Índice de Capítulo

    Os homens o golpeavam com tudo o que encontravam. Marretas pesadas que rachavam o ar antes de atingir carne e osso. Espadas mal afiadas, mas letais em sua brutalidade, rasgando a pele. Porretes, canos enferrujados, correntes.

    Qualquer coisa servia.

    Qualquer objeto que pudesse ferir era empunhado com fúria.

    Eles não paravam.

    Os impactos reverberavam no interior do galpão enquanto Hazan permanecia encurralado, com as costas prensadas contra a parede.

    Não tinha espaço para escapar, nem mesmo para pensar. Mantinha os antebraços em guarda, protegendo a cabeça e o abdômen, os pontos mais frágeis.

    Mas a guarda não bastava.

    Mesmo com um corpo treinado e a experiência de saber apanhar, ele não era imune aos danos causados. A pele rasgava aos poucos. Os músculos exigiam descanso. E os ossos sofriam pequenas rachaduras.

    Sangue escorria quente, lento, em filetes que desenhavam constelações vermelhas sobre o chão sujo.

    Os gritos dos inimigos pareciam distantes, abafados por um zumbido que se instalara em seus ouvidos. 

    Era como estar submerso, afundando lentamente em um mar de sofrimento. E ainda assim… não havia raiva em seus olhos. Apenas foco. Um foco tênue, vacilante, mas ainda aceso.

    Segundo após segundo, apanhava. Apanhava, pois não tinha mais nada a oferecer além do próprio corpo para o combate.

    Quanto mais ele aguentaria? Quanto tempo um corpo poderia suportar antes de quebrar completamente?

    Os agressores não sabiam. E por isso continuavam. Porque ainda existia movimento. Porque ele ainda respirava. E enquanto houvesse vida, haveria a necessidade de esmagá-la. 

    E esmagar Hazan parecia, naquele momento, a única maneira de garantir que eles não seriam esmagados. A adrenalina e a fúria ultrapassou qualquer linha de raciocínio que pudesse ser mantida.


    — Se Hazan é forte? — indagou Calista, sentada na mesa de seu escritório com alguns documentos em mãos. Usava óculos retangulares que lhe davam um ar intelectual.

     — Acha que não sei dos rumores? Vocês treinaram, não foi? Mirna me contou. — Agnis pontuou, com os braços cruzados. — E sai de cima da mesa, você tem uma cadeira para isso!

    Hehehe, quando foi a última vez que você viu essa mesa vazia, hein? 

    Sempre que você passa todo o seu trabalho para mim. E não muda de assunto.

    Ela fez uma expressão triste, ajeitando os óculos com o indicador da mesma forma que Agnis, e então exibiu um sorriso nostálgico. — Qual você acha que é o aspecto mais importante de uma luta?

    Ele coçou o queixo e pensou alto:

    — Força, talvez. Esmagar o inimigo antes que ele se mexa. Ou inteligência, para antecipar movimentos. Mas pensando melhor… eu apostaria na velocidade. Quem ataca primeiro, sobrevive.

    — Todos bons palpites. Mas sabe o que eu vi naquele treino?

    Deixou os documentos de lado e encarou a mão cheia de calos. 

    — Eu derrubei ele tantas vezes que comecei a perder a conta… — comentou, com um olhar calmo. — Mas toda vez que achava que ele ia ficar no chão… ele levantava. 

    — Idiotice e inconsequência. Não estou surpreso — comentou o curandeiro, não muito impressionado. 

    — Estamina, meu querido — corrigiu ela, apontando o punho cerrado para ele. — E um pouco de teimosia também. Dava pra ver nos olhos dele, mesmo após ser derrubado várias vezes, ainda procurava por um jeito de me derrotar.

    Olhou para os dois lados, fez uma pausa e aproximou a mão da boca para abafar o som, como se revelasse um segredo raro:

    — Força pode acabar. Inteligência pode falhar. Velocidade pode ser superada. Mas se você continuar de pé… cedo ou tarde, a outra pessoa cai.

    Agnis soltou um assobio baixo, agora mais atento.

    — Isso casa perfeitamente com os registros que fiz sobre ele. Aquela resistência e velocidade de recuperação são sobrenaturais para uma pessoa comum.

    — E este rapaz promissor será um membro oficial da nossa guilda! — disse Calista, piscando um olho. 

    — Você acha que essa resistência duraria contra muitos oponentes? Se ele for cercado, por exemplo… Mesmo bestas enormes caem quando os humanos trabalham em equipe.

    — É, acho que essa é uma possibilidade. Mas se fôssemos considerar essa opção, esses humanos teriam que ter mais fôlego do que a besta.

    — O quê?

    Calista revirou os olhos de forma divertida, como se a resposta fosse óbvia.

