Capítulo 41 - A coragem tem gosto de medo.
Após alguns segundos de silêncio, Emerik e Bargo caíram na gargalhada.
— Olha isso… o elfinho quer brincar de herói! — zombou o esguio, os olhos brilhando com desprezo. — Deixa eu adivinhar… ainda acredita naquela baboseira do velho Goran?
Deu um passo à frente, escarrando no chão perto dos pés de Aspen.
— Caia na real, seu merdinha… a única coisa que a sua raça trouxe pra esse país foi guerra! Vocês e os malditos dragonianos!
O meio-elfo engoliu em seco, uma gota de suor escorrendo pela bochecha.
Lunna encarou seu irmão, o coração apertando o peito. Sabia o que aquelas palavras carregavam, pois ambos sempre sofreram o mesmo preconceito.
Entretanto, reconhecia que Aspen possuía cicatrizes maiores devido ao seu passado.
Ele não sabia lutar. Mas estava ali. Sem recuar, mesmo diante do ódio.
— Já que está tão ansioso pra apanhar, eu mesmo vou cuidar de você — rosnou Bargo, estalando os punhos com um sorriso largo, escancarado, sujo de prazer.
Aspen engoliu em seco.
O garoto era grande. Ombros largos, barriga rígida de quem comia bem e brigava melhor. O tipo de delinquente que usava o próprio peso como vantagem, sem se importar com técnica.
Semanas atrás, ele me derrubou com um simples empurrão… e sendo sincero, não acho que o resultado vai ser diferente…
Mas tinha decidido que, se era pra cair, cairia lutando.
Porque algo tinha mudado. Queria acreditar nisso.
Resiliência.
A palavra que definia alguém que hesitava reconhecer em voz alta. Sempre que pensava nele, uma sequência inteira de memórias surgiam, como se os olhos de sua mente assistissem de novo a cena: O lutador, ensanguentado, encarando a Indução de Aura de um Pujante Avançado, sozinho.
O lutador não era mais forte ou mais rápido que Edgard. Mas foi ele quem não cedeu. Não sabia qual golpe encerrou a luta, mas sabia o que a sustentou: a decisão de não desistir. E isso, jamais esqueceria.
A espada cortando o ar, o lutador evitando os ataques em um combate frenético, o tronco inclinando no último segundo, os olhos que nunca piscavam, sempre esperando pelo próximo ataque…
Cada detalhe era importante.
Foi a primeira vez que se esforçou tanto para guardar algo além das palavras de um livro. Bastava gostar de um trecho e ele o repetia o dia inteiro.
Em voz baixa, nos pensamentos, ou sussurrado antes de dormir. Amava as teorias que regiam as energias ancestrais, amava geografia, história… decorava páginas inteiras por pura curiosidade.
Mas nunca tinha memorizado algo assim. Um campo de batalha, onde o aprendizado vinha junto com a dor, e não com o virar de páginas velhas e gastas.
No silêncio do orfanato, antes de dormir, revia cada movimento.
Durante os treinos com Lunna, mesmo com medo de parecer ridículo, repetia os golpes de forma desengonçada. Tentava sentir como seria estar naquele campo de batalha, mesmo sem ter lutado de verdade.
Até agora.
Bargo avançou com um grito gutural, um touro em busca da bandeira vermelha. O punho veio pesado.
Ele está vindo! Vamos, faça que nem ele!
O meio-elfo recuou o pé esquerdo. Girou o tronco. Baixou o queixo.
O punho passou a centímetros do seu rosto.
Eu consegui! Esquivei do ataque dele!
Outro soco veio, mais desgovernado. Deslizou o corpo para o lado, o ombro quase roçando a parede do beco, flexionou os joelhos e num giro preciso, outro golpe tinha sido evitado.
Preciso achar uma oportunidade para atacar… Se eu só derrubar esse porco desgraçado, eu e Lunna podemos dar um jeito no Emerik!
Bargo bufava, frustrado, girando para mais um ataque. Aspen já estava em outro lugar. Pequenos saltos para os lados, passos curtos.
Com o tempo, o delinquente foi cansando.
Três socos, quatro, cinco… e cada vez mais lentos.
Peguei você!
O braço de Bargo se abriu demais, expondo o lado esquerdo do rosto.
O punho direito de Aspen disparou.
Não houve pensamento. Só instinto. Técnica memorizada. Ombro girando, quadril acompanhando, força partindo dos pés.
Um direto. Rápido, limpo. Bem no maxilar.
Bargo cambaleou um passo para trás, caindo no chão. Os olhos se arregalaram, surpreso pelo sangue escapando da boca.
