Capítulo 46 - Família é Quem Fica
As cordas apertavam com gosto, latejando nos pulsos. Um balde d’água, gelada e suja, impactou contra seu rosto sem aviso.
Splash!
— Acorda, dorminhoco!
Hazan tossiu, engoliu um pouco da água, cuspiu o resto. Fez careta. Aquilo definitivamente não era potável.
Abriu os olhos com esforço, e a primeira coisa que viu foi a cara enrugada de um sujeito com mais cicatrizes que dentes.
Acordei com um balde d’água e uma feiura que ofende os olhos. Era pra fingir que tava desacordado, não tirar um cochilo de verdade… Dormir amarrado devia ser mais difícil.
O ambiente era grande, mal iluminado, mas ainda assim revelava muita coisa.
Um galpão de teto alto, vigas de madeira podres com feixes de luar se esgueirando pelas rachaduras.
Em volta, um amontoado de armas mal empilhadas, caixas abertas com frutas em variados níveis de apodrecimento, barris e mais barris de… alguma coisa. Cerveja, provavelmente.
Trinta homens, talvez mais, espalhados pelo lugar. Alguns em pé, outros sentados em caixotes, mas todos com olhos cravados nele como urubus em volta de um animal quase morto.
Havia uma diferença clara entre alguns homens, que se dividiam entre bandidos clássicos e maltrapilhos, e homens claramente saudáveis e bem equipados.
Essa deve ser a base deles, e essa diferença nos equipamentos… Homens da confraria, exatamente iguais àqueles que enfrentei na ferraria do Milo. Tudo isso graças à minha atuação genial!
— Vocês me pegaram — disse o lutador, com um suspiro dramático e um olhar de vítima. — Acho que vai ser a última vez que eu vejo a luz do dia…
Um riso. Depois dois. Logo, o galpão inteiro ria, risadas de predadores que brincavam com a sua presa.
— Aí, garoto, não se sinta tão mal! Você nos deu trabalho! — debochou um com hálito visivelmente tóxico e dentes que imploravam por aposentadoria.
— Eu? Que nada, vocês que eram duros na queda — rebateu Hazan, fingindo modéstia enquanto se esforçava para não fazer uma careta diante daquele bafo.
Não adiantou.
Mas o massageio de ego sim. Os bandidos pareciam ainda mais orgulhosos de si após a última afirmação do rapaz.
— Já que vão acabar comigo mesmo… o que acham de me conceder um último desejo? Só umas perguntinhas, coisa rápida. Um pouco de misericórdia pro prisioneiro condenado?
Caiam na minha isca, seus imbecis… Vai ser moleza.
Um dos homens franziu a testa, deu um passo à frente. Parecia refletir. Hazan prendeu a respiração.
E então, o sujeito explodiu numa gargalhada descontrolada.
— Esse imbecil acha que vamos contar alguma coisa pra ele!
As gargalhadas voltaram mais altas. Um deles até caiu no chão segurando a barriga.
— Relaxa, garoto! Nosso chefe disse pra não te matar. Só uma surra caprichada antes dele dar uma palavrinha com você, e depois pode ir embora — disse um careca musculoso, cuspindo no chão como se quisesse marcar território.
Hazan abaixou a cabeça. Suspirou. A realidade era inegável: o plano foi por água abaixo. Nem uma mísera pergunta respondida. E pra piorar, sequer sabia onde estava, pois tinha dormido no meio do caminho.
Acho que eu não sou muito bom com planos. Ainda bem que sempre existem contramedidas.
As cordas começaram a ranger. Os músculos, antes em repouso, se enrijeceram.
Plano B: eu quebro todo mundo até alguém resolver colaborar.
Um estalo seco. E as cordas, antes firmes, caíram frouxas no chão.
O lutador levantou devagar. Estalou o pescoço com um movimento lateral e, com um leve sorriso cansado, ergueu os punhos.
Segundos depois, um joelho atravessou a mandíbula do primeiro homem da frente. Os dentes voaram, misturados com sangue e cuspe.
Um segundo veio no embalo, tentando agarrar o tronco de qualquer jeito. Esquiva curta, chute frontal na boca do estômago, e um homem caído sem fôlego.
O caos foi gerado pelo ataque repentino, e se aproveitou disso para derrubar quantos pudesse.
Corpos começaram a cair a cada ataque pesado. Os golpes eram afiados, a potência dos diretos do Boxe se mesclava com a brutalidade das joelhadas do Muay Thai.
Abaixou de um balanço horizontal de uma espada, cerrando o punho com força.