    — Se a besta for capaz de recuperar um pouco das energias enquanto é atacada por todos os lados, então… seria questão de tempo até os humanos perderem suas forças. — Ela apontou o polegar para a própria garganta, simulando um corte.— E na frente de uma besta determinada a sobreviver, isso é praticamente uma sentença de morte.


    Os primeiros braços vacilaram.

    Os músculos dos agressores começaram a pesar, e suas guardas baixaram instintivamente após tanto esforço.

    Os homens se afastaram, para que pudessem observar melhor o estado daquele que deveriam subjulgar. 

    O chão estava tingido de sangue, representando a pintura de um artista enlouquecido, cujos padrões eram caóticos e sem sentido.

    No centro daquela obra grotesca, o jovem permanecia de pé, ainda na mesma posição em que tudo tinha começado.

    A guarda erguida com a mesma determinação.

    Nenhum deles tinha fôlego para falar, nem mesmo para pensar direito. 

    Tudo o que conseguiam fazer era encarar, atônitos, o fato de que Hazan ainda estava de pé.

    Pendurado ao pescoço do rapaz, um cordão reluzia em laranja quente. Em meio ao massacre, aquele pequeno fragmento de luz parecia zombar da escuridão ao redor.

    O brilho alaranjado do cordão cintilou, refletido nos olhos do lutador como um sinal de ignição.

    [Joelhada Voadora!]

    O salto rasgou o ar, e o joelho atingiu o primeiro bandido no rosto com força suficiente para atingir outros dois homens que faziam fila atrás dele, derrubando três de uma vez. 

    O som dos ossos se quebrando ecoou pelo galpão inteiro. 

    — O quê…?! Esse maldito ainda consegue lut- — gritou um dos homens, antes de ser silenciado por um direto limpo no queixo.

    Outros cinco avançaram por trás, contando que o cansaço tivesse finalmente cobrado o preço. 

    Tinham visto o sangue, os hematomas. Tinham sentido a exaustão nas próprias pernas e imaginado que ele estivesse pior. E por isso balançaram suas armas.

    [Pêndulo!]

    Seu tronco balançou em movimentos fluidos, evitando três golpes consecutivos com uma naturalidade assustadora. 

    Girou o corpo com a esquiva e canalizou o movimento em chute alto que atingiu os rostos de dois homens de uma vez. Eles cambalearam em direção ao chão.

    Hazan não parou. Se posicionou de lado, à margem da multidão que o perseguia, uma besta que cercava a matilha exausta. 

    O galpão inteiro era agora seu ringue.

    Caixotes empilhados com mantimentos bloqueavam partes do espaço. Espadas, lanças e machados estavam espalhados pelo chão, dificultando o movimento descuidado até mesmo para os bandidos.

    Dois vieram por impulso. Hazan passou pelo meio deles, agarrou ambos pelas laterais da cabeça e os jogou com brutalidade contra barris próximos. 

    A madeira gemeu, a cerveja transbordou, e os homens, entre engasgos e espasmos, foram reduzidos a fôlegos perdidos dentro do líquido.

    — Cerquem ele! — gritou um homem, tentando encorajar o grupo.

    Eles obedeceram, cambaleantes, tentando recriar o cerco. As armas tremiam em mãos suadas. 

    Era a mesma estratégia que tinha deixado o jovem em um estado lastimável, então por que não funcionaria dessa vez?

    Dois vieram por baixo, mirando as pernas. Outros dois desceram as espadas de cima. Hazan se encolheu pela lateral no tempo exato, mirando o agressor mais próximo.

    [Cotovelada!]

    O bandido girou no ar e caiu com o corpo mole. 

    Outro tentou golpeá-lo pelas costas, mas já tinha se inclinado, desviando por centímetros e aplicando um chute baixo que acertou a parte de dentro da coxa.

    Quando o homem cedeu por conta da dor, um chute já estava esperando seu queixo.

    Crack!

    Eles estavam aterrorizados, e com razão. Desde o primeiro passo, o avanço impetuoso do lutador não passava de uma finta, um movimento calculado para provocar exatamente a resposta que desejava. 

    Não buscava confronto direto, isso seria desperdício. Queria que se espalhassem ao redor, que confiassem demais na vantagem numérica. 

    E quando estivessem lentos e cansados, ele estaria pronto.

    Ao se jogar no meio do grupo, atraiu a atenção e instinto predatório da multidão. Mas assim que os ataques começaram a chover de todos os lados, já estava em movimento.

    Deslizou pela borda do círculo e bebeu daquela água pura de gole em gole.

    Um ataque no queixo, um na costela, outro no plexo solar. 

    Enquanto eles acreditavam que tinham a vantagem, seus números eram reduzidos. 

    Hazan evitava o centro a todo custo, eliminando um por um pelas extremidades, onde o alcance era limitado e o risco de ser cercado era mínimo. 

