O céu começava a clarear, tingido de um azul esmaecido pelas primeiras luzes do amanhecer. As ruas dos surbúrbios continuavam sujas e silenciosas, com a névoa rasteira escorrendo pelos paralelepípedos no chão.

    Duas figuras elegantes caminhavam lado a lado naquela rua vazia, saindo de uma pousada.

    Darius ajeitava a gola da camisa escura com uma expressão satisfeita, enquanto Mirielle prendia novamente os cabelos com a mesma precisão com que afiaria uma lâmina. 

    Ambos vestiam roupas casuais, mas Darius ainda insistia em manter a espada na cintura.

    Os olhos semicerrados de Mirielle exibiam um cansaço natural de quem tinha acabado de acordar. Os lábios estavam marcados de um batom borrado, e uma pequena mordida no pescoço visível sob a gola.

    — Lembra daquela loja perto da Praça Central? Com os livros de conjurações? Eles estão com uma promoção… — comentou ela num tom insinuoso.

    Darius soltou um sorriso enviesado, provocador:

    — Você não cansa de gastar o meu dinheiro?

    — Não seja assim, veja como um investimento! — retrucou ela, com um sorrisinho de canto. — Quando eu alcançar o terceiro círculo, vou poder encantar mais de um item de uma vez, sabia?

    — É mesmo? — comentou ele, desinteressado. — E até lá, quanto do meu dinheiro você vai sugar?

    — Ei! — ela cutucou o ombro dele com o cotovelo, soltando uma risada.

    Uma sombra se moveu entre as casas, e então uma voz familiar, grave e abafada pelo cansaço, cortou o silêncio:

    — Finalmente achei os dois pombinhos…

    Lorne, o desbravador, surgiu à frente deles. O sobretudo de viagem empoeirado, as botas cobertas de lama seca, e os olhos fundos como de alguém que há dias não dormia. Uma aljava pendia de um ombro e o arco em sua mão esquerda estava pronto, ainda que não tensionado.

    Darius arqueou uma sobrancelha.

    — Estava… nos seguindo, Lorne? Isso me parece um pouco obsessivo.

    — Observar seria mais justo — disse Lorne, sem sorrir. — Nobres como vocês deveriam tomar mais cuidado… — Ele semicerrou os olhos. — Existem pessoas nessa cidade que adorariam ver sangue azul escorrendo pelas sarjetas.

    Darius assentiu lentamente, como quem começa a montar um quebra-cabeça.

    — E o que exatamente você quer conosco?

    Lorne parou a poucos metros deles, os olhos escurecendo com algo entre frustração e ressentimento.

    — Rauvin sumiu dias depois que apanhou do cara moreno das artes marciais. Disse que ia resolver as coisas com você, cobrar o que devia. Não voltou. Ele gastou várias moedas com poções para repor os dentes quebrados, sabia disso?

    O silêncio foi a resposta de Darius, seus olhos observando de cima a baixo o desbravador na sua frente. Mirielle suspirou com tédio.

    — E por que veio aqui nos importunar?

    — Darius devia pra ele — rosnou Lorne, agora com os dedos apertando a madeira do arco. Ele disse que pagaria Rauvin para intimidar o novato. Como era a palavra de um nobre, Rauvin não questionou, mas faz quase uma quinzena que ele sumiu. Você o viu?

    — Não — respondeu Darius, direto. — Não vi.

    — Mentira! Rauvin fez o serviço antes de ser pago. Ele era um idiota, mas confiou em você. E agora finge que não tem nada a ver com o desaparecimento dele?

    — Uau, você raciocina rápido — disse ele com um sorriso debochado. — Sabe, foi bastante incômodo quando aquele plebeu pensou que poderia me cobrar, ele já não deveria ser grato por ter a oportunidade de ajudar um nobre como eu?

    Sua expressão se tornou ainda mais desprezível.

    — Rasguei seu estômago com a minha lâmina, enquanto ele implorava por misericórdia… Um final patético para alguém patético, não concorda?