Consegui! Derrubei ele! Os golpes funcionam!
Aspen mal teve tempo de sentir a adrenalina da vitória, pois o agressor estava de pé novamente.
— Seu desgraçado… Agora você tá morto!
Fica calmo… Tá tudo bem, eu só preciso fazer de novo, até ele cansar.
Então veio a dor. Um latejamento no ombro. Uma estranha vontade de vomitar. Um mal-estar constante.
Isso… é parecido com quando eu comecei a treinar… mas porque só agora…?
Bargo rugiu tentando imitar um animal, e, num movimento bruto, cravou o joelho no estômago do órfão.
As costas bateram no chão com um som abafado. O ar sumiu dos pulmões. Uma dor profunda se espalhou pelo abdômen. Tentou respirar, mas falhou. Tentou levantar, as pernas não obedeceram.
Sentiu o gosto do ferro na boca. E o gosto amargo da desilusão.
O agressor limpou o sangue da boca, passou a língua entre os dentes e cuspiu, o sangue catarrento atingindo a bochecha do meio-elfo.
— É por isso que bastardos como você deveriam nem deveriam existir. Achou mesmo que me derrotaria com esse soquinho fraco?
Eu sabia… Não dá pra ser como ele. Eu sou naturalmente fraco, como eu poderia me dar o luxo de tentar mudar o que foi decidido no meu nascimento? Tudo faz sentido agora…
E ali ficou. No chão frio, encarando as nuvens no céu com o formato de um olhar depecionado. Sentindo-se pequeno outra vez. Sentindo-se ridículo por ter acreditado.
Sim… Pelo menos eu tentei. Acho quejá posso desistir… Eu já fiz o suficiente. Posso continuar com a minha vida medíocre sem arrependimentos agora.
A decisão fazia sentido. Mas por que não trazia paz? Por que parecia tão errado?
Se aceitar a derrota era o caminho lógico, por que sua consciência parecia pesar toneladas?
A garganta apertava como se engolisse um nó impossível de desfazer.
As lágrimas vieram silenciosas, no exato instante em que tentou convencer a si mesmo de que já havia feito o bastante.
Deveria carregar uma expressão serena, mas esse não era o caso.
Os olhos estavam esbugalhados.
O sangue e o catarro escorriam pelo nariz.
Os lábios tremiam, tortos, tentando engolir o grito.
Não era só dor.
Era o rosto de um menino que ousou pensar como humano…
E fracassou como elfo.
Emerik se agachou perto de Aspen, o olhar deslizando com lentidão, calculando cada pedaço da fraqueza escancarada no chão.
— Você devia nos agradecer, sabia? — disse com aquele tom sereno que doía mais do que um chute. — Estamos pegando leve com você. Tentando revidar depois de anos de amizade, quem você pensa que é?
Bargo riu alto, uma risada grotesca e gutural, ainda limpando o sangue da boca com as costas da mão.
— Ele realmente achou que ia ganhar. Que piada! — virou-se para Emerik, apontando para o corpo estirado no chão. — Vamos acabar logo com isso? Quero ouvir os gritos dele depois de quebrá-lo na frente dos irmãos.
Emerik sorriu, quase com pena.
— Vamos fazer as coisas com calma. Deixa ele aproveitar o momento.
Aspen tentou se mover, mas só gemeu. O ar rasgava a garganta, e a visão embaçava. É assim que terminaria?
Essa era sua punição por acreditar que poderia mudar?
— Parem com isso! — gritou Zara, correndo na direção do amado irmão, os olhos úmidos de raiva.
Rashid veio logo atrás, com os punhos cerrados.
— Deixem o nosso irmão em paz! — esbravejou o garoto, se pondo à frente de Bargo.
— Hehe, a pirralha está preocupadinha com o irmão patético! — debochou o brutamontes.
Zara se ajoelhou ao lado de Aspen, tentando ajudá-lo a sentar, mas sua mão tremia.
Lunna, em silêncio, também se aproximou, os chifres verdes brilhando sob a luz opaca da tarde. Havia fúria no olhar dela, mas hesitação no corpo. Sabia que não tinha chance alguma contra aqueles dois, mas tinha que tentar.
Emerik observou os três com uma expressão de escárnio.
— Que cena patética. É isso que ele inspira? Moscas voando ao redor do lixo?
— Aspen não é um lixo! — disse Lunna, a voz falhando no final.
Emerik inclinou a cabeça, curioso.
— Não? Porque olhando daqui, ele parece exatamente isso: um fracassado chorando no chão, cercado por moscas.
— Vocês acham que são fortes? Só porque pisam em gente fraca? Isso não é força!