    Quando tentaram reorganizar a ofensiva, já estavam em menor número, e nem sabiam quando isso tinha acontecido.

    Foi só quando seus olhos pousaram nos corpos inconscientes de seus próprios aliados ao chão que a verdade os atingiu como um soco no estômago: aquela não era uma luta desordenada, era uma emboscada premeditada de um caçador paciente.

    Hazan parou, uma gota de suor escorrendo pelo rosto. Os braços já não se erguiam com a mesma leveza. 

    E o cerco se reagrupava. 

    — O que foi? — O jovem sorriu, mesmo estando cansado. — Estão criando coragem agora que eu pareço cansado?

    Um dos bandidos sorriu.

    — Seu desgraçado… Eu sei que você está acabado dessa vez! Ei, seus malditos, a nossa chance é agora!

    Os homens gritaram em resposta, avançando todos de uma vez. Era o momento. A chance de esmagar o lutador antes que se erguesse de novo.

    Hazan sugou o máximo de ar que conseguiu pelo nariz, seus olhos se tornaram focados, e seu pé afundou no chão quando avançou.

    [Direto!]

    O primeiro caiu.

    [Pêndulo!] [Gancho!] [Gancho!]

    Dois a menos.

    Era como se a dor o alimentasse. Quanto mais atacavam, mais ele entendia o ritmo, o tempo, a fraqueza de cada um. 

    — M-merda, você é um m-maldito m-monstr-! — gritou um dos poucos ainda de pé, tendo seus dentes destruídos por um chute antes de terminar sua frase.

    Ao final, corpos desacordados jaziam aos montes. Alguns gemiam. Outros estavam imóveis. Hazan estava no centro, arfando, com os punhos ainda cerrados.

    Rato, o bandido franzino com enormes orelhas, assistiu tudo com os olhos cheios de medo. O único bandido que não tinha feito questão de participar do espancamento coletivo.

    Seus braços tremiam ao empunhar um cano velho.

    Seus olhos se encontraram com os do lutador, e ele imediatamente cedeu.

    — Hiiek! Chefinho, por favor, nos salve! — disse o homem patético, correndo em direção à saída.

    O jovem balançou a cabeça e relaxou os punhos, pegando o cordão e o encarando de perto.

    Por que você sempre brilha quando eu estou em perigo?

    Uma gota de sangue pingou da bochecha cortada e caiu bem em frente ao cordão, que ainda brilhava. A luz laranja refletida nele parecia ter vencido o escuro mais uma vez.

    Então, se apagou.

    E palmas ecoaram.

    Vieram de cima, atraindo a atenção de Hazan. Da primeira vez, estava tão focado que nem mesmo tinha observado aquele detalhe.

    Havia uma pilha de lixos no canto do galpão. Era antiga, como se os bandidos tivessem usado aquele lugar como um “lixão” pessoal. Os lixos se amontoavam um em cima do outro, formando um monte que quase alcançava o teto.

    No topo daquele monte, estava um trono. Formado por cimitarras, facões, lanças, espadas, e armas do tipo perfurante.

    Um trono de armas quebradas.

    Uma figura estava sentada no trono.

    O vulto mal se movia. Estava envolto em uma jaqueta escura com capuz forrado de vermelhos.

    A luz fraca da lua reluzia contra o metal corroído de sua máscara, que não havia feições visíveis, apenas duas fendas iluminadas por um brilho amarelado, animalesco, como os olhos de uma fera oculta na mata.

    — Não esperava que acabasse com todos eles — murmurou a voz por trás da máscara, abafada e rouca. — Pobres formigas. Tentando esmagar uma espécie além de sua cadeia-alimentar.

    Hazan continuou no chão, respirando com dificuldade. O sangue ainda gotejava do queixo, mas os olhos estavam alertas.

    — Ouvi falar de você — prosseguiu a figura. — Ajuda pessoas, está sempre treinando. Encerrou uma masmorra, caçou vários Bronthir com um nobre famoso. Até derrotou um Korgar.

    A última frase fez os olhos do rapaz se arregalarem.

    Como esse desgraçado sabe disso?

    O homem sentado no trono inclinou levemente a cabeça, como se pudesse ouvir o pensamento.

    — Mas você cometeu um erro — disse, com uma pausa sutil, venenosa. — Mexeu em um vespeiro, e irritou pessoas que não deveria.

    Hazan ergueu o rosto lentamente, mesmo com o maxilar latejando. Um sorriso torto se formou, sujo de sangue e desafio.

    — Então você é o chefe desse circo? — cuspiu um pouco de sangue para o lado. — Desce daí. Tenho umas perguntas pra te fazer… e não gosto de conversar olhando pra cima.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (3 votos)

    Nota