[Gancho!]

Outro se aproximou por trás, mas ele foi mais rápido.
[Chute Frontal!]

As sequências improvisadas de técnicas dinstintas tornavam Hazan um oponente particularmente irritante se de lidar, ainda mais quando não se tinha conhecimento delas.
Bam! Crack!
Mas a técnica do lutador não era capaz de superar grandes números.
Uma tora se estilhaçou em suas costas em um impacto pesado. Hazan girou com um soco reto instintivo, acertando a lateral do crânio do atacante.
Antes que pudesse respirar, um cano de aço colidiu contra sua nuca.
Eles não vinham todos de uma vez. Esperavam. Observavam. O ataque era constante, mas planejado. Sempre que alguém caía, outro já estava em posição para acertá-lo pelas costas com madeira, ferro ou qualquer coisa que machucasse de verdade.
Aquilo não era uma viela onde podia limitar os ângulos. Não era uma luta premeditada onde só enfrentava três oponentes por vez. Era uma matilha de mais de trinta, aprendendo com os erros dos outros, se adaptando rápido.
Aos poucos, os danos foram se acumulando, na tentativa de nocautear mais homens.
Quando se deu conta, tinha esbarrado com as costas em um canto do galpão.
Se estivesse enfrentando um único oponente, poderia até fazer uso dos efeitos de seu título, mas nem isso se encaixava naquela situação.
E não importava o quão forte era, se deixasse os danos acumularem demais e o cansaço bater, uma hora ou outra iria cair.
Precisava pensar num jeito de quebrar aquela formação, e rápido.
Mas já era tarde demais.
Ding!

Apareceu porque eu finalmente alcancei a metade da meta? De qualquer forma, essas recompensas são um ótimo incentivo!
Estava completamente cercado, mas por algum motivo, um sorriso involuntário surgiu em seu rosto. Ergueu a guarda e esperou.
Não acredito que vou fazer isso.
— Acabem com esse desgraçado! — disse o agressor com a cara cheia de cicatrizes, avançando com um cutelo na mão.
O som dos passos pesados se afastando foi a única coisa que restou enquanto Aurora dava as costas, carregando Hazan com dificuldade enquanto a teimosia permanecia.
Lirven a observou ir embora com uma expressão retorcida de quem se sentia claramente humilhado. Sentia os olhos dela o atravessarem mesmo depois de desaparecer.
“— Você vai aceitar essas moedas.”
Ela havia zombado dele.
O que mais indignava era o desprezo puro e a superioridade no olhar. Os tapinhas nas costas que diziam: “você é só mais um cocheiro sem valor, então reconheça o seu lugar.”
Cuspiu no chão.
Sua desgraçada… isso não vai ficar assim.
Foi assim que começou. Primeiro, nas palavras que dizia para si mesmo. Depois, na forma como contava o episódio para outros cocheiros, como se fosse um alerta disfarçado de desabafo.
— Aquela polariana? Pior do que os rumores! Levei ela e o tahtoriano, mas me arrependo amargamente…
Começou a criar uma versão dos fatos. Em parte para se proteger. Em parte para se vingar. E outra parte… só para ser ouvido.
Logo, os rumores se espalharam. Bastava alguém citar uma moça bonita de olhos cianos ou um sujeito com as características de um tahtoriano, e logo vinham os cochichos.
Nas tavernas, cocheiros passaram a exigir identificação de qualquer um que quisesse viajar. O medo cresceu, junto com a fofoca. Afinal, Lirvem era um cocheiro há mais de 20 anos. Tinha construído uma reputação entre os colegas de trabalho.
E ganhara fama por ter “sobrevivido” àquela dupla. Ganhara mais voz nas rodas de bebida. E começou a vender informações.
— Sabem aquele garoto de pele escura? Pois é… chegou todo ensanguentado. A polariana, que nem pestanejou, carregou o corpo do rapaz e me mandou andar. Não me pagou nem uma moeda extra. Sabe quanto tempo levou pra limpar aquele sangue dos estofados? Uma semana!
Pausas teatrais. Sorrisos enviesados.
— Hoje em dia eu não aceito mais ninguém sem identificação.
Foi nesse ambiente que Mirielle o encontrou.
Estava sentada ao fundo, sem chamar atenção. O capuz cobria parte do rosto, deixando poucas mechas do cabelo curto amostra. Os olhos vermelhos, ardilosos como sempre, observavam com atenção.
Ela viu em Lirven o que precisava: alguém disposto a mentir por migalhas, desde que a mentira alimentasse o próprio ego.