— Força — respondeu Bargo, dando um passo à frente — é fazer os fracos entenderem onde eles pertencem. Agora saiam da frente.
Rashid não se moveu. Mas hesitou.
— Nós não vamos-
Bam!
Bargo não esperou terminar. Um punho pesado atingiu o rosto da criança, o jogando no chão. Zara gritou. Lunna tentou correr até ele, mas Emerik colocou o pé na frente, fazendo-a cair com os joelhos no chão.
— Vocês não têm o direito de falar de força — disse Emerik, virando as costas. — E muito menos de contestá-la.
Os três ficaram ali: humilhados. Frágeis. Vencidos não só pela força bruta, mas pela certeza de que ninguém viria.
Clap! Clap! Clap!
Palmas reverberaram pelo beco.
Uma sombra alongou-se sobre a parede de tijolos.
E uma voz — calma, firme e surpreendentemente serena — rompeu o silêncio:
— Gostei de ver, orelhão! Agora sim, você está se parecendo com um lutador! — disse Hazan, de pé no alto do muro.
Os olhos de Aspen se arregalaram. O mundo parecia distante, embaçado, mas aquela voz cortava tudo.
Hazan saltou com leveza. As botas tocaram o chão.
Mas Aspen… mesmo caído, mesmo com dor, sentiu algo diferente em si. Um calor discreto.
Por que ele está aqui…? Como ele achou a gente?
Ele não dizia nada. Encarou Lunna de soslaio e passou tranquilamente por Zara e Rashid, bagunçando seus cabelos no caminho.
Quando chegou ao lado de Aspen, sequer o encarou, pois estava focado nos jovens à sua frente.
O olhar dele não pedia permissão.
Era o tipo de olhar que já decidiu o que ia fazer.
— Quem é você? — rosnou Emerik, estreitando os olhos. — Algum idiota corajoso?
Mas Bargo congelou. O tom de voz dele perdeu a arrogância.
— E-ei… É melhor a gente dar o fora. Eu conheço esse cara… é aquele maluco que quase quebrou na semana passada!
— Professor da aula de hoje — interrompeu Hazan, aquecendo os músculos.
Fez contato visual com os irmãos, que entenderam a mensagem. Recuaram, ficando atrás do lutador, encarando suas costas que agiam como um escudo protetor.
Hazan inspirou fundo.
— Prestem atenção — disse, sem tirar os olhos dos garotos. — Isso aqui… é boxe.
A postura mudou. Os pés se firmaram no chão, leves e sólidos ao mesmo tempo. O queixo alinhado. Os punhos levantados com tranquilidade.
Emerik riu, debochado, sacudindo a cabeça como quem se recusa a levar a ameaça a sério.
— Bargo… sério que tá com medo? Tá exagerando demais. Olha pra ele! Só parece mais um mendigo marrento. Dá pra ver de longe que é cheio de pose e nada de prática.
Mas Bargo não respondeu. O suor escorria pela bochecha, e os olhos só encaravam o chão.
Ele disse que ia quebrar os meus dentes da última vez… Como eu vou comer desse jeito!?
— Tsc… Deixa que eu resolvo sozinho, então!
Emerik correu até ele visando um soco bruto. O rapaz não bloqueou. Fez um leve movimento de tronco para o lado. O punho atingiu o ar.
— Esquiva simples — comentou ele, enquanto o agressor tentava entender o que tinha acontecido. — Flexiona os joelhos, movimenta o tronco e a cabeça pro lado que quer esquivar. O objetivo não é fazer bonito. É não ser acertado.
O garoto tentou de novo, irritado. Hazan girou o quadril para o outro lado, e o punho passou de novo.
— B-Bargo, se não me ajudar agora, eu conto tudo pro chefe! — rosnou o garoto, os dentes trincados de frustração.
Foi o estalo. Algo se partiu entre o medo e a razão, e o pequeno brutamontes entrou em ação.
Os dois partiram para o ataque em sincronia — ou pelo menos tentaram. Movimentos apressados, golpes previsíveis.
Do outro lado, o lutador nem se deu ao trabalho. Desviava com o mínimo, o olhar afundado num tédio preguiçoso.
Enquanto a dupla cansava, ele estava bocejando.
— A maior mentira que te contam é que você precisa ser rápido. O que você precisa é de tempo. E saber onde esse tempo mora.
Com o terceiro ataque, Hazan avançou.
[Jab!]
Seu punho direito acertou o nariz de Emerik. Sem força excessiva, mas direto ao ponto. Bargo tentou cobrar o ataque com um agarrão, mas o lutador saiu da distância, aplicando mais um ataque.
[Jab!]