    Lorne, de olhos em brasa, ergueu o arco com um movimento rápido, puxando a corda com firmeza. A ponta da flecha mirava direto no peito de Darius.

    — Vocês, nobres, estão sempre brincando com a vida dos outros como se fossem peões! Hoje, quem sangra são vocês! — vociferou Lorne, atirando a flecha.

    Darius não hesitou. A expressão de tédio se dissolveu numa ferocidade quase bestial.

    Num instante, a lâmina saiu da bainha, uma silhueta azul brilhando como um relâmpago.

    Num instante depois, a flecha estava cortada ao meio, as metades caindo no chão. Darius avançou, e Lorne tentou se esquivar, mas o passo dele mudou no último segundo.

    Slash!

    E então, silêncio. O corpo de Lorne ficou em pé por um segundo, antes que a cabeça se separasse do pescoço e caísse com um som molhado no chão sujo da rua. O sangue formou uma poça carmesim que se espalhou entre as frestas dos paralelepípedos.

    — Mirielle — disse Darius com a voz fria. — Cuide disso.

    Ela suspirou como quem já estava acostumada com aquilo. Estendeu a mão para frente e um círculo mágico vermelho surgiu. Uma chama crepitou no ar, alaranjada e faminta. Bastou um toque no corpo, e o fogo se espalhou sem cheiro, queimando a carne até virar poeira.

    O rosto de Darius ainda estava sereno, mas os olhos… aqueles olhos estavam famintos, brilhando com uma intensidade doentia.

    — Eu odeio quando as pessoas não sabem o seu maldito lugar.

    Por um instante, Mirielle congelou. Não pelas cinzas do cadáver voando pelo ar, e nem pelo sangue nas botas de Darius — isso ela já vira mil vezes. Mas pelo sorriso que apareceu logo em seguida no rosto de seu companheiro: largo, entusiasmado… quase infantil.

    — Você… ainda vai seguir com aquele plano, mesmo depois disso? — perguntou ela, observando a expressão dele com cuidado.— Se ele suspeitou, quem nos garante que outra pessoa não vai?

    — Isso é irrelevante — respondeu Darius, passando a mão no próprio cabelo com elegância. — Não há provas e nem testemunhas que nos liguem a esses crimes. E a Guarda Escarlate não se importa com mortes pequenas, Beatrice só age em benefício próprio.

    — E a Pena Azul? Ouvi rumores sobre Hadrian, parece que ele intensificou suas patrulhas nos distritos mais profundos da cidade… Dois desbravadores foram mortos, você não acha que deveria dar uma pausa nesse seu hábit-

    Apenas o olhar dele foi o suficiente para interrompê-la. Um pouco da aura azulada vazava de seu corpo, tornando-o ainda mais ameaçador.

    — Mirielle. Está tudo sob controle — declarou.

    Ela lançou um último olhar para os restos de Lorne, agora quase irreconhecíveis, e engoliu em seco, assentindo lentamente.

    — Bem… de qualquer forma, ouvi um rumor interessante. Um cocheiro idiota anda espalhando coisas ruins sobre Hazan e Aurora pelos becos da cidade. Parece pessoal. Um tal de Lirven.

    Darius ergueu uma sobrancelha, interessado.

    — É mesmo? Um ressentido. Sempre os melhores peões. Se encontre com ele e ache uma forma de usá-lo.

    Mirielle sorriu, agarrando os braços dele com um sorriso sedutor.

    — Missão dada é missão cumprida, meu amado líder.

    Um sorriso venenoso desenhou-se em seus lábios.

    — Eles não vão dar a sorte de escapar dessa vez.

    E juntos, desapareceram na penumbra das ruas, como vultos que apenas a cidade decadente de Ariasken seria tola o bastante para ignorar.


    A tarde tingia os vitrais da ala oeste com um dourado morno e indiferente. Flint atravessou o corredor lateral da mansão com passos silenciosos, evitando os olhares dos criados que, ao notá-lo, rapidamente baixavam a cabeça ou se afastavam para dentro de portas e corredores. 