Momentos depois, em uma pousada de quinta categoria, o cheiro de mofo dividia o ambiente com o de bebida barata e madeira podre. O quarto mal tinha espaço para a mesa bamba no centro e a cama rangente num dos cantos.
Uma vela bruxuleava em cima de uma garrafa cortada, projetando sombras tortas nas paredes.
Uma bolsa de moedas caiu sobre a mesa com um baque seco.
— Vinte e cinco moedas de ouro — disse Mirielle, empurrando a bolsa com o indicador. — Isso é só a metade.
O cocheiro encarou o ouro como quem vê um velho conhecido. Depois, levantou o olhar para a mulher à sua frente. Estava bonita demais para aquele tipo de lugar. Postura nobre demais para alguém que frequentava tavernas escutando boatos. E inteligente o suficiente para não entregar tudo de uma vez.
Ele cruzou os braços, tentando parecer firme.
— Olha… eu sei que tenho informação quente. O tipo de coisa que vale bem mais do que isso. Se quiser mesmo o resto, vai ter que…
Ele parou.
Na penumbra, algo se mexeu.
Uma figura até então encostada na parede surgiu da escuridão.
Darius.
Usava um sobretudo preto por cima de uma camisa vermelha de gola alta, onde o símbolo de um brasão fazia presença no peitoral largo.
Os cabelos puxados para trás e a expressão neutra o tornavam difícil de decifrar.
Mas seus olhos…
Não havia nada neles. Nem raiva. Nem mesmo interesse.
Apenas uma constatação silenciosa de que poderia esmagar Lirven a qualquer momento. E o cocheiro se deu conta disso quando reconheceu aquele brasão.
Os Erienval. Tinham raízes profundas. Seu brasão, um corvo cravando as garras em uma foice quebrada, era conhecido em todas as cidades vizinhas da capital de Sohen. Eram diplomatas, carrascos e conselheiros, e a maioria deles possuía talento para a magia ou aura.
Darius era o filho bastardo que ninguém ousava menosprezar. Porque diferente dos outros nobres, ele não precisava mandar alguém sujar as mãos. Ele era o cão de caça de sua família, que faria de tudo para se tornar o herdeiro legítimo.
— Você tem uma boca útil — disse o nobre em um tom solene. — Espero que continue assim.
Sem dizer mais nada, apenas apoiou a mão sobre a mesa.
Lirven não entendeu.
Até sentir a pressão invisível no ar.
Aura.
A garganta fechou. Mal conseguia respirar, a cabeça começou a latejar, e o corpo poderia ceder a qualquer momento com um peso insuportável. Levou as mãos até o pescoço, numa tentativa fútil de aliviar a pressão.
O olhar desesperado correu até a bolsa, depois para o rosto de Darius, e entendeu.
Não era uma proposta. Era uma ordem.
— E-entendido. Eu… p-posso convencer os outros cocheiros! Sei como eles pensam!
O alívio veio na mesma hora. O homem respirou fundo, sentindo o ar preencher os pulmões.
Mirielle sorriu, satisfeita, e cruzou as pernas com leveza, como quem sentia orgulho de seu parceiro.
Lirven engoliu em seco. A mão trêmula denunciava o nervosismo quando tentou pegar a bolsa de moedas.
Darius observava a cena sem piscar. A penumbra fazia seus olhos parecerem poços vazios, sem alma ou calor.
— Você vai incitar os cocheiros — disse com um tom neutro, quase tedioso. Mas cada palavra tinha o peso de uma sentença. — Mirielle, prepare-se para os órfãos.
Lirven hesitou. O ar parecia mais denso. Mirielle apenas cruzou os braços, o cenho franzido.
— Os órfãos? Vai sequestrá-los?
Darius não respondeu de imediato. Deu um passo à frente. Seus olhos fitaram os dois como quem decide se algo ainda tem serventia… ou se já deveria ser descartado.
— São peças úteis no jogo, se quisermos atrair os nossos alvos. — Um sorriso rastejou em seus lábios. — E eu vou cuidar de Edwyn.
— O mordomo? — Mirielle arqueou uma sobrancelha. — Fala daquele velho, Edwyn? O que ele tem a ver com isso?
Darius virou o rosto lentamente para ela. O sorriso agora era mais sombrio.
— Flint e Edwyn têm uma ligação forte. — Sua voz ficou mais baixa. — Vamos explorar isso.
Lirven desviou o olhar, tentando esconder o suor frio escorrendo pela nuca. A essa altura, não era mais possível dizer se estava envolvido ou preso.
