te conforta, pois você tem justificativas pra não tentar.”
As palavras ainda latejavam em sua mente como agulhas. Na hora, ele odiou Hazan por aquilo. Mas hoje… ele entendia. E doía justamente porque era verdade.
— Eu não quero mais desculpas, Lunna. — Os olhos azuis se voltaram para a irmã, firmes pela primeira vez. — Eu vou treinar. Nem que eu desmaie tentando. Nem que me chamem de idiota. Eu vou ficar mais forte.
Lunna arregalou os olhos, surpresa. O silêncio se quebrou com um pequeno sorriso malicioso escapando do canto da boca.
— Você? Treinar? Irmão… você chora quando pisa numa pedra com o pé descalço.
— Lunna…
— E a última vez que tentou dar um soco… acertou a própria testa.
— Lunna!
Ela riu, a mão tapando a boca, a tensão se desfazendo como vapor. O sorriso era zombeteiro, mas por trás havia um brilho caloroso, um orgulho discreto, carinho em forma de piada.
— Tá bom, tá bom! — disse, erguendo as mãos para cima num sinal de rendição. — Se você quer treinar, quem sou eu pra impedir? Mas… você sabe que eu posso te proteger, né?
Aspen revirou os olhos, inflando o peito como se tentasse parecer maior.
— Eu vou ficar tão forte que vou ser eu quem vai te proteger, ouviu?
— Uuuuh, agora sim fiquei com medo — zombou, batendo palmas como se tivesse assistido a uma apresentação teatral. — “Aspen, o Protetor dos Oprimidos!”
Ele cruzou os braços, bufando.
— Vai rir agora. Depois não vem pedir ajuda quando eu derrotar três marginais sozinho com um só golpe.
— Vai ser com um golpe ou com uma batata? — disparou ela, rindo alto.
— Droga, você viu isso!?
Os dois se encararam por um instante, até que Lunna se inclinou e deu um leve empurrão no ombro dele com a cabeça.
— Mas falando sério… fico feliz que tenha dito isso.
Aspen corou um pouco, mas o sorriso que crescia era genuíno.
— Obrigado por ficar comigo.
— Sempre. — Ela piscou. — Aliás, eu vou te ajudar a treinar! Aí, da próxima vez que o Hazan aparecer, ele vai ver como você ficou forte!
— Aquele cara vai é aumentar a dificuldade do treino…
— Bom pra você, né? Assim, fica forte mais rápido!
Eles riram juntos. Pela primeira vez em muito tempo, a sombra da covardia que sempre pairava sobre Aspen parecia mais distante. Não por ter desaparecido, mas por ter sido encarada, mesmo com as pernas tremendo.
Ele ainda era fraco. Ainda tinha medo. Mas agora… estava pronto para tentar.
O som de seus próprios passos ecoava nas paredes corroídas. Hazan deslizou os dedos pela pedra coberta de limo, sentindo o frio se infiltrar pela pele. O templo estava mergulhado em névoas cinzentas que se infiltravam pelas frestas da abóbada desabada. A luz que vinha do lado de fora já mal tocava o interior — engolida pela penumbra densa e úmida.
Com Aurora e Almira seguras do lado de fora, podia focar em garantir a proteção das duas antes de permitir que elas entrassem.
Caminhou mais alguns metros entre colunas partidas, vestígios de estátuas de mármore e vitrais destruídos.
Sentia o ar pesar em torno de si, uma pressão quase palpável que trazia arrepios na espinha.
Então, veio o som.
Primeiro como um sussurro arrastado, indistinguível, um roçar de línguas mortas contra a pedra antiga.
Um …intruso…
Hazan parou. O som não vinha dos seus pensamentos. Não era imaginação. Era sussurro real. Sibilante. Múltiplo.
Filho de dois mundos… impuro…
Ele não devia estar aqui!
As vozes cresciam. Vindas de todos os lados.
O instinto gritava para que fugisse, mas o corpo não reagia. Um arrepio percorreu sua espinha quando sentiu uma presença invadir o espaço ao redor.
Subitamente, a névoa diante dele se agitou. De dentro dela, vultos começaram a emergir. Silhuetas humanoides, deformadas, translúcidas, olhos brilhando em âmbar pálido.
Seus corpos oscilavam como chamas ao vento, mas não era calor o que exalavam. Era frio. Um frio que invadia os ossos.
Eles avançaram.
Hazan recuou um passo, mas um deles atravessou o chão, surgindo atrás de si.
E então começaram a invadir.
Antes que pudesse reagir, eles estavam sobre ele. Um grito quase escapou, mas foi interrompido quando a primeira sombra penetrou seus olhos — ardência aguda.