    Não era medo exatamente, mas também não era respeito. Era aquela mistura desconfortável entre receio e repulsa.

    Uma educação fingida.

    Empurrou a pesada porta dupla de madeira escura, esculpida com relevos de brasas e punhos erguidos. A arena privada da Casa Ignis se abriu diante dele.

    Era um espaço circular, amplo, cercado por colunas altas de pedra vermelha. Bandeiras rubras pendiam do teto, cada uma ostentando o brasão ancestral da família: uma fagulha de chamas vermelhas envolta por um punho cerrado.

    No centro, o chão era marcado por manchas de queimaduras no mármore, vestígios de antigas batalhas de treinamento. Bonecos de treino de madeira endurecida estavam dispostos aos lados, alguns já marcados por impactos, outros ainda intactos, esperando.

    Flint passou os dedos pelo peito, sentindo a respiração ofegante.

    É o terceiro dia que venho aqui depois daquela humilhação… Por que eu continuo fazendo isso?

    Estava cansado, mas não fisicamente. Era um cansaço mais profundo, mais denso. Um peso na carne que não se aliviava com sono. 

    E ninguém podia vê-lo assim. Por isso vinha ali depois que os guardas treinavam, sozinho, longe de olhares. Afinal, para muitos, era mais fácil zombar dele quando caía, do que reconhecer o esforço que fazia para ficar de pé.

    Caminhou até um dos bonecos de madeira e se postou diante dele. Cerrou os punhos. O som seco dos impactos ecoou pela arena vazia. Cada soco parecia levar embora algo: frustração, vergonha, desespero. Batia mais forte. Mais rápido.

    Se não fosse pela autoridade da minha mãe, eu sequer teria o direito de participar da linha de sucessão da família.

    Os funcionários sussurravam quando ele passava. Os guardas o tratavam com desprezo. Muitos se aproveitavam da influência da mãe para manter o emprego e suportá-lo. E talvez estivessem certos. Afinal, o que ele era se não a centelha apagada dos Ignis? A decepção da família?

    Como foi que eu me tornei tão patético? Como eu não percebi isso antes?

    Nem sempre tinha sido assim. Houve um tempo em que seu talento era reconhecido, e seu futuro parecia brilhante. Mas tudo mudou naquele dia fatídico.

    Pai… Por que você tinha que nos abandonar?

    Seu peito arfava, o suor escorria pela testa, mas os olhos… os olhos estavam secos. Não havia lágrimas para quem nunca foi ensinado a chorar.

    Ele parou por um momento. Caminhou até o centro da arena e se sentou de pernas cruzadas, fechando os olhos. 

    Lembrou-se daquela figura lendária, de quando ainda era criança. Do jeito severo com que lhe ensinara os fundamentos da Aura:

    “Escute com atenção, meu filho. A chama que queima é a mesma que liberta. A Aura prova os impacientes com dor e presenteia os pacientes com verdade. Não a suje, meu filho. É tolice ordenar que o sol nasça mais cedo.”

    Na maioria das academias, os pujantes começavam seus treinos com longas sessões de concentração, parados, absorvendo a energia do mundo ao redor e separando cuidadosamente a Aura pura da Mana. Uma tarefa delicada e exigente.

    Mas a técnica da família Ignis era diferente. Ao invés de acumular Aura através da meditação, os Ignis eram capazes de fazer isso enquanto se movimentavam.

    Como brasas que, ao serem sopradas, tornavam-se chamas.

    Circulação de Aura: Marcha Ardente.

    Flint se levantou. Inspirou fundo. Seu corpo começou a se mover em uma dança marcada, socos no ar, chutes giratórios. Seus pés raspavam o chão em círculos enquanto seus punhos descreviam arcos firmes. 

    A aura começou a despertar como brasas sendo atiçadas por um velho galho de madeira. Primeiro como calor no peito, depois como pequenas faíscas nos dedos.

    Chamas alaranjadas envolveram seus braços, fracas a princípio, depois mais intensas. A respiração se acelerava. O suor evaporava antes de tocar o chão.