Darius cruzou os braços e inclinou a cabeça.
— Agora… escutem com atenção. Vou passar os detalhes.
O silêncio se instalou, como se o ar prendesse o fôlego de todos no recinto.
Então, com um tom quase cerimonial, ele declarou:
— O plano será colocado em ação no dia da Competição das Jovens Estrelas, durante o Festival do Despertar.
Um estalo imaginário pareceu ecoar na cabeça de Lirven. O Festival do Despertar começaria em dois dias, e a competição sempre acontecia no terceiro dia do evento.
A cidade passaria os próximos dias festejando. Mas para outras pessoas, não haveria nenhum motivo para comemorar.
Salão das Chamas Eternas.
Apenas membros do alto escalão do Ignis e funcionários de confiança podiam entrar naquele lugar.
Chamas alaranjadas como o pôr do sol ardiam em tochas encravadas nas colunas de pedra escura. O ar ali dentro era morno, aconchegante. Tinha um odor discreto de madeira e metal, um cheiro que remetia aos dias em que passava treinando com seu pai. Naquela época nostágica, tudo era perfeito.
No centro do salão, cercada por estátuas, tapeçarias e quadros, erguia-se a figura monumental de Leônidas Ignis, o último líder da Casa Ignis.
Postura ereta. Queixo levantado. Mão direita apoiada sobre o cabo de uma espada enfiada no chão, enquanto a esquerda repousava sobre o peito, como alguém que jurava algo eterno. Seus cabelos eram longos, quase chegando nas costas, e seu rosto estava marcado por cicatrizes,
Apesar disso, sua expressão trazia uma paz e confiança que inspirava qualquer um que tivesse a oportunidade de admirá-lo. Mesmo aquela estátua exalava uma aura carismática que apenas o homem mais forte da Era de Prata poderia ter.
Flint permanecia ali há minutos. Ou horas. Difícil saber. O olhar cravado nos olhos esculpidos do pai.
Estava imóvel. Mas dentro dele, algo se revirava.
Meus irmãos são todos talentosos… Eles tem influência, poder e seguidores fieis. Mas e eu? Do que eu realmente posso me orgulhar?
Um rangido sutil anunciou a abertura da porta. Edwyn entrou com a elegância silenciosa de quem já tinha o hábito de caminhar por cada canto daquela mansão.
— Mestre Flint? — murmurou, surpreso com a presença do jovem. — Você acordou cedo hoje. Precisa de alguma coisa?
O jovem não respondeu de imediato. Respirou fundo, ainda olhando para a estátua.
— Edwyn… — murmurou. — Como ele era?
O mordomo não se apressou. Aproximou-se com calma, parando ao lado do jovem atormentado. Seus olhos azulados percorreram o salão com calma. Eles enxergavam algo além.
— Cada estátua… cada quadro neste salão responde a essa pergunta. Mas você já sabe disso, não é? Quantas vezes te contei essas histórias?
Flint finalmente desviou o olhar da estátua principal e seguiu os olhos do mordomo.
Ali estava o primeiro quadro.
Leônidas, de costas, envolto por um manto rasgado pelo vento. Ao redor, um mar de soldados ajoelhados, largando suas armas numa rendição silenciosa.
“O salvador de Wurid.”
Flint parou em frente à pintura. Os olhos percorriam os detalhes que já vira dezenas de vezes, mas nunca pareciam iguais. Estavam mais vivos naquele dia. Mais pesados.
— Aqui… — Edwyn começou, com a voz baixa, como quem narra um rito sagrado — ele marchou sozinho contra dez mil soldados do antigo Reino de Solud.
Fez uma pausa dramática, como sempre fazia ao contar histórias. Flint já conhecia a deixa.
— Que em outras palavras… — disse, meio entediado, meio nostálgico — é o nosso reino atual. Wurid.
Edwyn assentiu com um pequeno sorriso, satisfeito.
— Isso mesmo. — Seus dedos entrelaçados atrás das costas. — Dez mil soldados. Muitos deles pujantes de nível experiente e mestre, magos de terceiro e quarto círculo… Mas ele não matou nenhum deles.
— Eu lembro — murmurou Flint. — Era uma guerra de sucessão. O primeiro filho legítimo de Solud contra o bastardo exilado.
— E Leônidas… — Edwyn virou-se levemente, os olhos brilhando com reverência — …ele escolheu não tomar um lado. Parou a guerra com a sua força e os convenceu com determinação. Inspirou tantos homens que o próprio bastardo foi erguido ao trono. O rei atual de Wurid deve seu reinado ao seu pai.