Outro se lançou em sua boca, o hálito gelado se derramando por sua garganta. Um terceiro deslizou pelos ouvidos, e o som tornou-se ensurdecedor. Um quarto preencheu suas narinas, sufocando-o com poeira e lamentos.
Hazan caiu de joelhos, arquejando. Os dedos cavaram o chão em busca de ar. Sua mente foi inundada por visões — batalhas sangrentas, orações sussurradas por sacerdotes há muito mortos, o som de sinos destruídos, crianças chorando, templos queimando…
E então… algo pulsou.
Um som grave. Não do templo — de dentro dele.
Como um tambor batendo sob a terra. O peito de Hazan emitiu um brilho púrpuro, quase negro. Uma marca circular surgia devagar no centro do peitoral, traços em rotação oposta, parecido com um buraco negro. O pulsar fazia o chão vibrar.
As vozes foram expulsas com violência.
A marca pulsou mais uma vez. Com um som seco, como vidro quebrando, os espectros desapareceram, levados como fumaça no vento.
Hazan caiu para frente, ofegante, a mão pressionada no peito, onde ainda brilhava vagamente o símbolo.
Até que os sussurros voltaram.
O Arauto da Justiça…
O Último Prelúdio!
Quando as luas morrerem e os céus sangrarem…
Ele trará o verdadeiro equilíbrio!
A voz parecia vir de tudo ao mesmo tempo.
Do chão, das colunas, da própria mente.
Ascend foi um erro.
Um erro! Um erro! Um erro!
Do nada surgimos, e ao nada retornaremos.
Do nada surgimos, e ao nada retornaremos!
Hazan ergueu o olhar. Não havia mais figuras. Mas a névoa parecia observá-lo.
A luz da marca no peito se apagou. O silêncio reinou novamente.
O que caralhos acabou de acontecer…?
A névoa se abriu mais uma vez, revelando o interior da igreja.
Mas agora… não havia beleza ali.
Havia algo diferente.
Algo que rastejava.
Pelas paredes, pelos pilares partidos, pelas colunas enegrecidas… gosmas avermelhadas se espalhavam como raízes doentias. Olhos — dezenas, centenas deles — surgiam das massas pulsantes. Eram olhos humanos, porém negros como óleo, piscando lentamente, como se estivessem apenas… esperando.
— Que porra é isso… — sussurrou Hazan, já assumindo uma postura de luta.
As criaturas, antes imóveis, pareciam se arrastar em silêncio, devorando pedra, madeira, vidro e ferro com a mesma indiferença. Um banco antigo foi engolido pela gosma. Um altar lateral se partiu em dois quando as coisas rastejantes o atravessaram.
— Glutões — murmurou Almira. — Eles… eles não pensam. Não sentem. Só devoram. São uma praga… — disse Almira, em um tom desanimado.
— É mesmo? — respondeu Hazan, com um tom distraído. — Eles são perigosos?
— O quê? Não, eles sempre ignoram tudo ao seu redor e só focam em se alimentar. Mas limpar esse lugar vai ser trabalhoso, tem tantos deles… É melhor voltarmos com mais pessoas.
— Saquei…
Hazan franziu as sobrancelhas, olhando para trás e percebendo a presença das duas mulheres.
— Espera, desde quando estão aqui?!
— Entramos assim que as névoas sumiram — respondeu Aurora, com um olhar desconfiado. — O que você fez?
Hazan piscou os olhos algumas vezes.
— Eu… Hã…
Um olho maior que os outros virou-se. Direcionado a Hazan.
Depois outro.
Depois todos.
Um silêncio opressor caiu por um instante. E então, com um som viscoso, o primeiro se desprendeu da parede e saltou.
Hazan desviou por pouco, girando o corpo e chutando a gosma contra a parede — onde ela estalou como uma bolsa d’água cheia de dentes.
— Não era pra eles serem pacíficos!? — ele disse, já cerrando os punhos.
Aurora cerrou os punhos envolta de suas adagas, entrando em pose de combate.
— Foque na situação! Eles são lentos… mas têm números. Não os subestime.
Almira pegou uma adaga reluzente, feita de prata.
— Se me derem tempo, posso acabar com eles usando minha santidade!
Mais dois glutões se desprenderam do teto, caindo como catarro sólido. As massas pulsantes agora vibravam, como se estivessem em êxtase. Eles não queriam matar. Só devorar. Tudo. Todos.
Até não restar nada.
E pela primeira vez desde que entraram no templo, o trio sentiu que não era uma questão de vencer… era uma questão de sobreviver.
— Então tá — disse Hazan, limpando o sangue do canto da boca e fitando os olhos negros das criaturas. — Vou mostrar o sabor do meu punho pra essas gosmas nojentas!
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.