    Ele atacou o boneco. Um, dois, três golpes, e a cada impacto, as chamas se intensificavam. A aura dançava ao redor de seus punhos como serpentes flamejantes. 

    Quando foi a última vez que tinha sido capaz de manter aquele nível de concentração?

    Estava animado. Queria treinar mais. Ir além. 

    Mas e se estragasse tudo?

    Crack!

    Um estalo. Uma quebra. Uma dor súbita no peito.

    Flint tropeçou para frente, caindo de joelhos. A mão massageou o peito que ainda formigava. Toda a aura acumulada tinha se perdido. O sangue escorreu da boca, pingando no chão.

    — Tsc… Hahaha… patético… Eu realmente sou uma decepção.

    A risada escapou com gosto de ferrugem. Era isso que era. O herdeiro mais velho da Casa Ignis. O que não conseguia manter a própria chama acesa.

    — É melhor eu desistir da linha de sucessão… Meu irmão mais novo é muito mais talentoso.

    Limpou o sangue da boca e caiu de costas, os braços estendidos no chão, encarando o teto da arena, que tinha uma pintura épica representando o símbolo da família.

    O talento sem esforço é desperdício. E o esforço sem propósito é um castigo. A que me agarro? Ao nome? Ao orgulho? Ao medo de rejeição?

    A arena ficou em silêncio de novo. Até que uma voz cortou o ar:

    — Está se divertindo sozinho, jovem mestre?

    Flint ergueu o olhar. Darius estava parado com os braços cruzados, o ombro apoiado na batente da porta. Postura relaxada demais para alguém que nunca se movia sem intenção.

    — Quanta dedicação… Não sabia que ainda se importava em lutar.

    — Darius? — Flint piscou, surpreso. — Você quase nunca vem aqui… Tá precisando de dinheiro?

    Darius riu baixo, como se apreciasse a ousadia, abaixando levemente a cabeça antes de encará-lo com aqueles olhos verdes sempre frios.

    — Desgraçado, é você quem costuma me pedir dinheiro pra bebidas.

    Flint respondeu com um sorriso torto. — Porque a sua família é mais rica. E você não sente falta.

    Se aproximaram. As mãos se encontraram num cumprimento aparentemente nostálgico. Mas Darius ergueu o queixo enquanto apertava mais forte, até que os dedos estalassem. Flint arqueou as costas, mordendo a língua para não reagir.

    — E-ei, seu maldito!

    Darius soltou. Limpou a mão nas próprias roupas como se tivesse tocado algo sujo. Flint riu, tentando disfarçar o desconforto, e empurrou de leve o ombro do outro.

    — Ainda com esse velho hábito? Você não muda mesmo.

    — Olha… É surpreendente o que eu vou dizer, mas… Não posso dizer o mesmo de você.

    Seu olhar vagueou pela arena. Demorou-se nos detalhes. No suor escorrendo pelas tábuas, nos calos novos nas mãos de Flint. E por um instante, pareceu refletir.

    — Eu tenho praticado — disse Flint, sem graça. Coçou a cabeça. O olhar baixou como o de alguém envergonhado por tentar.

    — Aquela humilhação na semana passada foi a gota d’água.

    Darius manteve o silêncio por um segundo mais longo do que o necessário. Observava. Dissecava.

    Algo no tom de Flint o incomodava.

    Esperança.

    A fagulha miserável de alguém que, contra tudo, queria melhorar.

    — Não diga isso, você sabe que aquilo não foi culpa sua — começou, num tom que tornava a situação melhor do que realmente era. — Aquele bárbaro não tinha um pingo de educação. Aquela pousada? Um chiqueiro. Nem estrutura tinha pra te receber.

    Ele se aproximou, envolvendo seu braço ao redor das costas de Flint.

    — E convenhamos… você estava bêbado. Com sua Aura Flamejante em plena forma, aquele verme não teria chance alguma.

    Flint mantinha os olhos no chão. Aquelas palavras vinham como sussurros fáceis de ouvir e aceitar.

    Mentiras reconfortantes.