Houve um breve silêncio, mas Flint não deixou se estender por muito tempo.
— O comandante e todos aqueles soldados… — ele começou, a voz mais baixa — se tornaram parte da Casa Ignis.
Edwyn completou com suavidade:
— Homens transformados pela presença de um só. O mais forte da Era de Prata, embora jamais tenha se declarado como tal.
Flint permaneceu quieto, os olhos ainda vagando pelas memórias imortalizadas. Então, baixou o olhar para o chão.
— Eu sou uma pessoa ruim, Edwyn?
O velho mordomo não demonstrou surpresa. Cruzou as mãos às costas, ponderando a resposta.
— Não acho que seja. Mas poderia ser melhor.
Flint assentiu lentamente. A resposta doía, mas não feriu. Talvez porque esperava por ela.
— Eu sei que não estou dando o meu melhor.
Edwyn suspirou e, ao falar, seu tom foi mais do que o de um servo. Era o de um professor.
— Todos estão fazendo o melhor que conseguem, mestre Flint. Mesmo que esse “melhor” seja medíocre. Um morador de rua que finge que não sente frio. Um mendigo que mente para si mesmo que a culpa é do mundo. Um homem ordinário que diz “não tive escolha” enquanto deixa seu sonho escapar de suas mãos…
Flint franziu o cenho.
— Isso não faz sentido. Se estão fazendo o melhor… por que continuam presos à própria miséria?
— Porque se conformaram com o lado ruim da vida. — Edwyn respondeu. — É mais fácil sobreviver a um pesadelo constante do que confrontar o desconhecido da mudança. E a nossa mente… — fez um gesto circular próximo à cabeça — …ela se adapta. Cria justificativas. Justifica a dor, o fracasso…
— Então… é por isso que eu também estou assim? — a voz de Flint vacilou, e sua expressão era quase chorosa. — É por isso que eu sou um merda?
Edwyn olhou para ele. Com ternura. Mas sem piedade.
— Você não é uma pessoa ruim, mestre Flint. Só está confortável demais. E a verdade, meu menino… é que mudar exige mais do que vontade. Exige coragem.
O silêncio que se seguiu foi diferente. Não era desconfortável. Era o tipo de silêncio que planta raízes.
Flint esfregou os olhos e se virou de novo para a estátua do pai.
— Edwyn… — A hesitação era visível, mesmo que o tom tentasse soar firme. — Por que ele simplesmente sumiu?
A pergunta ficou suspensa no ar, como uma lâmina entre ambos.
Edwyn demorou a responder. Olhou de volta para o quadro, desviando do olhar do jovem.
— Algumas jornadas não são contadas — disse, finalmente. — São escolhidas.
— Você já me disse isso antes. Mas nunca disse onde ele foi.
Edwyn suspirou. Caminhou até próximo do quadro, sem esperar que Flint o seguisse.
— Flint… há momentos em que até os maiores precisam desaparecer para proteger aquilo que construíram. Seu pai… ele sabia que o legado é mais importante do que a presença.
— Isso é um consolo vazio. — A voz de Flint endureceu. — Você o admirava tanto. Me ensinou a admirá-lo também. E então ele sumiu, e todos fingiram que isso era normal.
Edwyn parou. Pela primeira vez, a sombra de um arrependimento cruzou seu rosto.
— Não era normal. Mas era necessário. Um dia, talvez, você entenda.
— Ou talvez eu descubra por conta própria — disse Flint, virando-se em direção à saída da galeria.
Edwyn ficou em silêncio, observando a pintura de Leônidas mais uma vez. Talvez o quadro soubesse mais do que ele estava disposto a dizer.
Mas Flint parou. Seus punhos cerraram, mas não se atreveu a olhar para trás.
— Ele também tinha dúvidas, Edwyn?
O mordomo sorriu pela primeira vez, e caminhou na direção do jovem nobre.
— Todos os grandes têm.
— E você? Já se sentiu preso numa realidade medíocre?
Edwyn não respondeu logo. Mas quando respondeu, foi com uma sinceridade delicada:
— Já. Mas o seu pai me puxou para fora dele.
Flint encarou o mordomo por longos segundos. Depois assentiu, levemente.
— Obrigado… por ainda estar aqui.
Edwyn apenas o olhou. E, sem dizer nada, apoiou a mão no ombro do jovem.
O gesto dizia o que nenhuma palavra poderia: “Eu estarei até o fim.”
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