— Isso aqui se chama jab, o primeiro passo pra quem não quer levar um socão na cara — disse Hazan, como se desse aula num parquinho. — Serve pra manter distância e mostrar quem manda.
— Ah, por favor! Isso nem dói! — zombou Bargo, inflando o ego.
O parceiro se animou, e os dois atacaram juntos.
Mas Hazan apenas recuava e, com precisão, repetia o jab sempre no nariz.
O tempo passou. Eles ofegavam.
E Hazan continuava bocejando.
— Contra oponentes mais fortes, você precisa cansá-los. Seus ataques não precisam ser fortes. Só precisa irritar. Tirar o ritmo deles.
— S-seu desgraçado…! Você não sabe com quem está mexendo! — disse Bargo, avançando um passo, apenas para sentir o sangue escorrer pelo nariz.
Estava confuso. Os ataques eram fracos demais para causar qualquer dano, então como seu nariz estava sangrando?
Encarou Emerik, e o mesmo acontecia com ele.
Os garotos recuaram, atordoados, com sangue escorrendo do nariz.
Desesperado, Emerik viu um pedaço de madeira no chão e o pegou. Gritou ao erguer a arma sobre a cabeça. Hazan deu dois passos para o lado, abaixou o tronco, movimentou o corpo com fluidez.
— Isso é o pêndulo.
Se afastou e bocejou com uma expressão entendiada. Chamou os dois agressores com o indicador.
Emerik se irritou primeiro, correndo em sua direção.
Com mais um pêndulo, passou por baixo do braço do garoto, e o punho esquerdo cortou o ar e atingiu em cheio o maxilar do agressor, que caiu ao chão.
— Esse é o direto.
Emerik ainda não havia desmaiado, mesmo caído. Aquilo deixou Aspen intrigado. Já tinha presenciado demonstrações absurdas da força de Hazan, o suficiente para saber que qualquer golpe dele bastava para pôr fim àquilo.
Mas Emerik ainda estava consciente.
Ele disse que era um professor… Ele tá se segurando? Só pra me ensinar? Hazan, você é totalmente…
— Lunático! — acusou Bargo, trêmulo. — N-nosso líder não vai deixar isso passar!
A tentativa de ameaça falhou junto com a própria voz.
— Segunda lição — disse, sem pressa. — Mantenham a base firme.
Apontou com o queixo para o garoto no chão.
— Ele não caiu só porque apanhou forte. Caiu porque estava torto, desequilibrado. É no pé que mora a derrota.
Fez uma pequena demonstração: pés afastados na largura dos ombros, um leve balanço de um pé para o outro, quase imperceptível.
Bargo tentou desviar quando Hazan avançou com um passo rápido. Não teve chance. O jab acertou sua bochecha, mas era apenas a preparação para o golpe que estava por vir.
O direto parou a centímetros do rosto do malfeitor. O garoto franziu os lábios, perdendo a forças nas pernas e caindo.
— E essa foi a junção desses dois golpes… Se chama “um-dois”. Você começa com o jab, e busca uma oportunidade pra acertar um direto.
Zara e Rashid assistiam com olhos arregalados. Lunna, ao lado deles, mordia o lábio inferior. Quando Hazan olhou para Aspen, viu os punhos cerrados e o brilho nos olhos.
— Você não errou nos movimentos — disse Hazan. — Errou porque lutou sem base. Porque seu corpo sabia a forma, mas não o tempo. E porque, acima de tudo… não respeitou a diferença de peso.
Aspen respirou fundo. Se levantou com dificuldade, limpando o sangue da boca.
— Hazan… — a voz ainda era fina, mas firme. — Me deixa lutar de novo com o Bargo.
Hazan virou-se lentamente. O olhar era neutro, mas havia algo ali. Um reconhecimento. Como se ele tivesse esperado que Aspen fosse pedir.
Mas a resposta foi rápida e cortante:
— Não.
Aspen piscou.
— O quê?
— Você não seria capaz de vencer.
— Mas eu vi o que você fe-
— Só ver não serve, orelhão. — Hazan deu um passo na direção dele. — Você aprendeu rápido, pra quem treinou sozinho. Mas saber o caminho não é o mesmo que estar pronto pra andar.
Aspen sentiu algo subir do peito até a garganta. Uma mistura de frustração e… esperança?
Porque, apesar da recusa, havia algo na frase do lutador que instigou algo mais profundo.
Ele acreditava. Pela primeira vez, alguém via nele mais do que o garoto orelhudo e magrelo que todos ignoravam.
Aspen abaixou os olhos, engoliu em seco, e apenas assentiu.
— Bom, vou levar vocês até em casa, mas preciso resolver algo primeiro.