    Mas estava cansado de se conformar com essas mentiras.

    — Não… Eu cometi um erro. Preciso compensar aquele luga—

    — Por que não temos um duelo? Como nos velhos tempos?

    Flint ergueu os olhos, hesitante.

    Darius. O prodígio que parecia ter nascido com tudo o que ele passava a vida tentando conquistar. Um desbravador de ranque ouro da Guilda Pena Azul, um pujante avançado de quatro estrelas, tudo isso com apenas vinte e três anos. O brilho da sua trajetória era sufocante.

    E como se não bastasse, vinha da Casa Vaelmont, uma linhagem nobre tão antiga e refinada quanto a dele.

    Enquanto ele mal conseguia sair do lugar, o outro já caminhava sobre tapetes que sequer conseguia tocar.

    Estava parado no mesmo lugar há anos.

    Apesar de todos esses fatos, havia algo queimando por dentro. Um eco da criança que não aceitava mais viver à sombra. Talvez fosse tolice. Ou talvez fosse tudo o que lhe restava.

    Darius continuou:

    — Não vou usar as técnicas da minha família. — Foi até o suporte de espadas e pegou uma de madeira. Girou nos dedos com elegância. — Vai ser um duelo de espadas. Entre homens. O que acha?

    Flint hesitou. Mas assentiu. Devagar. Como quem pula de um penhasco.

    — Certo. É melhor você não pegar leve comigo.

    Darius sorriu.

    — E eu já fiz isso alguma vez?

    Então avançou.


    O primeiro a se aproximar foi um brutamontes com o nariz torto e uma tatuagem mal feita de uma faca na bochecha. 

    Estava com uma barra de ferro pendendo da mão, a promessa de uma violência iminente. 

    — Você vai vir conosco — anunciou o grandalhão, cuspindo perto dos pés de Hazan. — Nosso chefe quer falar com você.

    Hazan olhou ao redor, mas só conseguia enxergar vários homens prontos para derramar sangue.

    Eles me cercaram por completo, não dá pra abrir caminho desse jeito.

    As possibilidades começaram a surgir. Observou mais a frente, percebendo que o fim da rua era fechada por um grande muro, onde a fachada tinha cacos de vidro.

    Merda… Deve ter cerca de uns quatro ou cinco metros.

    Inspirou fundo.

    Será que eu consigo? Nunca lutei contra tantos assim de uma vez, e não vou poder ter o luxo de me segurar.

    Fechou os punhos. Os nós dos dedos estalaram. 

    Droga… Por que isso está me deixando tão animado?

    Um sorriso se insinuou no canto da boca de Hazan. Não era um gesto de simpatia, mas algo mais frio, mais primitivo — como a tensão de um músculo antes de um soco. E, por um instante breve, os bandidos ao redor estremeceram. O silêncio que se seguiu foi pesado, e um arrepio percorreu as espinhas daqueles atentos o bastante para notar a mudança.

    — Ei, seu bastardo… você está sorrindo? — rosnou um sujeito com uma cicatriz cruzando a bochecha. A mão grossa pousou com força no ombro de Hazan, num gesto mais de ameaça do que de controle. — Não entendeu ainda em que merda se meteu?

    O instinto falou antes da razão. Os cotovelos de Hazan se tensionaram, e por pouco o reflexo não explodiu em forma de ataque. Visualizou o ponto de impacto. A mandíbula do homem. O giro do quadril. O som surdo de um crânio encontrando o concreto. Mas conteve-se.

    Respirou fundo. Os ombros relaxaram só o suficiente para manter a fachada.

    — Bora lá. — A voz saiu firme, cortando o ar abafado. — Não vamos deixar o chefe de vocês esperando, certo?

    A tensão se quebrou como vidro. A primeira fileira de bandidos trocou olhares, riram entre si, depecionados com aquela reação patética. 

    O círculo ao redor de Hazan se reorganizou enquanto os pés batiam nas calçadas estreitas dos subúrbios. As ruas, encharcadas de umidade e escuridão, se estendiam em becos mal iluminados, cheios de sombras e lixo. Luzes amareladas piscavam nos postes tortos. 