Se virou e andou até Bargo. Agarrou os cabelos dele com a mão, encarando-o com um olhar ameaçador.
— E-ei, espera, espera! A gente promete não mexer com eles de novo!
— O que foi que eu disse que faria da próxima vez?
Os olhos do garoto marejaram na hora. Lágrimas grandes, desesperadas.
— M-merda… eu não quero passar meses comendo mingau! M-me deixa ir, só dessa vez, por favor!
O lutador ergueu o punho, cerrado como uma sentença.
— Então é melhor você trancar essa mandíbula.
Mas antes que o golpe descesse, algo nos olhos do garoto o fez hesitar — aquele brilho úmido, assombrado… por um instante, viu o reflexo de todas as outras crianças, assustadas, frágeis. O olhar dele se suavizou.
— Dá o fora daqui.
Bargo assentiu e andou até Emerik, ajudando-o a se levantar. Os olhos de Emerik estavam vermelhos, e o orgulho ferido parecia uma ferida exposta em sua expressão.
Mas não era só orgulho. Era raiva. E algo pior: covardia com dentes afiados.
Esperou até que Hazan estivesse distraído com os pequenos, a passos de sair do beco. Então, com os dedos trêmulos, puxou um pequeno apito de madeira que carregava pendurado no pescoço, escondido sob a camisa. Levou-o à boca, soprando com toda a força que tinha nos pulmões.
Um som agudo e cortante rompeu a tranquilidade da viela. As crianças taparam os ouvidos. Lunna se virou com o cenho franzido. Hazan girou lentamente sobre os calcanhares.
— …O que você acabou de fazer?
Emerik sorriu. O rosto inchado, os olhos brilhando de pura satisfação.
— Eu devia ter feito isso antes — cuspiu, sangue escorrendo pelo canto da boca. — Agora você vai ter o que merece!
Antes que ele pudesse reagir, os dois viraram as costas e sumiram nas sombras. Pensou em correr atrás… mas algo mudou.
Um som cortou o ar.
Passos. Não — trotadas. Como se dezenas de pés marchassem em meio ao caos, vindo de todas as direções.
A tensão em seu rosto se transformou em algo mais perigoso: pressentimento.
— …Merda.
Disparou até o fim da viela, os ombros duros, os olhos varrendo o cenário. Parou numa encruzilhada onde três ruas se cruzavam.
Pela esquerda, surgiram os primeiros — uma massa em movimento. Homens de olhos famintos, bastões de ferro nas mãos, correntes tilintando, corpos largos demais pra serem só bandidos de esquina. Dez… não, bem mais.
À direita, outra leva, tão numerosa quanto.
Ao centro, ainda nada. Mas era questão de tempo.
— Aspen, Lunna!— gritou Hazan, sem se virar.
Aspen e Lunna apareceram por trás, ofegantes, com Zara e Rashid entre eles.
— O que foi? — perguntou a dragoniana, inquieta.
— Levem as crianças. Corram pro orfanato.
— Mas eu posso ajudar! — protestou Aspen, apertando os punhos. — Eu lutei com o Bargo! Eu—
— Aspen.
A voz de Hazan cortou como navalha.
— Você só iria me atrapalhar.
Aspen ficou imóvel. O orgulho balançando dentro do peito como vidro rachado. Lunna segurou seu braço, percebendo o medo por trás da coragem.
— Ele tá certo — murmurou. — Isso é… isso é demais.
— Quantos…? — sussurrou Aspen, engolindo seco.
— No mínino 30 — respondeu Hazan. — Mas pelo barulho dos passos, deve ser mais.
As palavras bateram forte. Aspen olhou para o chão, o queixo tremendo.
— Vai — repetiu Hazan, mais brando. — Protege elas. Você é bom nisso.
Aspen assentiu. Engoliu o orgulho. Depois pegou Lunna pela mão e puxou Rashid e Zara com a outra.
— Vamos!
As crianças correram. Passos apressados sumindo entre os becos, deixando para trás a tensão como um nó apertado no ar.
Hazan ficou sozinho. O vento trouxe consigo o cheiro de ferrugem e suor. E o som dos passos ficou mais alto.
Na boca da viela, os primeiros começaram a surgir.
Homens de olhos maliciosos, um a um, carregando armas improvisadas com madeira e pregos.
Respirou fundo. Os punhos se fecharam. A sombra do beco se alongava ao seu redor. A mente já calculava rotas de fuga, pontos cegos, quais rostos mirar primeiro. Mas lá no fundo, uma certeza incômoda se formava: ele não sairia dali ileso.
Quando se deu conta, já estava completamente cercado pela multidão.
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