    As poucas pessoas que tinham coragem para estar do lado de fora se recolheram para dentro assim que avistaram os bandidos. Outros não tinham o mesmo privilégio de ter um lar sob suas cabeças, e esses apenas abaixaram o olhar, temendo pelo pior.

    — Então… — começou Hazan, a voz quase casual, como se puxasse conversa de bar. — Quem exatamente é o líder de vocês?

    Um dos homens o olhou com escárnio, como se tivesse ouvido uma piada de mau gosto.

    — Você está brincando? Sai por aí bancando o justiceiro, e nem sabe com quem tá mexendo?

    — Deixa o garoto — respondeu outro. — Ainda tá aprendendo onde é o lugar dele. Vai descobrir do jeito mais difícil.

    — Naron — disse um terceiro, com mais orgulho do que raiva — é o nome dele. O líder de todos os distritos dos subúrbios. E não é só força não, viu? O homem é inteligência pura! A gente não se une por medo, a gente segue por convicção.

    — Com a Confraria da Sorte do nosso lado… — emendou outro, mais baixo, quase reverente — Não vai demorar muito até expandirmos os nossos negócios para o centro.

    Hazan arqueou uma sobrancelha. A Confraria da Sorte. Um nome que vinha surgindo com certa frequência. 

    De acordo com as informações de Aurora, eles tinham casas de aposta disfarçadas de tavernas, filiais em todos os cantos de Ariasken… Mas por trás das portas de madeira e do ambiente convidativo, havia dívidas, chantagens e mortes ocultas sob números e promessas de ouro fácil. 

    Agora, com Naron no tabuleiro, as peças pareciam mais bem posicionadas do que imaginava.

    Aos poucos, o rapaz foi diminuindo o ritmo da passada. Um passo. Depois outro, mais lento. E então parou.

    Os bandidos à frente avançaram alguns metros antes de notarem. Os de trás quase esbarraram.

    — Que foi? Finalmente ficou medo? — grunhiu um dos homens, já erguendo a barra de ferro nos ombros.

    Mas o lutador não respondeu. Apenas ficou ali, imóvel, como uma rocha no meio da correnteza. O olhar voltado para as nuvens, e um estranho sorriso no rosto.

    — Vou contar até três, moleque. Se não andar, vai chegar na base cuspindo dente! — rosnou o da cicatriz, já abrindo a guarda com o corpo tenso. — Um… Dois…

    — Três!

    E foi Hazan quem se moveu primeiro.

    Agarrou o brutamontes com a cicatriz pelo ombro, atingindo um soco que colocou o nariz torto no lugar, esguichando sangue para cima.

    Quando o homem ao seu lado estava prestes a gritar, encurtou a distância numa cotovelada que atingiu o maxilar, o barulho dos ossos quebrando se misturando em meio aos gritos.

    Eles estão desorganizados, é assim que eu vou abrir caminho!

    Inspirou fundo e usou as costas do bandido caído como impulso. O salto foi tão alto que quase não acreditou. Agarrou numa fresta entre os tijolos do muro, apoiou a ponta das botas em um cano velho e se lançou para o topo.

    Cacos de vidro o cortaram de leve ao pular a mureta. Ele aterrissou em uma outra viela estreita, flexionando os joelhos ao cair de pé.

    Atrás dele, a gritaria se espalhava como praga. O som de dezenas de pés batendo no chão, o arrastar de paus e metais, os gritos de “praquele lado!”, “ele foi por cima!”, “cerca a direita!”

    Não pretendia ficar parado. As pernas não hesitaram, e sua corrida começou. Virou várias esquinas, desviando de caçambas de lixo e carruagens abandonadas. Quando virou uma curva e viu um beco em escada, sorriu.

    Correu escada acima. Quando chegou ao topo, percebeu dezenas de homens prontos para subir a escada. Ele abriu um largo sorriso e os chamou com o indicador.

    — Vem pra cima que aqui é pau pra toda obra!

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